Capítulo 1: O Adágio Sibilino
Um flúmen carmesim cruzava o níveo balcedo e, deste liquor consistente, eu me inebriava, sorvendo sem temores, e imergindo-me nua em seu sereno caudal cujo aroma ferroso seduzia-me. O álgido inverno mordaz congelava-me os cílios, alvejava meus negros cabelos e sobrancelhas enquanto a torrente escarlate era estranhamente tórrida como uma nascente termal. Eu não sabia a origem daquele sangue, no entanto, em minh’alma residia a intuição de que advinha de um mórbido pecado. Despertei deste sonho após tal intuição fissurar o plano onírico e, então, senti sede. Não foi uma sede qualquer, parecia-me como mãos a asfixiarem-me a garganta; senti dilatarem as minhas pupilas e um ímpeto terrífico embaçara em rubro a minha visão. Foi isso que aconteceu naquele dia após o sono sombrio no amanhecer. Despertei às dezessete horas, completamente alucinada.
Então, lá estava ela; uma taça de ouro lapidado e brilhante que por certo fora disposta sobre a mesa poeirenta enquanto eu devaneava, uma vez que eu não a vi n’outro momento desde meu despertar primevo, quando tudo era-me tão somente uma penumbra de indagações a pairar pelo ambiente frígido. N’um único movimento suave, segurei o lustroso cálice e levei-o aos meus lábios sequiosos após notar que dentro dele habitava um espesso líquido acarminado, em demasia semelhante ao flúmen de meus oníricos recônditos. Posso ter olvidado cada uma das memórias do meu passado, todavia, ainda detenho os conhecimentos mais precisos, e alguns além, que me permitem compreender o mundo; um destes saberes é que este sangue não deveria ser tão apetitoso para mim, tampouco matar deveria esta minha inominável sede.
Na voracidade mitigada pelo degustar, observei um envelope esculpido em um tipo de material valioso, talvez um quartzo. Toquei-o, estava próximo à cama e, em minhas mãos, ele lumiava como uma folha feita de um excêntrico e natural rubi fissurado por ouro. Era apenas um papel, todavia, não poderia advir dos eucaliptos setentrionais. Em seu interior, letras conduziam uma misteriosa mensagem.
“A escuridão do ressurgir possui ímpar esplendor, contudo, o exício d’alma, como Rosaemori, habita na dança da meia-noite pela lembrança ao refletir, onde o doce carmim se putrefaz às faces dos que jamais se delatam.”
Um peculiar enigma de essência familiar, embora tão ofuscado pelo mórbido vazio de minhas mais ínfimas memórias. Conservei uma proximidade à letra cursiva, mas desconfiei apenas encontrar-me delirante. Esforcei-me em profundo pensamento, no entanto, o “exício d’alma, como Rosaemori,” e as “faces dos que jamais se delatam” soavam-me como um longínquo corvejar em um horizonte crepuscular inebriante, isto é, passível de admiração intensa, mas não de compreensão. Dobrei a epístola insondável e escondi-a em meu vestido, próxima aos seios; e asseei meus lábios úmidos pelo fascinante e fresco vinho da profanação. Era hora de deixar aquele sôfrego aposento e conceber novos retratos à conservação dos momentos advir — e tentar colher do inconsciente as mais ocultas verdades, pois, possuíam seu incontestável valor.
Abri com ampla facilidade os altos umbrais e dirigi-me pelo corredor silencioso. Candelabros espargiam de si um lumiar trêmulo, porém, vigoroso, e clareavam as veredas obscuras. À vista dos vitrais de um grandioso salão, o qual adentrei sem anelo por meio de um esmo perscrutar, observei um esguio homem no jardim; à sua frente uma mesa de carvalho servia de repouso a incontáveis itens fúlgidos e tecidos de apurada aparência. Destinada a conhecê-lo, busquei escadas que me levassem ao andar de baixo e não demorei a encontrá-las, pelo caminho, contudo, examinei alguns quadros, estantes vazias, livros e gavetas. Tudo era símil a uma abandonada mansão, mas, de forma ambígua, habitada por um singelo número de pessoas, o suficiente para que a poeira se esquivasse aos cantos por onde pés não andejam.
— Ó! Fascinante donzela! Ande! Apressa-te! Esgotar-se-á o teu tempo, tens uma mísera hora para aprontar-se para o Baile, vamos, venha, venha! — Proferiu o homem ao ver-me aproximar; seu sorriso era largo, tétrico e pontiagudo, seu rosto era pálido e seus olhos lembravam-me das chamas sobre as velas dos candelabros. Os dentes afiados pareciam esculpidos em etéreo marfim e os dedos das mãos quais se abanavam n’um gesto chamativo em minha direção, eram franzinos e longos. Os trajes do indivíduo peculiar possuíam uma fina elegância, envoltos aos tons mais negrumes com adornos sublimes e áureos. Sob uma tenda rubra ele se mantinha em pé, um relógio de bolso dependurava-se em seu braço e, pela indumentária extravagante, o curso de uma corrente lhe enfeitava as mãos ao vincular-se aos seus anéis de pedras preciosas. Quando próxima, vi-o erguer alguns vestidos.
— Há excelsas peças, Dama soturna, veja, veja, veja!
— Perdoa-me... — Iniciei uma conversa hesitante — Não compreendo sobre o que falas ao mencionares um... baile? — Indaguei com a sutileza mais sincera, o homem cessou seus movimentos apressados e fitou-me atento.
— Não recebeste o convite? — Indagou, cismático. Ponderei por instantes fugazes sobre revelá-lo o bilhete enigmático, no entanto, receei. — Vamos, diga-me teu nome! — Ele voltou a movimentar-se entre seus apetrechos, em especial as gavetas de uma grande mobília detrás dele.
—Eu... — Eu não sabia meu nome.
— Diga-me! O Tempo se escassa a cada átimo! — Abrindo e fechando cada uma das gavetas, o homem procurava por algo.
— Eu não... sei... — Revelei. Novamente, mirou-me seus olhos lumiados. E, então, cruzou seus braços magérrimos e elevou, com sutileza polida, seu maxilar.
— Hum... — Ele parecia pensar, seus sonidos eram de, porventura, um abismal refletir. — Creio que tu sejas, então, a esperada...
— A esperada? — Questionei em uma curiosidade infante. O homem retirou de sua manga, em uma lentidão performática, um envelope fascinante em simetria e perfeição. Estendeu-o a mim. Nada havia escrito ao lado de fora do envelope, todavia, era selado com um tipo de mecanismo único feito com delgados ornamentos fulvos e, no centro, um único elemento cetrino, era um verídico Realgar esculpido em formato orbicular.
— Fui instruído a dar este invite à primeira donzela inominada que viesse ao meu encontro.
— Quem o instruiu? — Minha voz estva mais célere, enquanto eu me sentia embriagada pela beleza do artefato que agora eu segurava em minhas mãos.
— Ora, ora... um alguém... — Ele olhou para o tecido à sua frente, retirando-lhe uma longa agulha e, com um monóculo, observou a fenda por onde, sem delongas, atravessou uma rúbida linha.
— Quem, afinal? Possuía um nome? — O homem gargalhou com requinte diante meu questionamento.
— Perdoa-me o riso... é que tu, inominada como és, estás a indagar sobre o nome de outrem? Ora, parece-me tão pitoresco. — Respirei impaciente. Olhei para o belíssimo invite e toquei-o, admirada. Assim que o fiz, em especial na preciosa Realgar, o envelope abriu-se n’uma deslumbrante carta e todos os ornamentos dourados fragmentaram-se à fulvo pó com aroma de cestrum nocturnum.
“Caríssima dama! Que adorável noite! Venho por meio desta missiva convidar-te à Masqarilla, a qual terá seu início às dezenove horas. A solenidade saudará os novos residentes com o liquor-carmesim e dançaremos sob o luar. Como desperta, é de inefável valor que venhas ao nosso encontro e participe deste fascinante festejo, este é seu novo lar. Tenho sob minha guarda uma carta destinada, creio eu, à senhorita; decerto é de teu interesse tê-la em mãos. Com apreço, Conde Drácula.”
— Como o reconhecerei? — Sussurrei.
— Conde Drácula? — O homem à minha frente indagou, ainda obcecado por costurar o seu tecido. Respondi-lhe que sim. — Tu o reconhecerás, não te preocupes. A influência da presença do Conde é notável, mesmo no mais longínquo. — O Homem ergueu, após sua fala, o vestido que costurava. — Que tal este? Do teu exato tamanho, vermelho como os teus olhos.
— Belíssimo! — Encantei-me com a peça e, ao tocá-la, vislumbrei abaixo, no mais oculto da mesa de carvalho negro, uma máscara peculiar. — E esta?
— Ó... Esta? Sim, sim, uma máscara especial de uma criatura mítica há muito esquecida.
— Pensei tratar-se de um corvo.
— Um crânio fidedigno, caríssima inominada, de uma criatura mítica dos dédalos florestais... Segure, isso mesmo, experimente! Deve servir em tua fronte. — Era perfeita para mim, tive tal certeza ao vesti-la; somou-se a uma proximidade tênue que senti no exato instante. — Sabes que uma taça de ouro do Castelo pagaria facilmente o indumento e a máscara... — Disse o homem esguio, com seus olhos dispersos e lábios trêmulos, de alguma estranha forma ele sabia da taça que eu possuía em meu aposento. Curvei-me a ele em um cortejo formal e, em alguns minutos, lhe entreguei o fulvo cálice para tão logo aprontar-me para o festejo misterioso, mas... algo me estorvava a empolgação de desvelar os segredos da tal carta em posse do Conde; ou mesmo de conhecer mais sobre este imensurável castelo à beira do abismo. “O exício d’alma, como Rosaemori” — aquele insólito bilhete era a razão do meu remorar frente aos umbrais de minha alcova.
Não obstante, entretanto, corri pelos claustros e passadiços, passei pela galeria e o saguão, até ouvir ao longe o murmúrio dos convivas. Afoita e um pouco sem fôlego, antes de chegar à câmara do festim, busquei a serenidade de minha mente e corpo e, assim, pelos meus íntimos pensamentos, revisitei cada questionamento que me perturbava desde o despertar do dia anterior. Não importa quem, mas decerto — eu pensava — que alguém naquele lugar sanaria minhas vertiginosas dúvidas. Cingida por esta certeza, adentrei o grandioso salão e meus olhos reluziram pela riqueza dourada que se desvelou a eles com magnitude.
À leste, o vermelho, todavia, espargia das tapeçarias aos ornamentos que decoravam o pequeno púlpito destinado à banda, a qual, por sua vez, era composta por treze pessoas; tocavam valsas marcantes, onde o violino tinha destaque ao lado do acordeão. Meia dúzia de outras pessoas compunham um pequeno coral ao lado, com vozes marcantes que ecoavam à valsa que, julgo dizer, possuía ares circenses. Todo o som difundia pelo gigantesco local e parecia conduzir, pela abóbada de rubi, um encanto fantasmagórico estonteante. Lembrar-me da cena transporta-me a ela, parece vívida em sua volúpia teatral e, certamente, estivera; a mastodôntica câmara abrigaria mais de mil indivíduos, estou certa disso e, porventura, ali estivessem mil e um. Todos com elegantes trajes e máscaras sombrias, que fascinante! Compreendi a razão pela qual o Conde a nomeara “Masqarilla” e não apenas “Mascarada”, a primeira palavra em si tinha gosto de cereja, as mesmas dispostas em cachos na ampla mesa destinada ao banquete; além disso, ornada pelo “q”, perpassava a sensação de mórbido assombro por causa da extravagante ourada, os veludos de ouro, os vitrais de ouro, o néctar de cacau banhado à ouro para acompanhar as cerejas, tudo exótico e aclarado, sim, luminoso como um dia de sol, embora penumbral como a mais fúnebre noite.
Embora eu fitasse com minhas atentas retinas cada lôbrego e exuberante pormenor, dos cântaros com cestrum nocturnum a exalar um aroma notívago, aos candelabros cujas chamas febris estavam envoltas por decágonos feitos de um tipo de quartzo — eu alvitraria tratar-se de sirehnniha, pois se mesclavam entre o escarlate e o marfim, o que causava um efeito bizarro no ambiente à medida em que as chamas fremiam pela aragem; e, enfim, a despeito de tudo isso, quando eu conduzia minhas atenções aos olhos daqueles que cruzavam o meu caminho, os quais eram igualmente fascinantes em suas vestimentas, joias, peças e máscaras, eu parecia não ser vista. Talvez o crânio da criatura mítica a me ocultar o contorno facial fosse um empecilho para as aproximações virtuosas — ainda assim, eu não o retirei de meu semblante, pois, de modo incomum, detrás dele eu me sentia protegida.
Acabei por passar boa parte do tempo assentada n’uma das poltronas de um belvedere interno, acessado por escadas encíclicas, por onde o horizonte da Masqarilla era mais bem admirado. Isso me permitiu notar que, com o passar das horas, as velas envoltas aos decágonos de sirehnniha marfim iam se apagando, de modo que o ambiente, n’um aspecto tétrico profundo, se avermelhava cada vez mais. Além disso, a lua cheia subia no firmamento lucífugo e aos poucos o seu lumiar soturno se espargia pela abóbada de rubi acima do encalço destinado às danças. Essas minúcias provocavam-se uma inquietação ofuscante, no entanto, algo me prendia àquele lugar, não apenas algo brumal e símil a tudo o que se desvelou a mim desde meu despertar; houvera algo ainda mais misterioso, porém tangível, que me impeliu a permanecer na meia-luz escarlate.
Em um fantasmagórico cárcere que vinha sobre mim no silêncio de minha mente conturbada, um alguém de vestes obscuras sentou-se ao meu lado e o vi apenas quando sua voz grave sonorizou sua presença à minha audição que se alucinava com o mórbido som do órgão de tubos.
— A morte é a eterna dança da alma no abismo. — Dissera, intenso, entregando-me um ramo ornamentado de cestrum nocturnum. O bálsamo da flor penetrou, marcante, meu olfato e, tamanha era sua veemência que, por instantes, desorientei-me. — Dance comigo. — Sussurrou o homem com a mesma delicadeza viril, então segurei o belíssimo e inebriante ramo que era erguido em minha direção e ponderei sobre qual seria o sabor daquelas pequenas flores lívidas, pois que o perfume me era um êxtase sui generis. O misterioso Dom à minha frente aguardava, atento e sombrio.
— A quem devo a honra? — Indaguei, segurando-lhe a mão estendida. O homem a ergueu, beijando-a. Ele usava uma ornamental máscara negra que se assemelhava a um rosto humano com traços felinos; o vazio dos olhos tinha um exagerado tamanho, curvados como os de um tigre e cobertos por uma manta interna, no mesmo tom noturno. Somente seus lábios estavam à disposição, onde pude sentir sua pele fria; todo o restante de sua feição estava sob a paralisia do felino rosto ornamental feito de escuridão dourada. As mãos, por sua vez, estavam sob a proteção de luvas de couro e seu traje régio dispunha-se dos mesmos tons trevais por onde jaziam seus olhos ocultos. Uma umbrosa gema, talvez obsidiana, fora lapidada na fronte de sua máscara. Com este vulto de um alguém, iniciei o bailar ao som da umbrífera valsa.
— Lëvri Dorean — Revelara-me enquanto nos movíamos sob o som sepulcral. Muitos ao nosso redor seguiam na coreografia, o que nos impedia de um diálogo contínuo. Entretanto, enquanto a lua chegava ao cume da abóboda-rubi e quase todas as velas no decágono marfim se apagavam, o carmim transfigurava o ouro em sangue e tudo o que víamos era nós dois, a cada cinesia organizada, seguimos um diálogo em partes, entre as sombras de outrem. — E qual haveria de ser o nome da tua espécie? — Ele questionou com seriedade.
— Minha espécie? — Perguntei atenta enquanto a penumbra roubava-me a serenidade, conquanto a presença marcante daquele que não desviava seus olhos ocultos de mim fosse o apaziguar da solidão e do esquecimento, ainda que evolasse de sua aura algo inenarrável a me enlear ao medo lúgubre.
— É o que as flores possuem... espécie, classe e gênero. Da classe, sem dúvidas, és da mais excelsa; do gênero, decerto feminil. Falta-me a espécie. — Explicara, como um gomil a verter sobre minha pele um puríssimo néctar das belíssimas flores da arbórea Calliandra angustifolia. E meu corpo próximo ao dele, as palavras sedutoras, uma cura plena cujo mistério impedia-me de dosar o quanto eu poderia ficar imersa, ludibriada, e então sentir o veneno pela dosagem exacerbada.
— Dama-da-noite. — Ele sorriu com sutileza ao me ouvir, no entanto, um regélido arrepio tétrico percorreu meu corpo, originando uma desagradável angústia, de modo que seu sorriso se afigurou mais vil do que cativante.
— Quero o teu nome real, o qual eu possa sussurrar quando estiver só em meu aposento. — Neste íntimo, unimos outra vez os nossos corpos, com as mãos dadas, à valsa da morte. Era quase meia-noite. As sensações desoladoras ascendiam céleres, e os efeitos dos decágonos vermelhos à luz das chamas, me entonteciam.
— Eu te diria, se assim pudesse. Mas não me recordo... — À altura daquele diálogo, tudo de horrífico que eu pressentia, alastrou-se de repente. E, assim, uma pungente dor em meu crânio expandiu-se terrífica e meus olhos lacrimejaram detrás da máscara. Cessei meus movimentos, a lua era o astro de sangue no píncaro da abóboda de rubi, iluminando em um denso rubro tudo que debaixo estava, e a música não cessava. A aragem ao redor esfriara no exato átimo em que a aflição dardejara de mim, pelas têmporas. Fui obrigada a retirar, de súbito, minha máscara, revelando meu rosto entre os que bailavam à meia-noite vermelha, e minha dor hórrida espargia e se dilatava; lembro-me de olhar para o abismo dos olhos de Lëvri, ele me observava estático e, talvez, amedrontado — eu nunca poderia saber. Então, no aterramento da tortura, quando minha lancinante dor aguda colidiu-se com a minha sanidade, perdi-me dentre os corpos dançantes, perdi-me de Lëvri.
Na morbígera dança, colidindo com os corpos, as máscaras se distorciam à minha visão, elevavam às sombras cetrinas uma hórrida composição pavorosa. O som do violino agudo confrangia meu coração acelerado e o pulsar da dor abissal em minha mente era como tambores insondáveis. Um, dois, três, em cada ouvido, tímpanos invadidos por sonatas em tenebrosa essência, um adágio de repugnante e diabólico vibrar. Eu só podia estar delirando e eu não conseguia deixar o encalço dos dançantes, conforme a meia-noite se prolongava, e o que me parecia ser uma desgraça de infortúnio, tornou-se o maior dos meus pesadelos, pois, perante os tambores do antro do meu crânio, na dor cruel e violenta, todos aqueles que dançavam tornaram-se inertes. Um a um. Viraram seus rostos para mim enquanto a música intensificava, perversa.
Em movimentos lentos, no meu desesperar medonho por fitar as máscaras distorcidas, o escarlate tremeluzindo; cada uma das pessoas, uma a uma, retiraram os sinistros objetos desfigurados de seus rostos, e o que vi não foram semblantes. Cada rosto possuía entranhado, em suas faces sanguinolentas, um fragmento fincado de espelho. Pedaços que, de imediato, voltados a mim, refletiram o que deveria ser eu, mas não era. Fui terrificada por imagens perturbadoras do mais cruel possível ao meu olvidar, eu não soube se eram reais ou não. Mortificada, corri para sair daquele lugar, no entanto, não havia saída, mesmo que todos estivessem paralisados; olhavam-me no infinito salão. Eu não podia fechar meus olhos. Cada reflexo desvelava-se n’uma cena macabra e, no primeiro deles, vi um homem com uma flor de cor negra-gaultéria fincada em suas entranhas pelo torso aberto com lâmina dourada; a planta sorvia dele, mirrando seu corpo dolorosamente; e a cada rosto que eu olhava, o reflexo d’esta cena, aos gritos soturnos do homem, se evidenciavam.
Em outro instante, fora refletido um animal símil às serpentes, embora com um aspecto corvino, era decerto idêntico à minha máscara; mas vivo. A criatura mítica. Seus olhos eram amarelos e fúlgidos e seu corpo fascinante era esfaqueado por homens de olhos negros, sem esclera. O sibilar, vociferado pela criatura, era o clamor ensurdecedor do mais execrável sofrimento. E repetia-se a cada refletir dos espelhos, o quais cravados nas frontes dos inertes, sangravam cada vez mais; eram como manequins por todo o salão dourado daquele festejo cruel, manequins humanos. E na última cena — pois que após ela eu já não pude mais permanecer consciente — havia um ventre protegendo um feto que foi banhado por um líquido níveo, transfigurado em sangue logo depois, e partes deste embrião se via pelo sangue, rasgado e moído como carne fresca; e o fluído alvo-enrubescido manava de dentro de meu ventre, do meu corpo imerso em águas salinas que se escaldavam em vermelhidão; a água escarlate e ferrosa de um rio... a água que eu bebia... do flúmen carmesim de meu sonho daquela manhã.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…