Vale verdejante
Aquele inverno estava rigoroso. O ar gélido açoitava, sem escrúpulos, a face dos transeuntes e endurecia os seus corações, já embrutecidos, pelas dificuldades de uma rotina enclausurante. As vegetações quase jaziam, sem viço, e exibiam uma fina camada esbranquiçada, causada pelas constantes nevascas, nada comuns para aquela região.
Os animais também eram prejudicados e sofriam as consequências da escassez de alimentos. Doenças. Mortes. As carcaças dos pobres animais eram amontoadas em uma pira, não por ritual, mas por necessidade, e o cheiro dos pelos e carnes, enquanto eram incinerados, – com o intuito de conter as mazelas que emanavam de seus cadáveres, – causavam ânsias e amarguras. Ledo engano. As doenças logo reclamariam para si o direito – autoimposto – aos corpos dos moradores daquele local, primeiro das crianças e idosos, depois das mulheres e homens adultos.
A comunidade, outrora festiva e alegre, agora não tinha motivos para comemoração. O ânimo foi-se esvaindo, assim como a vida dos campos verdejantes, que emolduravam aquele belo lugar em tempos passados.
O vilarejo, batizado gentilmente de “Vale verdejante”, em referência clara às belezas naturais que possuía, agora era tomado por uma pesada aura inodora e insípida, reflexo do que agora aqueles pobres coitados traziam dentro de si. O verde pulsante das folhas de outrora tornou-se incolor, sem vida.
E, como eram supersticiosos, ponderaram sobre os motivos de tais agressões, que segredos os deuses e entidades haviam descoberto que justificassem castigos tais? Como crentes em maldições e contra maldições, agarraram-se ainda mais à fé, e direcionavam suas rezas e sacrifícios para todos os deuses que estivessem dispostos a ouvi-los.
E ouviram.
Numa noite fria, que reafirmava que nada mudaria, e confabulavam se iriam falecer de inanição ou hipotermia, uma esfera luminosa atravessou os céus e cravou-se violentamente nas colinas ao redor, iluminando a noite tenebrosa como um farol esmeralda de esperança, há tempos perdida. Sim, a cor que caíra do céu era indescritível, mas na obrigação de classificar os eventos, a cor era semelhante ao verde. O verde, que tanto almejavam, vinha trazer-lhes o terror? Os reflexos de luzes verdes e suas variadas nuances, criavam um caleidoscópico hipnotizante, tragando-os para dentro do mosaico enigmático, penetrante. O impacto da esfera causou um leve tremor de terra e uma cratera recheada com os destroços do que quer que fosse aquele elemento. No centro da esfera, uma mancha verde brilhante pulsava, como se estivesse viva.
Apavorados. Inertes. Não desviam o olhar da cratera, esfera. Ela tinha um poder invisível sobre eles, tornando-os marionetes sem controle dos próprios corpos e ações. Contudo, do mesmo modo misterioso com que foram dominados, sentiram-se libertados de repente e conseguiram, enfim, discutir sobre o ocorrido.
– O que será isso?
– Será que é perigoso?!
– Mas de onde veio isso???
– Céus, o que é isso?
Questionam-se, obviamente, não obtendo uma resposta plausível. Após algum tempo de indagações retóricas, por fim, ouviram uma voz ecoando em suas mentes:
“Venho do nada. Do vazio. Antes da existência das galáxias, dos mundos e da vida. O nada, esse lugar incompreensível para você, é minha morada, meu abrigo. Eras e eras, bilhões e bilhões de anos separam meu existir e o surgimento de sua frágil raça. Mas você me invocou. Clamou por ajuda e eu vim para ser a sua única saída. Não temas.”
Sentiram uma paz preencher cada parte de seus corpos. Ninguém ousava dizer mais nada, mas sabiam, o socorro viera e eles seriam salvos. E foram. Nos dias seguintes o mau tempo deu trégua, o sol voltava a iluminar os olhos e corações, derretendo a geleira surgida dos escombros das dores e mortes. Os animais, que haviam conseguido subsistir, ficaram mais fortes, suas doenças foram extirpadas, como se arrancadas com a mão. O mesmo ocorreu com os enfermos que resistiram ao doce chamado da morte, – e ela, havia sido expulsa daquele lugar por tempo indeterminado. Mas a melhora mais nítida era com a vegetação: tornara-se verde brilhante e viva, mas de um tom tão intenso, quase fosforescente. E em certas noites afirmavam que as folhas irradiavam uma luz verde intensa, mas não ousavam questionar os milagres recebidos.
E permaneceram firmes naquele acordo mudo. Sem questionamentos.
As verduras, que cresceram após aquele evento, eram deliciosas, cada mordida emitia um som suave, como um sussurro apaixonado aos ouvidos. Logo as árvores também deram frutos, suculentos e inebriantes, nunca haviam provado nada igual. E no meio de tantas dádivas insistiam em não enxergar os efeitos colaterais daquele milagre: suas peles estavam ganhando tons de verde água, bem sutil, mas perceptível. Mas não ousavam reclamar.
Os pelos dos animais também estavam tornando-se verdes. E quando abatidos para consumo, suas carnes e sangue tinham uma coloração esverdeada. Mas não se podia negar que isso tornava a carne ainda mais saborosa. E consumiam as carnes, verduras, frutos – tudo o que provinha da terra – com tanto afinco, obsessão. Sem questionamentos.
A terra já não era mais marrom, mas verde oliva. E banhavam-se nas terras, conectando-se a ela. E estavam. Primeiro foram os membros, os dedos já são tinham a forma humana, mas era semelhante a cipós. Sem questionamentos.
Os braços e pernas foram metamorfoseados em troncos esverdeados. O sangue transmutara-se em uma seiva verde limão, os órgãos internos adaptaram-se perfeitamente ao novo homem-vegetal. A locomoção era cada vez mais restrita, arrastavam-se por cima da manta verde – outrora terra – e ficavam horas parados ao ar livre, em um ritual de fotossíntese macabra.
E novamente a voz submergira nas mentes, solicitando a presença de todos na cratera. E foram. Quando suas mãos-cipó tocaram a esfera, sentiram algo se mover dentro dela. Um vulto surgiu na superfície e sorriu. Era o próprio ser-verde, aprendendo, copiando, invadindo. O verde havia consumido tudo e todos. E continuaria crescendo, para sempre.
A comunidade desapareceu em um silêncio vegetal. Onde antes havia casas e pessoas, agora havia apenas um vasto vale verdejante, coberto de flores e árvores que brilhavam levemente à noite. Quem olhasse de longe veria algo belíssimo, mas quem se aproximasse demais ouviria os sussurros nos galhos, risadas engasgadas e palavras esquecidas ao vento, e jamais seria visto em forma humana novamente.
— A arte, querida Bella, requer vida e morte, tu sabes… — Bellanna pretendia argumentar, todavia, Dhiego aumentou seu tom de voz ao notar que seria interrompido…