Solilóquio

Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney
Os acontecimentos anteriores me deixaram ainda mais convicto das incertezas deste lugar. Um salão de festas, cheio de gente, onde ninguém olhava diretamente para mim, sem nem ao menos esboçar uma qualquer comunicação, visual ou verbal, seja comigo, seja com outros presentes naquele momento… para piorar, aquela fatídica dança, aquela misteriosa parceira de noite que, além de me fazer magicamente entortar as pernas e mãos ao redor de seu corpo, me deixou tonto da cabeça e cheio de pensamentos ao final do evento…
Não diria estar me sentindo cativo aqui, à mercê de algum projeto secreto, nas mãos obscuras de um(a) maquinista oculto e arranjador de situações para, aos poucos, me levar a algum destino… pelo contrário: continuo afastando-me dessa conclusão e sentindo-me estranhamente confortável, servido diariamente de estímulos e atmosfera para o desenvolvimento da escrita. Pois sim, este é o verdadeiro objetivo que parece se desenhar por trás de minha presença e dos outros convivas do Castelo.
Leio-os, todos, com afinco, e retiro de suas experiências narrativas a conclusão de que estamos unidos pelas sensações, pela profundeza de ideias que o ambiente cercado por estas paredes parece cavar e encerrar mais — o resultado final dessa escavação, ainda um mistério… a incerteza no ar…
…
Há pouco, sentado diante desta biblioteca enorme de livros, disposta de maneira a — imagino — atender aos meus anseios (ou faltas) de inspiração, percebi-me atingido por uma vaga ideia: um raio capcioso de argumentação, de dúvidas quanto à realidade em que estou inserido, varou meu íntimo literalmente “do nada”... algo iniciado, se posso tentar adivinhar uma mínima origem, ao me desviar rapidamente das estantes e cruzar o olhar com o brilho espectral da Lua, invadindo este quarto…
Pois registro aqui que a Lua, vista da torre em que faço morada, todas as noites parece iluminar a paisagem sem barreira aparente. Da janela pela qual deixo entrar o ar nas deliciosas noites que fazem, junto com essa luz, sinto chegar igualmente até mim toda a sorte de sensações e mistérios que imagino rodar pelo mundo, invariavelmente causando em almas sensíveis os gatilhos necessários para se começar a pensar…
Eis o de agora: quem dirá (além dos raros cosmonautas) ter plena certeza de que a Lua se encontra lá, naquele céu misterioso e enganador que não sabemos seu fim? Se longe que estamos, e até onde nossos olhos alcançam, não podemos ter convicção alguma de não confundirmos uma árvore com alguma parede de maior estatura e verdejante; uma casa com algum tipo de projeção artificial, devidamente iluminada; um ser humano com alguma criatura além de nossa compreensão…
Vejam só, neste mesmo procedimento sobre o qual falo: por que essa reflexão? De onde tirei a iniciativa, estando há alguns minutos preocupado unicamente em tentar enxergar os títulos dos livros que me fazem companhia? São procedimentos mentais totalmente voluntários?... A própria linha de raciocínio e ação parece completamente indiferente a qualquer tentativa de apreensão. Qual terá sido o primeiro gesto, o pontapé inicial da minha série de atitudes que determinaram (pois assim deve ter sido) minha chegada a esta etapa da vida, a esse momento de incisiva reflexão? Mantém-se a pergunta…
Havendo resposta ou não para esse brilho do céu, para essa dúvida quanto às sucessivas etapas que me trouxeram a esse quarto, e por que decidi me atentar ao processo de pensar, certo é que cheguei aqui impulsionado por uma onda — já estando à espera (e à deriva) da próxima. Se nem mesmo os passos que eu daria ao entrar no Castelo — que me revelaram, por mais absurdo que possa parecer, o aprendizado da dança(!), além de outras descobertas quanto a habilidades de escrita — puderam ser previstos, que dirá ter plena certeza dos movimentos reais do satélite natural, assim nomeado por quem também acha ser apropriada a definição…
Encontrando ou não alguma razão em minha estadia no Castelo, uma resposta final ou explicativa de minha chegada aqui, certo é que estou mais aberto aos estímulos de fora, atento aos acontecimentos que se mostram e surgirão a cada dia aqui — já com a plena certeza de ter sido aceito nesse lugar por obra de alguma construção minha (antecedida por outras), consciente ou não…
Wallace Azambuja vive em Porto Alegre e estuda Letras na UFRGS. Sua paixão por sonetos é intensa e sua maior produção literária atual está voltada à escrita deste clássico formato poético. Atraído pelo mistério e profundidade da Literatura Gótica, o autor participou do Desafio Sombrio 2023, onde mostrou seu talento para o estilo obscuro e, também, na escrita de contos. Desde cedo Wallace se apaixonou pela leitura, iniciando-a através de gibis e…
Leia mais de As Crônicas do Castelo Drácula:
Perfeito, o Teatro — e nele a decadência | As máscaras são telas luminosas | Personas em suas tantas aparências | Roteiro de ventura confragosa;…
Nem um arco-íris faz | colorir dias gris | que tem por pretensão encantar, | mas, ao fim, | Só se faz desperdiçar…
Desejo pecaminoso | Impulso avassalador | Posso sentir seu sangue em meus lábios | Estou perdendo o controle..
— Levanta-te morbígero cadáver! | Teus olhos vítreos pálidos reluzem! | Odor de morte antiga que paláver | Sem verbo zumbe horrores que conduzem;…
No palco etéreo da sala escura, | ergue-se a vida vestida de fantasia, | com gestos vãos, em atitude impura, | finge um riso e esconde a melancolia…
No ventre palestino o prometido, um dia, | Nasceu de uma virgem, sob luz de profecia. | Filho de Josué, do Espírito gerado, | Foi pelo rei temido, em berço arado…
Quando Ozzy desceu ao abismo profundo, | recusou pactos com o barqueiro sombrio. | Seu óbolo entre as joias do príncipe eterno, | e as cordas vocais que evocam poder e frio…
Dê-me da escuridão que em ti reluz, | Glória e louvor a Lúcifer, o anjo de luz. | Apareça em santas trevas e deformidade, | E riremos juntos da celestial Divindade...
Sua obscura canção não pode encantar | Os surdos ouvidos de quem te condena. | Toda a sepulcral beleza põe-se a poetizar, | E aos olhos deles, você apenas blasfema.
A névoa do passado é melancólica | Lembranças d’este outrora se dispersam: | O outono e sua Maçã tanto simbólica, | O inverno e a solitude que se versam…
Bebe do meu pescoço, | dos meus seios, das minhas coxas... | Bebe até o sangue de minh'alma. | Some, deixando-me anêmica e louca…
No topo de uma profanada capela | nos antros de um cemitério | está ela, a vampira infernal, | feito gárgula fêmea ensandecida | sobre um macho cadáver humano.
Jamais imaginei te carregar | Na forma e substância d’esta mágoa, | No peito que se assola por lembrar, | Rendido ao desalento e morto em frágua…
Sou tal qual o monstro de Goya, | sou a fera cruel que te condena | a ser o alimento da minha fome, | devoro-te com o phallus e com a boca, | sou Chronos, o faminto…
Que fosses ente e crer-te eu sempre iria | No alvor rogar-te em puro amor vestal | Que fosses a Verdade, eu saberia | Honrar-te os mandamentos contra o mal;…
Circunda-me gris noite, estou tão só… | Por vezes dói, minh’alma s’esvazia | E lembro hei de tornar-me reles pó | Da vida cuja bruma é primazia…
“Pois bem antes do verbo, houve o grito. | E bem antes do céu, houve a carne. | E bem antes do amor, houve o medo. | E o medo moldou os deuses.”…
Os ossos doem, | Gélidos. | O último abraço | Arrancou-me a pele. | A carne, | Outrora viva, | Longe do corpo | Apodrece…
Engendra a substância de tua bela voz, | Lendo teu poema épico da batalha, | Donde os Titãs, jogados na fornalha | Do poder divino. Oh! Força algoz!…
Na antiga Mesopotâmia, o caos foi teu primor, | Geraste o céu, a terra e os dragões, | Em águas profundas pulsava teu fulgor, | Semente eterna de revoluções…
Belos são teus olhos sem vida, | tua pele, teus lábios e tuas maçãs do rosto. | Belo é o sangue que escorre lento | por essa carne que tanto amo…
Ó! Santo és Tu, luz de puro amor | Bendito sejas! Almo e grã mentor | Acima da ignorância que atormenta; | Envolve-me em esmero e me orienta…
Era o cão que latia, | a Lua enegrecida que reinava… | A fuligem de fogueira sacra a subir, | Enodia atravessando o bosque na madrugada, | fria, atenta, armada,…
Assim fragmentar-me e à tez sentir, | Aroma, calidez, silêncio a sós… | Desvelo uma clareira do existir | Às cordas d’este tempo em rijos nós…
Enquanto no convés observava | Revolto o mar estranho parecia, | A negra tempestade se agravava, | Um som horripilante s’espargia…
Eu não fui, desde a tenra e pura infância | Tal como eram todos — nem ganância | Tive símil — sequer vi como viam — | E as paixões que estimei não podiam…
Nas horas nebulosas, de enfadonhos | Momentos, a tristura estando alta, | Tristonhos ficam mais os pensamentos | Que tenho, ao lembrar que dei as costas…
Nas grotas d’uma lôbrega passagem, | A balça gris e sôfrega, que à vista, | Ornava em medo fúnebre a viagem | Aos versos d’um plangente sonurista;…
Já houve dias de calmaria, dias de tempestade. Já houve uma época que eu nem navegava. Por que raios fui me enfiar neste mar?…
Aslam E. Ramallo é um artífice da palavra cuja poética nos conduzirá ao âmago mais profundo do existir, onde a vida pulsa em sua crueza e a…