Escarlate
Antes de adentrar ao castelo, contemplei por mais uma vez aquela monstruosidade arquitetônica. Dentre as janelas, gárgulas e torres, algo me chamava a atenção, se tratava das belíssimas e grandiosas rosáceas, despertando em mim as mais profundas emoções. Elas traziam um tom escarlate bastante vívido e brilhante, o pálido luar deixava-as ainda mais lindas, como se a tinta usada para as pintar fosse sangue. Ainda absorta, me aproximei da aldrava e, ao tocá-la, senti meu peito palpitar em desassossego, meu colo inflava de ansiedade, era nítido que aquele lugar clamava por mim e eu por ele. Fechei os olhos e escutei sutis passos, e sussurros, até mesmo um leve passar de páginas, algum escritor ou escritora talvez, mas eu estava decidida a entrar.
Minhas trêmulas mãos abriram delicadamente a majestosa porta rúbea, o ranger dela ecoou castelo adentro. Fui recebida por uma cálida lufada que embaraçava meus cabelos. Eu estava completamente arrepiada, pois aquele ambiente me parecia familiar, contudo, eu tinha de ser cautelosa, pois não sabia quem eu iria encontrar.
Pois bem, resolvi andar lentamente admirando tudo e, de fato, sua fachada era imponente, mas nada se comparava ao interior, quão aprazível era admirar aquele teto altíssimo, imaginar cada pedra sendo erguida, paredes sendo construídas, a decoração era de muito bom gosto, algumas poltronas vitorianas em tons escuros, uma mesa enorme de jacarandá repleta de cadeiras de veludo roxas. Notei uma grande quantidade de pratos de porcelana branca e talheres de prata dispostos, havia também guardanapos e taças de cristal que brilhavam ao longo da mesa; preciso citar o notável candelabro de ferro fundido. Outros móveis compunham o castelo, senti-me uma mísera formiga diante daquele majestoso lugar.
Os anseios em descobrir quem era o anfitrião deste castelo e quem eram os demais inquilinos que perambulam neste colossal castelo, preenchiam minha mente, porém, estava temerosa, pois logo menos eu sentiria fome.
Distraída em meus devaneios, me deparei com uma determinada porta, igualmente linda, com adornos talhados a mão. Admirei com um certo fascínio e respirei fundo ao sentir a gélida maçaneta de prata. Com o coração disparado, abri a pesada porta de mogno. Diante de mim estava um enorme cômodo que me parecia ser uma descomunal biblioteca recheada de incontáveis livros, todos em capa de couro das mais variadas cores, perfeitamente organizados do tom mais claro ao tom mais escuro. A estante ocupava toda a extensão das paredes que mediam por volta de quatro metros de altura. Toda a marcenaria foi pintada no mesmo tom presente nas rosáceas. No centro, havia uma mesa redonda vitoriana coberta por um manto negro e de imediato recordei do notável fenômeno das mesas girantes, popularmente difundido na Europa durante o século XIX. Acima da mesa havia uma obra de numerosas páginas, ao me aproximar, percebi algo nefasto, pois sua capa parecia ser feita de pele humana, exalava um terrível odor pútrido, sua coloração também era desagradável, um misto de tons avermelhados com pinceladas de marrom. As páginas estavam puídas, as traças haviam devorado horrivelmente as laterais das páginas.
Quanto mais eu contemplava aquele livro, mais queria folheá-lo. Finalmente fui derrotada pela minha curiosidade, cheguei até a mesa e debrucei-me diante dele, um misto de excitação e pavor percorria minha pele. Ao tocá-lo constatei que realmente era pele humana, eu estava prestes a abri-lo quando ouvi um ranger vindo da porta, alguém acabara de adentrar na biblioteca, paralisada, sinto a brisa soturna acariciar minha nuca, pergunto para mim mesma quem será? Ou... o que será?
Os olhos de Ameritt me estudavam com uma certa fascinação, como se o véu que escondia minha natureza fosse rasgado, expondo o vazio e o negrume do meu ser…