Castelo Vampírico: Agora e na Hora de Nossa Morte
Diário de Rute Fasano
12 de dezembro - Depois daquele encontro com Drácula, pude me sentir inspirada o bastante para escrever. Aquilo foi um pouco parecido com a experiência que tive quando minha terapeuta me recomendou usar 2g do Psilocybe cubensis para tratar minha ansiedade, foi uma experiência ao qual eu não estava preparada e não sei definir se foi boa ou ruim, uma mistura de medo e prazer, inquietação e paz, que não quero repetir por ser algo muito imprevisível. Mesmo que depois dela eu tenha me tornado mais funcional por um breve momento. E assim como a viagem de cogumelo, eu não sei definir se quero outro encontro com Drácula. Esqueça as flores, esqueça o afeto por elas. Eu gostei daquele gesto, mas a experiência que veio antes eu não consigo definir bem o bastante para saber se quero repetir.
Estou um pouco irracional ultimamente, mesmo sendo bastante mente aberta e curiosa por demais, tem coisas que tem acontecido que estão além de uma explicação racional. Uma delas é essa minha vontade de andar nas madrugadas pelo castelo, feito aquelas damas de filmes góticos antigos com vestidos esvoaçantes e castiçal em mãos. Outra é a sensação latente de que eu irei ouvir a voz da minha amada a qualquer momento como um o sussurro do vento e seus dedos gélidos baterem à minha janela para que eu a deixe entrar. Isso faz com que eu queira perambular pelo castelo e apenas voltar para o quarto quando tiver que dormir. E realmente foi o que fiz, perambulei por todo ele sem encontrar uma alma viva ou morta. Investigando cada local que fosse possível e memorizando todos os caminhos que eu poderia passar sem que ninguém me percebesse.
13 de dezembro - Essas madrugadas de caminhada pelo castelo tem sido um bálsamo para mim, sem aquela ansiedade anterior que eu tinha de talvez encontrar Drácula ou um hóspede do castelo. Sei que uma hora ou outra terei que me dirigir a eles e compartilhar minhas dúvidas e reflexões sobre esse local que agora todos habitamos. Mas ainda não sinto que é chegada a hora. Estou escrevendo alguns contos, mas não os sinto bons o bastante, aquela sensação latente de sair do quarto tem me agitado, mais tarde sairei para caminhar.
Mais tarde - Escrevo isso com ódio, com um choro preso na garganta e usando tanta força para escrever que chega a marcar o papel. Fui, como de costume, perambular pelo castelo como há quatro dias já havia feito e caminhando pelos mesmos caminhos que eu havia memorizado. Me perdi por um momento em pensamentos sobre o que escrever dessa vez, o que fez com que eu caminhasse sem rumo. Encontrei uma capela abandonada em ruínas, odor de mofo entranhado nas paredes de pedra, bancos de madeiras todos danificados, castiçais com velas velhas e quebradas com suas chamas extintas, mesmo em destroços e esquecida, havia nela traços de que um dia fora bela e imponente, ainda era bela da sua maneira. Vitrais coloridos quebrados que em outros tempos mostravam imagens sacras, um crucifixo de ouro envelhecido acima do altar ao qual não pude olhar atentamente, pois a grande bíblia sobre o ambão tomou toda a minha atenção. Suas páginas estavam amareladas pelo tempo, porém intactas em comparação a todo o cenário envolta dela, aberta aguardando para ser lida. Toquei suas páginas e como esperado estava no salmo 91, porém marcado com o que parecia ser sangue seco estava o salmo 89, tentava em vão conseguir ler o versículo 48 que estava mais manchado, até que ouvi um sussurro muito perto do meu ouvido a pronunciar essas palavras:
— Que homem pode viver e não ver a morte, ou livrar-se do poder da sepultura?
Surpreendida, olhei a pessoa dona daquele sussurro, uma figura translúcida oscilante, vestida de branco, me aproximei devagar, sentindo o peso do meu próprio desconforto e angústia aumentarem. Seus olhos castanhos claros e a palidez sobrenatural que sempre a envolvera. Era ela, aquela que amei incondicionalmente sem nunca entender o porquê. Aquela que sempre soube que havia algo errado comigo, que via além das máscaras que eu usava para enfrentar o mundo, que compreendia minhas obsessões estranhas e meus medos mais profundos. Aquela que o nome eu nem sequer ouso mais pronunciar. Olhou-me com aquele seu olhar paciente e gentil e aquele sorriso doce que sempre me desarmava, e naquele momento minha mente se esqueceu do motivo de estar ali, pois nada mais importava. Tomei ela nos braços, senti-a com todo o meu corpo e meu coração, sentindo seu cheiro doce, fresco e leve. A beijei sem pressa como se nunca tivesse partido, ela me olhou ainda sorrindo e se desvencilhou delicadamente, segurou minha mão esquerda, e colocou minha mão em sua cintura e depois pôs a mão em meu ombro, e começamos a valsar, naquele silêncio incômodo, como nos velhos tempos. Dançamos, não sei por quanto tempo, até que abruptamente rodopiamos uma, duas, três, quatro vezes, ela olhou em meus olhos e curvou o corpo para trás com certa violência no meu braço direito e parou, e era como se eu tivesse despertado para aquele momento. Tudo aconteceu tão rápido que fui impedida de conseguir fugir da situação que me paralisou.
O pouco de cor que sua pele pálida tinha foi roubado, tornando seu rosto uma máscara de cera, seu belo rosto desvanecendo em um grito surdo. Aquela casca vazia, mole e sem movimentos. Pesada em meus braços, e sendo um peso sufocante em meu coração. Havia vozes, vindas não sei de onde, em uníssono sussurrando como em uma oração: — Pallor Mortis.
Seu corpo começava a pesar mais e mais, fazendo com que eu fosse obrigada a me sentar e acomodar melhor seu corpo sem vida, um frio gélido a envolveu, penetrando minha carne, me causando calafrios e um ardor nos olhos, como se eu tivesse em meus braços um mármore gelado. As vozes novamente: — Algor Mortis.
Eu tentava aquecê-la em vão, impedir que se fosse, friccionar sua pele, mas nada adiantava. Seus músculos se enrijeceram, uma imobilidade agonizante, deveria tê-la soltado para que não presenciasse mais nada daquilo, só que não havia coragem em mim para deixá-la sozinha mais uma vez. Vozes: — Rigor Mortis.
Sua pele começou a adquirir tons avermelhados profundos, com sangue estagnado nas extremidades, marcando seu corpo agora inchado, meus dedos afundaram na sua carne mole e apodrecida enquanto eu a banhava em lágrimas que não conseguia conter, pois, a cada estágio, sua falta de vida era um peso no meu coração, que me consumia e matava aos poucos. Vozes: — Livor Mortis.
Seu corpo começou lentamente a se desfazer nos meus braços, deixando seu rosto disforme, desconhecido. O odor repulsivo e forte, já conhecido meu, invadiu minhas narinas e adentrou a minha garganta, sentir ele tão fresco, tão perto, era lancinante, fazia revirar o meu estômago e tentava me controlar para não regurgitar, o que foi em vão, pois além de lágrimas, também a sujei de restos malcheirosos do meu estômago. Vozes: — Putrefação.
Ela foi resumida a um esqueleto com vestígios de algo que antes seria alguém. Despida de sua antiga beleza, para uma beleza macabra, sem carne, envolta num manto alvo, como uma santidade cadavérica. Vozes: — Decomposição.
As vozes em coro silenciaram. Seu esqueleto em meus braços. Vestígios de tudo que foi e nunca mais será. E eu presenciei cada etapa de seu inevitável fim. Aquele fim que imaginei detalhadamente quando a deixei sozinha apodrecendo naquele cemitério. Ela definhou em meus braços, pela segunda vez. Entre lágrimas e dor, vi-a morrer pela segunda vez. Meu olhar então se voltou para a cruz que antes eu não havia dado atenção, e lá, em lugar do Cristo morto, vi uma figura que me encheu de ódio. Era um Jesus vampírico, uma distorção grotesca daquilo que um dia acreditei por ela. Na primeira morte dela, reneguei Deus; agora, diante dessa imagem profana, reneguei Drácula, por me fazer passar por essa agonia novamente. Seu sorriso maldito parecia zombar de minha dor, alimentando ainda mais a minha revolta.
Ele desceu lentamente daquela cruz, como uma figura divina, era como se o tempo desacelerasse ao seu redor, coroado e envolto em um manto de sangue e carne, extremamente pálido como se não houvesse sangue em seu corpo. Eu tremia, não queria mais nenhum encontro com Drácula, mas aqui estamos novamente, e eu o temo e o odeio, porém sua figura parecia obrigar uma contemplação forçosa e uma paz ilusória que lutei para não me permitir sentir. Não agora, pois naquele momento eu precisava odiá-lo. Cada vez mais, a presença opressiva de Drácula se fazia sentir, seu olhar penetrante atravessando minha alma enquanto eu lutava para manter minha mente própria. Não queria permitir que ele exercesse nenhum poder sobre mim.
Eu estava perdida naquela capela abandonada, presa entre o céu e o inferno, entre o amor e o ódio, entre a vida e a morte. Talvez condenada àquele purgatório que era o castelo, uma prisioneira, talvez assim como Drácula. Sua presença me oprimindo, e com um comando de mãos, como da última vez, me fez despertar mais uma vez em meu quarto, onde estou nesse momento a escrever meu segundo encontro com ele.
P.S. Talvez Drácula, tentando pensar racionalmente agora, use desses subterfúgios para que os que estão no castelo se sintam mais inspirados, ou tenham sobre o que escrever, talvez olhar nossa dor, analisá-la e escrever sobre ela, não sei. Só sei que ele ultrapassou alguns limites nesses seus métodos. Usou de coisas que eu tentava esquecer ou achei que deveria esquecer. Outra coisa que percebi foi que em nossos encontros, nunca trocamos palavras, mas sim pensamentos, sensações, como se respeitássemos mutuamente a decisão de manter o silêncio. Ainda não o compreendo e isso me perturba, porém naquele momento terrível, pude compreender que minha jornada estava bem longe de terminar.
Condenei-me a viver entre paredes de concreto e pedra fria, quando minha mente queria fugir para as florestas, admirar a altura das árvores…