Trilogia Sprawl: Parte #1 Neuromancer

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O universo cyberpunk é apaixonante e cruel, assustadoramente amplo e confuso, subjetivo e brutal, crítico e revolucionário, dentre muitas outras coisas. Abrangendo desde gêneros literários, jogos de vídeo game, músicas, vestimentas, características estéticas… se compondo como um todo a ser explorado. Com luzes neon iluminando as ruas à noite, implantes cibernéticos, conflitos entre gangues e um mundo dominado por megacorporações, o cyberpunk (que se tornou, recentemente, um vocábulo reconhecido pela Academia Brasileira de Letras) se materializa como uma crítica clara e explícita ao caminho que a humanidade trilha há décadas: um mega corporativismo ultra capitalista.

É impossível tocar no assunto sem citar e se aprofundar na trilogia que pavimentou a estrada do sub-gênero literário: Neuromancer, Count Zero e Mona Lisa Overdrive, conhecidos como “trilogia Sprawl”, do autor William Gibson.

Neuromancer (1984) é o primeiro livro da trilogia e, também, é aquele que captura o leitor e o apresenta ao estilo de escrita do autor. Ora extremamente descritiva (e nada explicativa), ora direta e dinâmica, a escrita de Gibson pode impactar negativamente os leitores de primeira viagem.  O autor discorre, por páginas e páginas, pelos mais ínfimos detalhes da cidade de Chiba: as tecnologias dispostas por toda parte, as gírias locais, as drogas utilizadas, as dinâmicas entre a população local… O que pode ser considerado como característica de uma escrita amadora, ou como um verdadeiro truque de mestre. Gibson alterna a quantidade de informação disposta ao leitor conforme a linha narrativa do capítulo em questão. Quando acompanhamos Case, o cowboy (hacker) e personagem principal do livro, o autor é específico com relação aos equipamentos e técnicas utilizadas, assim como sobre o ciberespaço (termo cunhado por ele mesmo). Quando acompanhamos outro personagem, que pouco sabe sobre os acontecimentos, o autor também nos apresenta com pouca informação. Assim, nos vemos com o mesmo nível de conhecimento que os personagens que estamos acompanhando, tecendo uma relação pessoal e íntima com eles.

No início do livro nos deparamos com um personagem principal condenado. Case tentou roubar de seus próprios contratantes, sendo infectado com um vírus que o impede de se conectar à rede. Case está em estado de completo colapso, preso às memórias de sua ex-namorada e à rotina criminosa de Chiba. Aqui, vemos como Case se encontra devastado e sem perspectiva, sentimentos comuns dentro deste novo universo. O personagem se submete a trabalhos perigosos para criminosos locais, em troca do suficiente para viver mais um dia. Gibson, então, nos presenteia com a personagem mais singular e inesquecível de toda trilogia: Molly Millions. Molly é personagem recorrente nas histórias do autor, aparecendo pela primeira vez em Johnny Mnemonic, três anos antes de Neuromancer. Forte, em todos os sentidos, e apaixonante, a razorgirl surpreende pelas marcantes características físicas (as lentes prateadas sobre os olhos) e pela personalidade incomparável. Molly é o “estado da arte” do autor. Todas as cenas em que aparece são marcantes, especialmente quando o autor vai nos mostrando pequenos fragmentos sobre o passado obscuro da personagem.

Molly aborda Case para convocá-lo, sabendo de suas habilidades como cowboy, a mando de Armitage, outro personagem que nos surpreende ao longo da obra. Case recebe a possibilidade de ser curado, mas deve ajudar Armitage em determinadas missões que o apresentarão a desafios jamais vistos. Neste momento o autor nos apresenta a característica mais marcante da trilogia: a junção do cyberpunk com a religião vodu. O ciberespaço deixa de ser a representação gráfica de dados corporativos e passa a ser lar de entidades sencientes, como inteligências artificiais que se materializam no espaço virtual, se movimentando e buscando compreender umas as outras. É inegável que a proposta gera uma sensação desconfortável no leitor, que se vê diante de algo que nem as forças de segurança digital do livro sabem lidar. Case se vê perante algo muito maior do que ele mesmo: o questionamento sobre quando, e como, isso começou (algo que só será respondido, em partes, no terceiro livro da trilogia) e quais os impactos por vir.

O misto de tecnologia, investigação, religião vudu e questionamentos sobre humanidade e moral nos mantém presos à obra, que escala e ruma as resoluções da metade para o final, com uma conclusão surpreendente e inesquecível

Neuromancer é visto por muitos como o melhor livro da trilogia (e do autor) e ponto de partida de todos que querem compreender o início do universo cyberpunk. Sua influência nas obras que se seguiram é perceptível nos elementos desenvolvidos pelo autor: constructos de personalidade (o personagem Flatline, que auxilia Case em diversos momentos), megacorporações que dominam as cidades (Hosaka, Maas Biolab, a infame e familiar Tessier-Ashpool), implantes cibernéticos por toda parte (como não se lembrar dos braços de Ratz logo no início do livro?) e o universo abstrato e assustador que é o ciberespaço. 

Os escritos de Gibson são uma experiência a ser vivida e que todos os amantes do cyberpunk deveriam conhecer para entender as estruturas que sustentam esse gênero.

Texto publicado na Edição 12 da Revista Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2025. Ler edição completa

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Leonardo Garbossa

Leonardo Garbossa nasceu em São Paulo, em 1995. Desde jovem é um leitor apaixonado e grande fã das obras romancistas. Sentimentalista por natureza, iniciou sua vida acadêmica na área das ciências exatas, migrando em seguida para psicologia, que estuda atualmente. Teve a infância conturbada após perder o pai para o suicídio, tema que se tornou seu foco nos estudos acadêmicos. Foi criado pela avó, que fez o máximo possível para ensinar a ele a importância da excelência nos estudos e na cultura. Em Dezembro de 2020, percebeu que a escrita poderia ser uma ferramenta adicional à terapia. Desde então, passou a escrever quase diariamente. Após dois anos, e muito trabalho depois, resolveu publicar os melhores textos, todos inspirados em pensamentos, sentimentos e emoções pessoais, para que outras pessoas possam se sentir acolhidas em suas palavras.

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