Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

O sol era a nódoa escarlate na imensidão enevoada em um carmim enegrecido; o sol não tangível em sua forma de estrela, era tão só um clarão rubro, espargido pelo firmamento instável. Abaixo dele, um oceano de mármore preto tal a noite que se via, por vezes, entre as clareiras do céu, criadas pelo vento intenso e amedrontador. Noite e dia; um entardecer melancólico, um paradoxo único. Das sombras no mármore, o fogo queimava na cor do sangue mais puro entre vilas cujas casas erguidas eram como ruínas de uma ancestral civilização. 

Meus pés aquecidos, o frígido sopro oscilava os galhos dos secos carvalhos mais próximos e, conforme eu caminhava, os arbustos de flores se faziam presentes como um jardim etéreo; flores símeis às dálias, porém, com pétalas em voluta, formando um redemoinho escarlate; eram leves como penas, rarefeitas pétalas brilhantes em cor negra-sublime com nuances carmesim. Espinhosas como as rosas, fascinantes como tudo o que habitava aquele lugar. Por quanto andejava, sentia a melancolia em meu peito. Desejei tanto adormecer sob tal lumiar coralino, enquanto a névoa negra dançava acima.

Nada, todavia, era mais deslumbrante que aquele castelo; em torres pontiagudas, esculpido em atro mármore e bruto rubi; desvelou-se a mim quando subi em outras ruínas, como antigos lares destruídos pelo tempo. E lá estava a sua inconcebível arquitetura. Intui um dever profundo de adentrar os seus umbrais e continuei minha marcha até que tal feito fosse realizado. Encontrei nímios frutos pelo rumo, nas veredas e pontes; eram tão semelhantes às uvas, de uma doçura apetitosa. Ainda que estas árvores frutíferas e outras plantas se movimentassem pelo ventanear; ainda que o mármore rachasse, vez ou outra; e o fogo ardesse, crepitante, por onde os olhos podiam enxergar; o silêncio beijava ao derredor, sem medo.

Então, ouvi som de queda d’água e sorri; sentia sede. Subi sobre mais escombros e alcancei uma pequena fonte ornamental próxima ao palácio sombrio. A água era negra, fluída, aprazível. Lavei com ela o meu rosto, renovando minh’alma que, na verdade, parecia distante de mim. Dali, portanto, fui à entrada da monumental maravilha em sua tétrica constituição. Seus umbrais gigantes se abriram para mim, sem que eu precisasse tocar em sua aldrava. Havia um lago em seu interior, colunas esculpidas com anjos e seres míticos; a luz do entardecer carmim adentrava os vitrais criando uma iluminação fascinante. À frente, um imenso trono de veludo encarnado.

Não me dirigi ao trono, ponderei sobre quem seria, pois, digno de tamanha magnificência. Em resposta à minha íntima indagação, passos ecoaram e, fitando na direção do que ouvia, avistei um homem forte. Seu corpo era como de um deus, e tinha uma tez com cicatrizes em sua fronte. Seus olhos eram rubros e brilhantes, uma roupa negra e régia o cobria. Era de uma beleza inenarrável. Tinha cabelos finos e curtos — os quais se movimentavam como as pétalas vistas outrora pelo caminho. Era um homem alto, sua força era visível e majestosa; se próxima a ele, decerto me sentiria como uma pequena criatura ínfima. Olhava-me, ele, atento e sério. Tão diferente de mim… eu que estava descalça e com meus soltos cabelos orvalhados pelo clima, sofrível, pois marchava no mármore. Decerto não éramos da mesma origem.

 — Estás em meu reino, em meu palácio. Bebeste de minha água e aqueceste os teus pés em meu mármore. Admiraste meu jardim e desejaste tocar o veludo de meu trono. — Dissera em tom sereno e grave, como um trovão sob controle. — E não sabes sequer o meu nome. Ao menos sabes como chegaste até aqui? — Indagou e sua voz que me embargava, assemelhava-se a um vinho de doce aroma e seco sabor. Prostrei-me ao chão, pois reconheci, em meu âmago, que estava de frente a um ser majestoso, um rei de um reino carmesim.

— Perdoe-me, vossa alteza. Despertei à beira de um oceano e, invitada por um ser de poética nume, adentrei seu pequeno barco e ouvi seu lirismo melancólico até descer nas vossas terras. O ser poético fora uma ilusão, transfigurado em pedra, uma estátua devaneada por mim. Não compreendo mais nada além disso e fui enlevada pela sublimidade de teu grandioso castelo. — Disse, célere; respirei profundamente ao término e mantive-me de joelhos. O silêncio pairou por longos instantes.

— Levanta-te. — Eu o obedeci. Era agradável retornar meus olhos ao seu austero semblante. — O Sonurista da Morte não é uma ilusão. Não compreendo, todavia, a razão pela qual ele te trouxe até meu império. Vês? — O ser estendeu sua mão esquerda e os umbrais de seu palácio se abriram ao seu comando. Então vimos a paisagem em completude, um reino carmim e negro, envolto a fogo rubro, mármore-breu, lava, rochas ígneas, ventos, natureza morta e flores raras; era lindo e solitário. — Este é o Inferno. — Explicou, todavia, não compreendi. — Sou o rei do Inferno há éons, incontáveis noites, inumeráveis dias. Esta é a minha terra, de rara beleza.

— Como tu és, vossa majestade. — Sussurrei, senti-o me encarar. — Perdoe-me, majestade. Apenas devo dizer que se cá estou, então, devo servir-te… não há nada em mim… há nada que sou… nem mesmo tenho nome… — Eu não tinha memória do antes de despertar naquela areia negra, com a água negra daquele oceano em meus pés. Sequer um nome eu tinha, ou uma história. Voltei-me ao rei, aproximei-me devagar. 

— Teu nome será Líria, pelo lírico perfume doce que emanas e pela poesia vestal dos teus olhos. — Reconheci-me Líria, intimamente. — E deverás chamar teu rei pelo nome que o pertence… Ahzaez. Eu sou Ahzaez. — Afirmou e manteve seus olhos em mim, olhos de raro rubi.

— Ahzaez… — Sussurrei e, para ele, sorri.

Texto publicado na Edição 12 da Revista Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2025. Ler edição completa

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Sara Melissa de Azevedo

Diga-me, apreciaste esta obra? Conta-me nos comentários abaixo ou escreva-me, será fascinante poder saber mais detalhes da tua apreciação. Eu criei esta obra com profundo e inestimável amor, portanto, obrigada por valorizá-la com tua leitura atenta e inestimável. Meu nome é Sara Melissa de Azevedo. Sou Escritora, Poetisa e Sonurista. Formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial. Sou a Anfitriã dos projetos literários Castelo Drácula e Lasciven. Autora dos livros “Sete Abismos” e “Sonetos Múrmuros”. SAIBA MAIS

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