Sob a luz do lustre dourado
Estimado amigo, hoje escrevo-te pela manhã.
Após meu encontro com Maria, obtive certas respostas, creio que ainda permaneço abalada devido as recentes descobertas. Estou sozinha, estimado amigo, nada tenho, mesmo a mais vergonhosa mácula impregnada em meu passado fora extinguida com o disparar das horas e dos anos. Devo contentar-me com esta recém-adquirida nova vida, e transformá-la em uma oportunidade valiosa de encarregar-me de reconstruir minha imagem, afinal não fora isto que desejei toda a vida? Por anos, em momentos de descarrego emocional clamei em desespero por uma forma de aproximar-me da realidade, dos demais ao redor, como parte de um todo, a peça mais valiosa e não mais o borrão disforme vergonhosamente manchando o bonito cenário transcrito no livro da vida.
Lamento minha perda, não compreenda meu anseio pela nova vida como inércia.
Pois bem, após Maria e eu deixarmos o leito em vão em busca do relógio de ametista, unidas deslocamos nossos passos pelo interior do castelo, porém nada encontramos, como se a lembrança do artefato, e do caminho feito por mim ao vosso encontro, fora apenas fruto de minha mente criativa e exaurida.
Um minuto, caro amigo, fora empurrado algo por debaixo de minha porta e não posso ignorar esta ocorrência.
Escrevo-lhe horas após a ocorrido.
Paciente amigo, volto imensamente intrigada com minhas novas circunstâncias; algo fora deixado para mim, um convite de nosso misterioso anfitrião, vou transcrever suas palavras para que o registro deste evento jamais se perca.
Diz a missiva:
Inestimável conviva.
Com honra, e profundo fascínio, venho por meio desta carta convidar-te para o anual Baile de Máscaras do Castelo Drácula. O trajo deve ser formal, como deves presumir, e tua máscara deve lhe cobrir o rosto ou parte dele. Serviremos um banquete memorável à meia-noite e as extraordinárias taças de diamante vestal receberão nosso liquor-carmesim, o especial da casa, para que brindemos ao ápice da Lua Cheia. A música findará às três da manhã e os estimados hóspedes deverão regressar aos seus leitos neste momento. Solicitamos a presença, sem atrasos, às dezenove horas de amanhã. Que sejamos agraciados com a tua presença sublime neste deslumbrante evento.
Respeitosamente, Conde Drácula.
Interrompo meu relato por agora, pois o tempo é curto, e preciso do auxílio de Maria com os arranjos do baile, até breve.
Benquisto amigo, escrevo-te pela madrugada.
A noite iniciou de forma formidável, Maria e eu permanecemos obstinadas a encontrar uma resposta para o desaparecimento do artefato e a sala onde deveríamos encontrá-lo. Durante nossa reflexão, cuidamos de nos aprontarmos para o baile. Maria pediu-me que cortasse vossos cachos ruivos de mechas esverdeadas, fazendo deles uma nuvem volumosa de bonitos contornos espiralados, disse ela, que o novo corte lhe traria modernidade, uma vez que o ambiente em que nos encontramos era abarrotado o suficiente pelo passado, como um eco seco dos anos passados aprisionados nestas paredes medonhas envelhecidas.
Embora a valentia e a ferocidade façam parte da personalidade de minha nova amiga, a ternura trasborda de vossos olhos, eu a vi no momento em que o sorriso contido tornou-se alongado á medida que os olhos deslizaram por meus trajes, os poucos que ainda me restaram, porém ainda datados. Descobri que Maria é uma exímia colecionadora de artefatos antigos, trajes históricos estão em sua lista de preciosidades. Com tamanha felicidade apresentou-me o traje escolhido para a noite do baile; um belíssimo vestido francês verde-oliva repleto de pompa, com aplicações negras por todo o tecido, aberto e alinhado à cintura, acompanhando de peitilho, mangas e gola, ambos bufantes e rendados, por detrás da sobreposição formava-se uma cauda repleta de excepcionais pregas negras.
Maria explicou-me didaticamente os cuidados que tomava com as peças, e o traje, o qual fora adquirido de segunda mão, era uma raridade histórica de alto valor, e não poderia jamais ser manuseado com descuido. Ao apresentar-me vosso baú de preciosidades mal pude crer em meus olhos, pois junto aos tesouros de minha amiga estava meu vestido de baile, o vestido o qual jamais ostentei, pois logo após sua aquisição fui obrigada a deixar meus pertences para trás. Creio que o destino juntou-me a Maria, esta criatura nobre, querida e obstinada.
Ao sentir o vestido, que ainda permanecia belo e branco quanto me lembrava, e a delicadeza do cetim e da seda, transbordei em lágrimas. O belíssimo vestido de noite decotado, de corpete baixo, manga rendada, saia drapeada e cauda, que presa a cintura, na parte posterior, alongava minha silhueta, sempre fora o meu favorito. Após estarmos satisfeitas com as vestimentas, nos comprometemos a investigar o espaço, e nos encontrarmos no salão de baile.
Embora dolorosamente enfraquecida, cobri-me com minha capa e desci as escadas devagar, cuidadosamente para não encontrar-me com os demais moradores do castelo. Ao aproximar-me do salão ouvi a movimentação e a música que preenchia todo o ambiente. Em frente a porta, duas figuras mascaradas recepcionaram-me com cortesia, eu os cumprimentei receosa e entreguei minha capa, porém o simples movimentar de suas mãos, ao tocarem no tecido e logo após girarem sincronizadamente as maçanetas da grande porta dupla do salão, trouxesse um vento frio e cortante, arrastado através da movimentação das deslumbrantes figuras, também mascaradas, transitando com uma delicadeza mórbida pelo baile, feito marionetes.
Minutos após a minuciosa inspeção, não reencontrei minha amiga, ou qualquer outro rosto familiar, porém, afastado da multidão de bailarinos ardorosos ao som da sinfonia número cinco de Vivaldi, uma figura masculina de bonitos cachos loiros dourados, pele alva, bigodes finos, e olhos de um azul profundo, como os das campânulas soterradas pela neve encontradas por mim certa vez próxima ao poço, se aproximou sorrateiro como uma raposa e estendeu os dedos alongados e espaçados vagarosamente para mim em um convite para uma dança. Com o decorrer da movimentação teatral e exaustiva de nossos corpos projetou-se em minha mente um rosto masculino do passado, um erro o qual por dias venho procurado esquecer.
– Trindade? – Exprimi receosa, correndo os olhos por suas vestes brancas, como as dos oficiais da cavalaria. Contendo o impulso de tocar-lhe a face em busca de reconhecimento, afastei-me abraçada ao meu próprio corpo.
Ao ápice da lua cheia, o homem de meu passado estendeu a mim uma taça de diamante vestal repleta de um liquor-carmesim, exatamente como descrito na missiva de nosso anfitrião.
Contemplando os olhos, que outrora brilhavam em um azul celeste místico, distingui um ponto carmesim crescente o qual tomou a pupila rapidamente, distanciando a figura masculina da familiaridade anterior, deixando a imagem do homem de meu passado para trás, honestamente deixara de se igualar a qualquer ser humano comum.
A lembrança de Trindade, mesmo que por alguns instantes, lembrou-me da dor de retornar a memórias regressas, ultrapassando meu ambicioso desejo de permanecer altiva, e não desejava mais transformar-me, mas sim permanecer autêntica, afinal, minhas memórias e falhas fariam de mim a sobrevivente a qual deveria não mais representar e sim tornar-me.
A figura, agora estranha para mim, novamente estendeu-me a taça, porém, não me atrevi a tocá-la, pois ao recorrer ao instinto de tocá-la ouvi dela um grito agonizante á medida que o liquor ocupava minha atenção.
Sob a luz do lustre dourado e tortuoso de sinuosas curvas semelhantes a garras, permaneci solitária, mesmo meu acompanhante, desapareceu obediente a regra de recolhimento, e desacompanhada segui o clarão da luz pela madrugada, porém, o que testemunhei ao procurar pelo corpo celeste cintilante foi o retorno das memórias de um passado sangrento e lascivo, e pela primeira vez em minha curta vida, senti-me corajosa, nada amedrontada, preparada para enfrentar meus demônios e buscar uma forma de estabelecer minhas forças.
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