Fluxo do Óbice
Diário Não datado – Encontrei uma humana
Desde que meu celular descarregou totalmente, me perdi um pouco com a minha escrita, deixei a desejar algumas coisas. Me encontro numa maré de dúvidas cercada de coisas que me atormentam de algum modo avassalador que me consomem e até a minha fome está em escassez.
Quando Jason e eu fomos destinados a visitar este castelo, não nos foi dito nada além do que nossa vinda e agora que já nos encontramos aqui, sinto que sei ainda menos. Conheci a jovem bela e solitária Astrid, que além de ter vivido em uma outra época, é uma humana que se encontra ainda em vida. O tempo não é mais equivalente desde que me tornei imortal, mas esse encontro com Astrid me deixou em conflito com minhas expectativas pessoais.
Nosso diálogo foi muito curto, mas senti uma conexão com tal, que me fez querer entender um pouco mais o propósito deste castelo. As vozes que antes foram escutadas de muito longe, agora são reais e existem pessoas nesse lugar além do anfitrião. O bálsamo que me atormentara outrora agora sumiu de vez e me sinto sem um sentido a que buscar além de verdades absolutas. Se é que existe alguma.
Vim para este lugar como subordinada com um propósito não específico e o que me restara além de divagações e disparates aleatórios é o Jason e um salão cheio de indivíduos que buscam algum sentido neste percurso.
— Jason, precisamos aprender a nos comunicar por telepatia, vamos nos unir mais do que já somos e vou precisar que haja com mais cautela, estamos entendidos?
— Miau! — Jason confirma com a cabeça.
Dia __
Um outro dia se passou e me recordei do encontro com Astrid, quando fomos à procura do relógio e que não encontramos nada além de mais uma sala vazia neste imenso castelo. Quão arraigada este sórdido acontecimento me aproxima a um pútrido estado de estagnação e frigidez inconsolável.
Caminhei neste quarto sem pensar em palavras que me aproximassem da minha escrita diária. Que me trouxessem alguma inspiração efêmera e me tirar desse abismo em que me encontro. Lembro-me que Astrid tem uma escrita solitária e sinto culpa por vaguear em suas palavras intimamente sem decoro.
Tenho o Jason como um companheiro para toda uma vida.
Somos gélidos, somos siameses em alma, nossas mentes se cruzaram em um destino mortificado de imortalidade, temos o mesmo desejo e na frígida presença em que me encontro, ele tem sido o meu maior consolo.
— Miau!
Jason me trouxe uma mensagem telepática enquanto caminhava do corredor até o nosso leito, na distância eu já percebera que algo novo estava surgindo e ao deparar-me com a missiva em sua boca felina:
Inestimável conviva, com honra, e profundo fascínio, venho por meio desta carta convidar-te para o anual Baile de Máscaras do Castelo Drácula. O trajo deve ser formal, como deves presumir, e tua máscara deve lhe cobrir o rosto ou parte dele. Serviremos um banquete memorável à meia-noite e as extraordinárias taças de diamante vestal receberão nosso liquor-carmesim, o especial da casa, para que brindemos ao ápice da Lua Cheia. A música findará às três da manhã e os estimados hóspedes deverão regressar aos seus leitos neste momento. Solicitamos a presença, sem atrasos, às dezenove horas de amanhã. Que sejamos agraciados com a tua presença sublime neste deslumbrante evento.
Com respeito, Conde Drácula.
Após a leitura, sinto uma fraqueza pela “falta” que me acomete, e com esta carta sei que respostas serão esclarecidas.
— Jason, precisamos encontrar Astrid, nossa nova companheira e amiga. Temos um baile à nossa espera.
Diário Não datado – Amizade
Sou completamente movida pelos meus sentimentos e Astrid me trouxe algo que já não sentia algum tempo... saudades da minha terra acalorada e onde moram todas as minhas amigas.
Desde que este cadáver ambulante não sente mais as gotas escorrendo pelo rosto de suor, tenho a impressão de que me afasto cada vez mais do que já fui um dia e mesmo inconsolavelmente angustiada, sinto que algumas coisas estão por vir.
Meu encontro com Astrid dessa vez foi mais íntimo e com uma confiança mútua pela minha nova amiga, compartilhei minha coleção preciosa de roupas e artefatos que passei alguns dos meus anos de vida de escritora independente garimpando em sites e brechós. Minha coleção vai além de indumentarias e, ao ver um vestido específico no meu baú, vi os olhos da minha amiga solitária brilharem pela primeira vez.
Aquele rosto jovial e sensível estava radiante, Jason brincava com Astrid enquanto ela cortava meu cabelo, um penteado novo para fazer jus à minha nova personalidade que luto diariamente para aceitar. Nos olhamos no espelho juntas, com nossos trajes, Jason estava usando um fraque vitoriano verde oliva, combinando com meu vestido, e um colar elizabetano preto, combinando com os detalhes do meu vestido, seus olhos me direcionavam amorosos e ele ronronava de felicidade.
Minha amiga Astrid estava belíssima naquele traje que fora feito especificamente para ela, uma jovem mulher com sentimentos tão profundos e que agora poderia compartilhar um pouco de suas dores comigo. Nos olhamos no espelho de maquiagem feita, cabelos no alto e combinamos de nos encontrar no baile.
Baile
— Jason, estamos devidamente trajados para a ocasião, não acha? Sinto que nos falta algo...
— Miau! — Jason confirma e telepaticamente esboça uma máscara em minha mente.
Desde que eu soubera da presença de outras pessoas neste castelo, o eflúvio que discorre neste ambiente tem me deixado deveras questionadora. Enquanto andamos até uma cabana de um homem esguio, os tons da cabana me chamaram atenção, parei para apreciar enquanto Jason procurava uma máscara. Como imaginar que estaríamos em um lugar como este e um evento como tal, podendo enfim usar meus trajes que estavam guardados, que utilizei apenas para algumas fotos com meus livros.
— Miau! — Jason me chama telepaticamente mostrando uma máscara de meio rosto que combina com os tons do meu vestido. Deixando apenas a minha boca a mostra e a dele da mesma forma.
Saímos da cabana do homem estapafúrdio, e decidimos procurar nossa amiga Astrid.
Nesta noite de lua cheia onde os lobos uivavam ao longe, e os sentimentos intensificados nos acendendo uma chama que há muito balança pesadamente no nosso corpo leve, Jason compartilha comigo de sua forma, mas sentimos do mesmo pesar e agora caminhando até o salão onde será servido o liquor-carmesim à meia noite.
Dancei um pouco com meu gato amado, relembrando os nossos momentos rodopiando ao som de The Cure em nosso quarto. Pedi para que ele cumprimentasse os membros que estavam no salão. A interação dela facilitaria ouvir algo que pudesse ser útil para entender nossa presença neste inestimável evento do Anfitrião.
Enquanto ele fazia amizades, eu pude olhar em volta e a ambientação com a decoração que só vemos em filmes e séries prestigiados, me irradiaram em algum momento. Me perdi nos tons de vermelho e dourado, as rosas vermelhas recheadas em diamantes exibidos nas mesas bem ornamentadas. O corredor que cercava alguns encontros de cômodos do castelo, estavam todos com quadros específicos para o baile e neles estavam todos com membros mascarados, alguns poderiam ser criaturas assim como eu e Jason, ou quiçá algo que não faço a menor ideia.
Sou levada pelas luzes dos candelabros e relembro de uma fascinante ópera que presenciei em minha cidade. Na nostalgia que me devaneava em sentimentos conflitantes. Fui tocada por alguém. E com a mão esquerda me convidando para uma dança.
Me senti receosa, pois a aparência de tal me deixava um pouco assustada. Devo ser a vampira mais frustrada existente... Criei coragem no meu âmago e aceitei a instância.
O ser a minha frente estava caracterizado com as cores que já citei anteriormente, combinando completamente com o castelo, como se fosse um membro importante. Enquanto em passos sendo bem guiados pelo salão, uma melodia começara e me lembrava o toque de Elfen Lied.
Não consigo discernir o que qualifica este companheiro, que com maestria me leva pelo salão de forma flutuante, eu não consigo ter totalmente o controle dos meus pés e por mais que eu precise encontrar Astrid, meus sapatos não param de se mexer, acompanhando, rodopiando, curvando e quase rasgando os fios delicados do meu vestido raro. Tento chamar Jason telepaticamente, mas não consigo tirar meus olhos dessa máscara que cobre o rosto por inteiro, consigo apenas enxergar que agora os olhos estão vermelhos e fascinantemente eu consigo desprender uma das mãos.
Ao tentar me desvencilhar por completo, acabei colidindo com um homem, de fraque preto, com detalhes amarelos e não dourados, a máscara cobrindo apenas metade do rosto como a minha. Ao tombar com este homem, meu vestido é fracionado e os tecidos tão delicados, agora estão no chão de mármore do salão.
Minhas veias inflamam no meu rosto, meus pulsos começam a acelerar juntamente com meu coração, meus olhos mudam de cor e agora não tenho mais controle, minhas presas foram direto no pescoço deste infeliz, que agora com a cabeça em uma das mesas com o jarro quebrando ao chão, me alimento firme, minha frigidez indo embora bruscamente, e num salto Jason pula no pulso dele. Alimentamo-nos juntos naquela carcaça que conseguira colocar para fora toda a raiva guardada dentro de mim.
Não consigo enxergar as pessoas à minha volta, só consigo pensar que Astrid não tenha medo de mim, pois não me alimento de mulheres assim como meu clã. E há muito não colocava para fora esse meu lado vampiresco. Só consigo pensar que perder algo importante para mim agora, meu vestido, uma amiga, minhas dúvidas jamais serão sanadas.
Ao terminar minha refeição juntamente com Jason, procuro à minha volta o ser que dançara comigo e não consigo mais avistar. Minha mente lateja junto com o toque relógio para a hora do liquor-carmesim e eu corro em direção ao meu quarto.
Estou cheia.
Olá, meu nome é Carmen! Apenas Carmem! Venho de uma cidade que morei por alguns meses com o meu marido. Eu não tive pais, não sei muito bem como…