Parte II – DARQUINHA: Capítulo IV - Desespero

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Aquela tão esperada criança nascera no final do mês de agosto. Numa noite fresca, de brisa leve e céu enluarado, mesmo após um dia quente, seco e muito abafado, comum para aquela época do ano, em se tratando de regiões como o Cerrado, que, em determinadas épocas, tem um clima que muito se assemelha ao de um deserto, devido ao calor intenso e à baixa umidade relativa do ar. Gardênia chegara ao mundo esbanjando saúde e disposição. Quando fora entregue ao pai, estava aos berros, demonstrando uma intensa vontade de avisar ao mundo de sua chegada. Sua mãe, que tivera um parto bastante agonizante, estava prostrada na cama, recebendo os cuidados da velha cigana, que a acalentava, retendo sua cabeça junto ao colo. 

Uma parteira local – Dona Judith, esposa do Senhor Juraci Fonseca, o afamado Seu Jura, que viria a se tornar um grande amigo da família – fora chamada para auxiliar naquela delicada situação, uma vez que Madame Staell já não conseguia mais ver nem mesmo a luz do sol sobre sua fronte. O trabalho de parto durara desde a madrugada daquele dia, quando Darquinha sentira os primeiros sinais de que uma nova vida estava para chegar. Sem maiores discussões, Thomás foi em busca de Dona Judith, que já havia se acertado anteriormente com a velha cigana e estava de sobreaviso para, a qualquer hora, estar a postos e logo ir em socorro daquela franzina parturiente. O fato de Darquinha ter sido acometida por uma gestação bastante conturbada muito aterrorizou a velha cigana, que tinha muito apreço por sua protegida. No entanto, tudo terminou bem. Gardênia nascera forte e saudável. 

A alegria pela chegada de uma nova vida só não foi maior porque a jovem mãe ficou prostrada por quase uma semana. Darquinha sentiu intensamente a gestação e os efeitos do parto. Todos que a observavam de perto chegavam quase à mesma conclusão: a bela criança que ela trouxera ao mundo sugara-lhe parte de sua energia vital. Suas forças se resumiam praticamente a alimentar a própria filha, que, proporcional à sua vitalidade, tinha um apetite bastante voraz. Fato esse que tornou necessário complementar sua alimentação com o leite de uma cabra que havia parido recentemente, doada à família por Seu Jura, a pedido de Dona Judith, que os visitava todos os dias, acompanhando de perto o restabelecimento de sua mais recente paciente e o desenvolvimento da graciosa Gardênia. 

Com o tempo – esse fator que tudo resolve e tudo amaina – Darquinha foi se restabelecendo aos poucos e logo já estava de pé novamente, quase sempre vista com Gardênia nos braços. A bem da verdade, aquela bela criaturinha de olhos claros ficava sempre passando de um colo para o outro. Thomás parecia não se conter de tanta alegria e satisfação pela adorável filha, que lhe dava um prazer imensurável. Madame Staell – cada dia mais senil – que fazia as vezes de avó, e até mesmo batizara a criança segundo os velhos costumes ciganos, era puro regozijo quando segurava Gardênia nos braços. Vez por outra, a fazia dormir cantando, junto ao seu ouvido, velhas canções ciganas em romani, língua essa que somente ela, naquela casa, sabia... 

Com o fim do ano se aproximando, a estação das chuvas logo chegou, trazendo frescor para os dias e um estonteante verde para a relva, tornando os dias mais coloridos e as noites mais agradáveis. Ao final de cada tarde, a varanda daquela alegre e abençoada casa era brindada, muitas vezes, com um banho dos últimos raios de sol que caíam obliquamente, trazendo um preguiçoso colorido na violenta descida de um sol poente. Ou, vez por outra, com o frescor da chuva que caía de forma tranquila e acolhedora. A velha cigana e Thomás – que naquele momento já era chamado por quase todos de Pai Thomás, devido à sua corujice com a filha – ficavam sentados na varanda até bem tarde, observando a vista ao longe e discutindo sobre diversos temas. Ambos tinham muito conhecimento e experiências a compartilhar um com o outro. 

Além dos diversos assuntos que sempre eram tratados, Pai Thomás retomara um de seus antigos ofícios e, vez por outra, aceitava a encomenda da confecção de um chapéu, que era feito naquela hora, pois a lida diária tomava-lhe quase todo o tempo durante o dia. Sempre acompanhando todos aqueles acontecimentos, após findar suas atribuições domésticas do dia, encontrava-se Darquinha, balançando preguiçosamente numa acolhedora rede e, como não podia deixar de ser, tendo a filha aninhada junto ao peito, logo adormecia em sono profundo. 

No marasmo da vida no campo, sempre havia tempo e disposição para longas discussões sobre diversos assuntos. A monotonia da vida dava-lhes oportunidades para profundas reflexões a respeito dos inquietantes temas da humanidade, tais como a fé, a ciência, o amor, o tempo, mas principalmente o conflito sobre a origem da vida e seu inevitável fim: a morte... Após perder a visão por completo, a cigana já não tinha tanta alegria como dantes e muito menos a disposição de outrora, acabando por assumir uma postura bastante nostálgica e melodramática, sempre retornando as discussões às questões fundamentais sobre as inquietações humanas ponderadas por todos aqueles que sofreram grandes injustiças. Esses debates eram de uma profunda reflexão, que sempre retornavam ao grande tema dos grandes pensadores de outrora: Quem somos nós diante da vida... 

Certa noite, Pai Thomás, ao perceber que a velha cigana estava bastante calada e muito reflexiva, ousou questionar Madame Staell se, de alguma forma, ela sentia saudades da vida na cidade, se estava feliz com a vida que levava agora ali, na quietude do campo, ao lado deles. Perguntou se algo lhe faltava ou se algum agravo ou dissabor a incomodava... 

A cigana, que permaneceu em silêncio por um instante, com os olhos esbranquiçados pela cegueira, mirados no horizonte como se pudesse enxergar algo ao longe, após um grande suspiro, respondeu: 

– Nada me falta nesta casa, e nenhuma coisa me incomoda aqui. Sou bem tratada e respeitada de uma forma que há bastante tempo já não era. Devo dizer que cada lugar tem seus encantos. Nas grandes cidades, há todo o conforto que o progresso proporciona. Por lá, é dito que o sertão é um lugar ermo e atrasado, povoado por pessoas brutas e ignorantes. Um lugar onde inexiste o progresso e não há recursos médicos, onde ainda reinam a ignorância e o misticismo. No entanto, o que vejo é um paraíso. Um lugar de paz e quietude, onde reinam a amizade e a camaradagem mútua. Se, por um lado, a cidade olha com menosprezo para o campo, o sertanejo vê a cidade com certo receio, como um lugar de individualismo, onde é cada um por si e Deus por todos. De forma alguma o sertanejo menospreza a cidade, pois sabe que é um lugar de ciência e novas descobertas a cada dia, muitas das quais logo chegam ao campo, trazendo espanto e alegria para a humilde lida diária de pessoas simples. No entanto, ele a teme por ser um lugar de comércio, onde tudo se vende e tudo se compra. Um lugar onde até mesmo a amizade é uma mercadoria de preço alto... 

Após mais um breve momento de reflexão e silêncio, a cigana continuou: 

– Entre a cidade e o campo há uma linha tênue que divide o progresso da inocência, separando esses dois mundos em partes bastante antagônicas. Ambos têm seus encantos. No entanto, segundo um antigo rei bastante sábio: “Há um tempo para tudo nesta vida...”, e meu tempo na cidade se findou. Para uma pessoa da minha idade e com minha experiência de vida, a cidade já não mais me seduz como antigamente. A meu ver, atualmente, nas grandes cidades, há uma onda de ceticismo e de generalizada descrença entre as pessoas. Uma verdadeira falta de confiança em tudo e em todos. Um misticismo grosseiro, disfarçado de progresso, afasta as pessoas das crenças e dos meios religiosos de seus antepassados. Remédios, benzimentos, bênçãos e preces já não recebem mais o crédito de outrora. A cidade vive um tempo de pouca fé, onde reina a incredulidade tanto nas questões espirituais quanto na própria humanidade. 

Hoje, o que me resta é poder usufruir dessa paz que só o campo pode me oferecer. Devo lhe confessar que, ao perceber que Darquinha está em boas mãos, sei que posso descansar em paz. Sei que, ao me ver sorumbática, talvez isso lhe cause algum desconforto, ao pensar que não estou feliz. Mas quero que saiba que estou vivendo uma velhice plena; nem mesmo minha cegueira me incomoda mais. Mesmo não podendo contemplar Gardênia com meus próprios olhos, ainda assim posso vê-la com o meu coração quando toco sua face e ainda posso ouvir seu riso fácil... 

Essa foi a última conversa que aquela varanda presenciou entre aqueles dois grandes pensadores. Na madrugada daquela mesma noite, Madame Staell deu seu último suspiro, prestando contas ao infinito ao entregar sua vida ao desconhecido. Morreu em paz, sem nada reclamar; apenas se deitou e, ao raiar os primeiros sinais de um novo dia, já não vivia mais. Depois de quase três anos vivendo ali, naquele ermo lugar, eles conseguiram cultivar a amizade de todos que viviam ao redor. Madame Staell era visitada quase sempre por aqueles que ansiavam pelos místicos e sábios conselhos que ela dava. Muitos tinham muita fé na sabedoria da velha cigana, que logo, sem muito esforço, conseguiu angariar o respeito e a amizade de uma grande quantidade de admiradores. Seu velório foi um grande acontecimento na região; a casa de Pai Thomás ficou tomada de pessoas durante todo o dia e pela noite afora, até o momento em que o cortejo levou o corpo da outrora belíssima cigana Sarah – que abalara muitos corações em sua juventude – agora finada Madame Staell, para seu último descanso. 

Como era sua tutora e conselheira, e desde que Darquinha ficara órfã fazia às vezes de mãe, em muitas ocasiões, em momentos de intimidade, Madame Staell sempre conversava com Darquinha por meio de gestos sobre diversos assuntos. Dentre eles, estava o tema de sua própria passagem, quando isso viesse a acontecer um dia. Embora Darquinha fosse bastante avessa a esse tipo de conversa, a cigana insistia, dizendo que aquela era uma certeza inquestionável; por mais que pudesse ser adiada, de forma alguma poderia ser evitada. Com gestos carinhosos de afago e conforto, ela dizia à sua amada e protegida que o fim sempre chegava para todos e que a única coisa ao nosso alcance era tentar estar preparados para esse momento tão doloroso. Tal como o sol que se põe todos os dias e renasce ao amanhecer, da mesma forma, todos os dias alguns morrem para que outros nasçam. Não se deve temer aquilo que é inevitável; o melhor a se fazer é resignar-se com as imutáveis leis da natureza. Quando a areia da ampulheta de um ser está se esgotando, nada mais pode ser feito. O Tempo é um deus impiedoso e reina sobre tudo e todos... 

A pedido da própria cigana, que mais de uma vez havia deixado bastante explícitas a Darquinha algumas instruções sobre o ritual fúnebre de seu povo, seu corpo foi lavado com ervas aromáticas e, logo após ter sido perfumado com óleos especiais, foi vestido com sua melhor roupa, previamente escolhida por ela mesma. Também, pouco antes de morrer, Madame Staell entregou a Darquinha seus pertences mais valiosos como herança, separando para si apenas algumas joias, com as quais foi bastante explícita ao demonstrar seu desejo de que esses adornos deveriam enfeitar seu corpo para sua última viagem. Por fim, juntamente a essas joias, entregou-lhe uma moeda de ouro de aparência bastante envelhecida, que deveria ser colocada em seu caixão para que ela pudesse pagar a travessia do grande rio que separa a vida da morte... 

Após o enterro de Madame Staell – que fora sepultada num verdejante prado à sombra de uma frondosa aroeira, próxima à casa onde vivera seus derradeiros anos – Thomás, tendo Gardênia já com dois anos ao colo e acompanhado de Darquinha, retornaram cabisbaixos para sua agora silenciosa morada. Apenas vez por outra, o silêncio era quebrado pela algazarra de Gardênia, que nos primeiros dias corria de um canto a outro chamando pela Baboo – nome carinhoso pelo qual ela chamava a velha cigana. Esse fato causava copiosas lágrimas em Darquinha, que sentia pesarosamente a perda de sua querida protetora. A morte da velha cigana trouxe grande tristeza para aquela casa. Gardênia perdera sua Baboo, Darquinha, sua protetora e fiel confidente de tantos anos, e, por fim, Pai Thomás sentia bastante a ausência de sua companheira de inúmeras noites de reflexões, ensinamentos e incontáveis histórias de um tempo e uma terra que ele não conhecia. 

A cigana, que na maior parte do tempo não tinha nenhuma outra pessoa com quem conversar, fazia de Pai Thomás seu melhor ouvinte. Não apenas despejando-lhe palavras sem sentido e proveito prático, mas também transmitindo-lhe grandes ensinamentos de sua secular cultura. Pai Thomás, que além de companheiro para longas noites de profunda reflexão filosófica, tornara-se também um fiel aprendiz, demonstrando grande interesse pelos místicos ensinamentos sobre os misteriosos conhecimentos da sabedoria cigana. Depois de muitas injustiças sofridas e após anos de decepções, imaginando que nada mais pudesse abalar seus sentimentos, a perda de Madame Staell trouxe a Pai Thomás um dolorido pesar. Porém, a tempestade que se anunciava para breve sobre aquelas paragens ainda não havia chegado; a perda da cigana era apenas uma brisa leve em comparação ao que estava por vir. 

Os místicos e misteriosos ensinamentos, aprendidos com bastante ênfase e maestria, fizeram com que a casa deles continuasse sendo frequentada pelas mesmas pessoas que vinham em busca dos conselhos e favores místicos da agora falecida cigana, e que agora buscavam obter de Pai Thomás o alento para seus dissabores e incertezas. Thomás, que outrora fora chamado carinhosamente de pai devido à sua progenitura, agora era chamado de Pai Thomás por outros motivos e assim ficaria conhecido até o fim de seus dias... 

A tristeza pela perda da sábia anciã, que de alguma forma contribuiu para a felicidade daquele improvável casal, foi se amainando aos poucos com o passar dos dias. As obrigações do cotidiano, as novidades que Gardênia – uma menina esperta e cheia de vida – aprendia a cada dia, mas principalmente o tempo, tornaram a perda da velha cigana mais suportável, a cada dia um pouco menos dolorosa. Logo tudo voltaria ao normal, e os dias se sucederiam de forma comum, como deveria ser na vida de qualquer família. No entanto, parece que existem pessoas que nascem com o sofrimento já inserido no mais profundo de seu ser. De certo modo, pessoas desassistidas pela roda da fortuna tendem a se afinizarem mais facilmente. O sofrimento torna-se um elo muito forte entre aqueles que penam certas adversidades. 

Quando Pai Thomás – ainda um negro errante – conheceu Darquinha, algo inexplicável aconteceu dentro dele, um sentimento que até então ele não conhecia. E quando a olhava – às vezes, mesmo que de soslaio – seu peito se apertava a ponto de lhe faltar o fôlego, e foi nessa época que ele soube que sua vida estaria para sempre vinculada a ela. Que sua própria felicidade dependeria do fato de vê-la sempre feliz. Esse sentimento lhe permitiu perceber que havia algo bastante errado com sua amada esposa. Não era só a perda da cigana; havia algo mais. O semblante de Darquinha estava diferente, como se ela padecesse de um sofrimento profundo, que a todo momento tentava esconder. Por diversas vezes, ele tentou, com gestos de carinho e afago, questioná-la sobre o que havia de errado. Ela, por sua vez, sempre gesticulava em negativo, tentando convencê-lo de que tudo estava perfeitamente bem, que era apenas saudade de Madame Staell. 

Já havia passado quase dois anos desde a morte de Madame Staell quando Dona Judith – que se tornara visita cativa na casa de Pai Thomás – certo dia o chamou de lado e disse-lhe que havia algo errado com Darquinha. Relatou-lhe que Darquinha sofria de terríveis dores de cabeça a ponto de seus ouvidos sangrarem, mas que ela lhe rogara desesperadamente que nada fosse relatado a ele. No entanto, ao perceber que a cada dia o sofrimento dela se tornava maior, Dona Judith, como mulher experiente, achou melhor esclarecer tudo a Pai Thomás, a fim de que algo pudesse ser feito. A tempestade havia chegado e fazia seus primeiros estragos. Pai Thomás percebeu que a cada dia Darquinha estava mais pálida e demonstrando profundo padecimento. Ele tentou tudo o que havia aprendido com a velha cigana, mas parecia que nada adiantava. De certo modo, até se arrependeu de não ter aprendido mais, lembrando-se das palavras da cigana: “... Conhecimento e saberes nunca são demasiados, e, em algum momento, aquilo que se aprende poderá ser útil de alguma forma. No entanto, mesmo com todo o conhecimento do universo, um verdadeiro sábio tem o discernimento necessário para saber que algumas coisas não são possíveis...”. 

Os dias foram se sucedendo, e o sofrimento de Darquinha aumentava cada dia um pouco mais. Seus ouvidos, que outrora apenas sangravam, começaram a expelir um pus denso e fétido, como se algo dentro dela estivesse apodrecendo. Como ela mesma não podia se ouvir, seus gemidos de dor eram tão terríveis e lamuriosos que causavam um desesperador sentimento de piedade em qualquer pessoa que presenciasse toda aquela angústia. Como aquele sofrimento se agravava a cada dia, deixando Darquinha acamada, Dona Judith já não mais se afastava de seu lado, tentando de todas as formas amenizar seu sofrimento, ajudando-a em suas necessidades íntimas, bem como nos afazeres domésticos. Gardênia também já estava sob cuidados alheios, pois Pai Thomás já não era mais senhor de si. Em angustiante desespero, percebeu que de forma alguma poderia sobreviver à morte de sua amada e estava disposto a fazer qualquer coisa para salvá-la. 

Numa determinada noite de calor intenso, o sofrimento tomou conta de vez daquela casa. Darquinha, que a cada dia tinha o semblante mais doentio, perdia um pouco mais de sua vitalidade de forma gradativa, e em menos de uma semana tornara-se uma criatura grotesca de ser contemplada, um ser com um pé na sepultura, já de tal forma tão decrépita que ninguém seria capaz de dizer se ela estava saindo ou entrando em sua última morada. Sua dor era tamanha que ela gemeu a noite toda, sem poder dormir um minuto sequer. Thomás velou por ela a noite inteira, vendo sua amada padecer de tão grande dor. Ao contemplá-la de perto, pôde perceber quão grave era a situação de sua esposa. Era como olhar para a morte face a face, tão de perto que seria facilmente possível beijá-la nos lábios. Depois de horas de terrível angústia e sofrimento, o dia enfim chegou, mas passou depressa, dando lugar a outra noite de agonia, que não foi tão diferente da anterior. 

As coisas acontecem em três níveis principais na experiência humana: boas, ruins e terríveis. À medida que se desce na crescente escuridão em direção ao terrível, fica cada vez mais difícil discernir essas subdivisões. A condição de saúde de Darquinha já estava no nível terrível... Depois de três noites seguidas, praticamente sem pregar os olhos, num sentimento de terrível impotência por nada mais poder fazer, Pai Thomás, em murmurante monólogo, se perguntava: 

– Quanto tempo sua amada ainda haveria de sofrer antes de chegar seu fim? Quanta lástima ainda ele teria que enfrentar? E o pior de tudo, como seria sua vida sem a razão de seu viver? 

Num átimo de desespero, suas mãos começaram a tremer, e de repente ele se sentiu tomado por uma profunda compaixão e uma raiva cega contra toda aquela pestilência, aquela dor constante e aquele infindável sofrimento; a fragilidade de um corpo humano contra a corrupção monstruosa e abominável da morte. Dentro dele revezavam-se terríveis arrebatamentos de exaustão e desespero. Uma explosão de incontrolável cólera e pensamentos histéricos tomava o controle de seus nervos. E, muito próximo a um ataque de fúria, ouviu a sábia voz de Dona Judith atrás de si. 

– Tenha fé, Thomás. O senhor é um homem sábio e possuidor de grande raciocínio. Sabe melhor do que ninguém que é justamente nos momentos mais sombrios que brilha a verdadeira luz da esperança. Não deixe o ódio tomar conta de seu coração. O desespero cega as pessoas e as torna surdas e cegas perante as mensagens que o infinito nos envia. Abra sua mente e abrande seu coração. Lembre-se de que para tudo nesta vida há uma razão. Creia que Deus, em sua infinita bondade e misericórdia, tem um propósito para tudo isso. Seja forte e acredite! Nesse momento, sua esposa precisa de sua força e de sua fé acima de qualquer outra coisa... 

Suspirando profundamente para controlar sua fúria e tentar não ser grosseiro com pessoa tão prestativa e bondosa, Pai Thomás, escolhendo as palavras, respondeu: 

– A crença em Deus ou numa força superior é algo bem maior do que simples palavras. É uma questão de um raciocínio privilegiado, pois se trata de entender o amor divino pela humanidade. Como posso aceitar essa verdade se não consigo ver esse amor dentro de minha própria casa? Nesse momento de desespero, parece que já não sei mais nada. Nem mesmo qual é o meu dever. Como posso cumprir minhas obrigações, se já nem sei quais são... 

A alma de Pai Thomás não estava apenas triste e com medo, mas aterrorizada, querendo se esconder no lugar mais profundo de suas entranhas, como uma criança abandonada numa floresta escura e desconhecida, numa noite de tempestade. Mesmo assim, ele ainda conseguiu forças e disse: 

– Qualquer homem é fraco perante aquilo que ele não pode compreender. Sei que, diante de uma situação sem solução, é preciso buscar forças pelo menos para se resignar. Mas, perante o mais profundo desespero, como saber qual atitude é a mais conveniente? Onde posso conseguir forças para enfrentar a mais inquietante das questões da humanidade? 

Tomada de grande compaixão por toda aquela situação, Dona Judith lhe respondeu. 

– Sei que está com medo. Não há vergonha no medo; o que verdadeiramente importa é o modo como enfrentamos nossos medos... O senhor deve estar preparado para o que está por vir. Sei que a morte é extremamente triste, sem dúvida, e talvez bastante incompreensível para os que ficam. No entanto, à sua maneira, a morte é o fato mais natural para todo aquele que vive. De certa forma, é até mesmo um alento para aqueles que padecem de algum mal irremediável, pois pode trazer o conforto que a vida não pode mais oferecer. A vida é uma inexorável luta entre o bem e o mal, onde o bem nos oferece aquilo que nos é necessário na hora devida, enquanto, por sua vez, o mal, de forma bastante sedutora e imediata, tenta nos presentear com aquilo que desejamos. 

Já não conseguindo mais processar nenhuma palavra coerente, pois o que dizia já não fazia mais sentido, ele, que não tinha mais forças para responder qualquer coisa que fosse, colocou suas enormes mãos sobre o rosto e chorou de forma bastante dolorida. Pai Thomás certamente não seria o primeiro homem a se deparar com o obscurantismo do abismo das incertezas após terríveis momentos de sofrimento. E ali, perdido entre suas lágrimas, chegou a desconfiar de sua própria sanidade, perguntando a si mesmo se todo aquele sofrimento chegaria ao fim em algum momento... Percebendo o tamanho de seu desespero, deixou sua casa e saiu caminhando sem destino certo, cambaleando trôpego como se fosse um bêbedo entre a relva. 

Depois de um longo dia de calor escaldante, a noite chegou clara e límpida. A lua crescente brilhava radiante num lindo céu de estrelas pintalgadas, tão radiante como se não tivesse de contemplar nenhuma desgraça. A relva, refrescada pela leve brisa da noite, estava em plena exuberância, exalando infinitos odores diferentes. Pai Thomás foi em busca de um pouco de paz. Não queria mais ouvir nada que Dona Judith pudesse lhe dizer, nem mesmo responder qualquer coisa que fosse. Ao longo dos anos, descobrira que o silêncio, por vezes, recompensa bem mais do que certas perguntas. Caminhou por quase uma hora pela relva fresca, ao som das criaturas da noite em sua permanente serenata, até o momento em que, já cansado de tanto andar, se prostrou de joelhos. 

Naquele instante, de joelhos na relva e de braços abertos aos céus sob o silêncio das estrelas, um grito enorme escapou de dentro dele. Um som lamurioso e angustiante, provindo do fundo de sua alma, suficientemente alto para ecoar pelas árvores e certamente forte o bastante para acordar qualquer criatura deste mundo, seja dentre aqueles que vivem ou até mesmo alguns outros. Com aquele som angustiante, a floresta momentaneamente se calou por completo. No entanto, um farfalhar de folhas se movendo foi ouvido por ele, e, do meio das sombras, ela surgiu como uma luz nas trevas. 

Quando Pai Thomás olhou ao seu redor, viu uma bela mulher como nenhuma outra que já tivesse visto. Uma tiara cravejada de joias brilhava entre os seus longos e cacheados cabelos dourados, que ali, na escuridão da noite, pareciam brilhar ao sabor do vento. Dentre as brilhantes pedrarias em seus cabelos, destacavam-se belíssimas esmeraldas que combinavam perfeitamente com o verde de seus olhos, que também pareciam emitir um brilho hipnotizante. Essa estonteante criatura trajava um alvíssimo vestido de cor azul-clara, de um tecido de tamanha transparência que quase todo o seu corpo desnudo era possível de ser contemplado. 

Antes mesmo de Pai Thomás poder dizer qualquer palavra, aquela bela criatura lhe estendeu uma delicada mão de dedos afilados que terminavam em unhas bem cuidadas, pintadas num vermelho cor de carmim, tal como era a própria cor de seus lábios, que também emitiam um brilho de intensa volúpia. Mesmo na penumbra da noite, ele pôde perceber que a palma daquela mão delicada era fria e totalmente lisa. Não havia ali nenhum traço das linhas do destino. Talvez porque ela fosse uma espécie de criatura sobre a qual o destino não tinha poder. Ou, quem sabe, fosse ela mesma o próprio destino. Pai Thomás, ainda de joelhos, a contemplava em completo fascínio, quando a ouviu dizer numa voz doce e sedutoramente agradável: 

– Suas preces foram ouvidas, angustiado ser. 

– Não fiz nenhuma prece – respondeu Pai Thomás, ainda de joelhos. 

– Qualquer ato pode ser uma prece, desde que seja desempenhado de forma pura e inocente, principalmente se for em benefício de alguém que tristemente padece... 

Levantando-se de forma bastante cautelosa e ainda fitando a criatura nos olhos, ele perguntou: 

– Apenas diga-me, quem é você? 

– Na verdade, não é quem sou, mas o que sou! Por ora, basta que saiba que sou tão antiga quanto as primeiras trevas, de uma época tão remota que nem a luz ainda brilhava... Sou aquela que liberta os que padecem nas garras do destino. Sou a paz para os que vivem em tribulação, descanso para os desesperados. Sou a solução para toda e qualquer questão. Sou a sorte do apostador que nada mais tem a perder. Tudo é possível para quem está disposto a pagar. No entanto, nada neste mundo nem no outro é dado de graça; tudo tem o seu preço. Se estiver disposto a pagar um preço justo, qualquer desejo seu posso realizar. 

Em completo desespero e vendo uma possível luz no fim do túnel, Pai Thomás respondeu: 

– Qualquer coisa para findar com todo o sofrimento que aquela que mais amo padece. 

A bela criatura, utilizando-se ainda de meigas palavras, mesmo que de forma bastante astuta como a velha serpente outrora fizera, tentou dissuadi-lo de seu desesperado desejo. 

– Cuidado, lamurioso ser, com aquilo que desejas. Existem preços muito altos para um homem pagar, dívidas duras demais para serem saldadas em uma única existência. 

– Nada neste mundo cruel pode ser mais valioso do que o fim do terrível sofrimento daquela que amo mais do que minha própria vida. A eternidade de minha alma é um preço mais do que justo pelo fim de toda a dor daquela que deu um verdadeiro significado à minha existência. 

Ao terminar de pronunciar essas palavras, Pai Thomás percebeu que algo terrível havia alterado o ambiente ao seu redor. Um medo terrível tomou conta de todo o seu ser ao perceber que havia trevas ao redor. Nem mesmo o céu, que outrora estivera límpido e estrelado, era mais possível de ser contemplado. Um cheiro fétido empesteava todo o ar, e seu corpo se arrepiou por completo ao ouvir as últimas palavras daquele estranho ser. 

– Está consumado! 

A voz que se ouviu, num quase sussurro, soava mais como o grasnido seco e raspante de alguma coisa há muito tempo morta, proveniente de uma criatura que jamais poderia ser contemplada pelos olhos dos vivos, pois certamente tal visão levaria qualquer um à mais completa insanidade ou até mesmo à morte para aqueles de espírito mais sensível. Pai Thomás não chegou a tanto, mas, como estava com os nervos bastante abalados, ao contemplar a criatura que estava diante dele, teve um grande sobressalto, perdeu os sentidos e foi tomado por um sono profundo, onde sonhou que caía num infinito abismo... Porém, mesmo nos sonhos, não é possível cair para sempre, mas Pai Thomás queria continuar caindo, se possível para todo o sempre, pois sabia o que o aguardava no final de sua longa e angustiante queda. 

Depois do que pareceu ser um longo tempo, despertou daquele inquietante sonho. A noite já estava com o frescor que anunciava as horas tardias. Uma brisa fresca soprava de tempos em tempos. A relva adormecida era iluminada pela luz de uma meia-lua que já se encaminhava para o poente. No céu, as estrelas ardiam nítidas e silenciosas, reinando sobre um firmamento de infinitas dimensões. Rapidamente, ele se levantou e, sem mais delongas, retornou a passos rápidos para casa, como se, no mais profundo de seu ser, soubesse que nada mais seria como antes. Mesmo estando ainda ao longe, ao ver a estranha movimentação na porta de sua casa, soube que o pior havia acontecido. Nem foi necessário perguntar o que ocorrera, pois sabia ele que qualquer um que se dispõe a fazer uma pergunta deve estar sempre preparado para qualquer resposta. 

Pai Thomás foi tomado por um terrível desespero, e, por mais que tentassem de todas as formas possíveis lhe explicar que Darquinha estava morta, ele se negava a acreditar. Insistentemente, diziam-lhe que ela agora estava em paz e que essa era a ordem natural das coisas. Para um ser vivo, a morte era inevitável. Ele, que praticamente já não era mais senhor de si, foi o único que viu quando uma graciosa criança de belos cabelos encaracolados e vestidinho rodado saiu dançando da alcova onde o corpo de Darquinha repousava. Passando perante ele em direção à porta de saída, ainda bailando alegremente, ela disse com uma doce e melodiosa voz que somente ele pôde ouvir: 

– Seu desejo foi realizado. Sua amada não padece de mais nenhum sofrimento...

Texto publicado na 9ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de setembro de 2024. → Ler edição completa

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