Okina Egao

Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney

Aconteceu em trinta e um, se não me engano, sei que foi antes da guerra isso que vou contar. Lembro-me bem, porque já naquele tempo chegava muita gente vinda do Japão para São Paulo, algumas famílias de feições asiáticas traziam seus costumes e a tradição muito antiga dos japoneses. Existem até hoje bairros inteiros que conservam essa tradição. Naquela época muitos imigrantes se misturavam nas ruas e nas fábricas de São Paulo. Eu trabalhei na indústria quando jovem e vi muito bem isso tudo.

Tive amigos de todo jeito quando morei na capital, havia gente de toda a parte entre os meus conhecidos. Trabalhávamos na fábrica de latinhas, naquele calor da máquina que aquecia o metal para prensar as formas. Um desses amigos era um japonês de meia idade — denunciada pelo surgimento de alguns cabelos brancos — e recém-chegado do Japão; seu nome era Ishiro, possivelmente era. Não sei ao certo qual era seu nome porque logo os operários o chamavam por uma corruptela do outro idioma que era Ichinho. Aquele era um homem pequeno, baixo de altura e franzino de músculos, mas incrivelmente forte e tinha um rendimento impressionante na linha de produção. Tive uma breve amizade com ele, mas era difícil a aproximação, talvez muito se deva à sua dificuldade com o nosso idioma. O seu Ichinho era um sujeito recluso e pouco comunicativo, falava por palavras soltas que, quando juntadas, era necessário deduzir a mensagem pelo contexto. Além disso, era também naturalmente solitário, não estava sempre de bom humor, mas era uma pessoa muito amável quando possível.

Me lembro dos japoneses como gente muito hospitaleira, me vem na lembrança uma família que era vizinha do seu Ichinho, se instalaram numa casa perto de onde eu morava e, muitas vezes que passei por lá, passava horas conversando com eles, fazendo amizade e trocando costumes, assim aprendi um pouco da bela cultura asiática. Descobri que eles também tinham uma imagem de estranhamento daquele homem, achavam ele misterioso e recluso demais. Às vezes o Ichinho estava na casa deles, mas nunca os convidou para a própria, diziam que ele nunca acendia as luzes e a casa vizinha estava sempre escura.

Meu pequeno grupo de amigos gostava muito de pescar e caçar nos dias de folga. O trem era muito barato naquela época, comprávamos uma passagem até a alta paulista onde costumávamos ficar até uma semana ou mais, quando possível. Certa vez perguntei ao Ichinho se ele gostava de pescar, tive que explicar com gestos até ele entender, depois com um sorriso me respondeu “Peixe, eu gosta, eu pegava peixe Japão”. Convidei ele para uma de nossas aventuras nos rios da alta paulista, me surpreendi que de pronto ele aceitou, talvez tivesse, com o convite, encontrado o passatempo favorito do homem. 

Nos tornamos mais amigos desde então. Embora ele falasse daquele jeito de quem não domina a língua. Com o passar do tempo começamos a entender melhor as coisas que ele pretendia dizer. Descobrimos que Ichinho tinha deixado a família, todos eles saíram do Japão, mas foram para o norte, para o estado do Pará, só ele, aparentemente, tinha vindo para São Paulo, entre outras coisas ele também nos contou que foi militar e notamos que tinha uma habilidade de mira excepcional, muito útil nas nossas caçadas. Talvez pelo tempo que servira, ainda carregava consigo uma espada que agora servia como facão para abrir picadas no mato. Nós que só tínhamos facões baratos, de aço fraco, ficávamos admirados de ver o homem tirar aquela antiga espada japonesa da cinta e sair golpeando os galhos, cipós e arbustos da mata densa. Em questão de instantes a trilha se formava na nossa frente, tamanha capacidade de corte daquele artefato e habilidade de quem o empunhava. Já ouvi a palavra Katana para se referir às espadas japonesas, mas depois de muito tempo me esclareci que os vocábulos que ele emitia que pareciam algo como “oxaxi”, se referiam a wakizashi, que é um tipo menor de espada, um pouco mais curta que a Katana.

Seu Ichinho, nos momentos de lazer, era uma pessoa alegre, mas logo começava a transparecer para mim aquele tal lado misterioso que seus vizinhos se referiam. Esse comportamento estranho não aconteceu nas primeiras vezes que fomos até a alta paulista, mas com o passar do tempo percebi um padrão suspeito. Quando era noite, já quando a maioria estava dormindo, Ichinho desaparecia do acampamento, depois ouvia-se o estampido de um tiro no meio do mato, então ele reaparecia. Passaram-se algumas noites em que o mesmo se repetia. Certa vez o vi botar a cartucheira nas costas, junto com a espada, e se embrenhar fora da trilha. Outra vez, junto de uns amigos, o vimos voltar da escuridão carregando os mesmos apetrechos, alguém perguntou “E então, matou algum bicho?”. Ele respondeu “Não, escapou”. O que era muito estranho, nas caçadas nunca o vi errar um único disparo e, nas nossas competições de tiro por brincadeira, era capaz de acertar uma garrafa a quase cem metros, coisa que nenhum de nós conseguia.

Mas esta história estranha tem seu lado obscuro que só se justifica por causa de uma ocasião. Numa dessas caçadas, já era tarde da noite — uma noite escura onde até o mato estava silencioso. Estávamos perto do inverno, no mês de maio. Os bichos estavam quietos e as caçadas não renderam nem sequer uma pequena paca, mesmo os peixes no rio eram difíceis de fisgar. Acho que naquele mês só fomos à alta paulista pela diversão do acampamento, passar um breve final de semana. No sábado eu estava sozinho perto do fogo quando vi Ichinho sair da tenda armado com seus dois apetrechos. Acho que ele esperava que não haveria ninguém ainda acordado, mas sem querer eu o interceptei. Ele chegou junto do fogo e se sentou um momento. Naturalmente perguntei “Que vai fazer?”. Ele parecia bem mais sério que de costume, me respondeu “Matar bicho, não queria, mas precisa… Seguir eu, seguir eu… Eu não quero mais… Seguir eu, seguir eu… Precisar matar”. Ele estava trêmulo e parecia nervoso, o modo como falava era desolador e o mal português era ruim até para ele. Estranhei aquele comportamento, mas ele se levantou e se dirigiu para o mato, sumindo na escuridão.

Pensei por um momento, não entendi o que ele disse, mas imaginei que fosse um pedido para que eu o seguisse. Embrenhei-me na floresta atrás dele, não o encontrava, ele não carregou nenhuma lamparina consigo e sequer eu o fiz. Tudo estava escuro, andei alguns metros me afastando da fogueira. Ouvia ao redor de mim o mato retorcer, mas não sabia identificar de onde vinha, minha única referência era o fogo do acampamento que eu deixava cada vez mais longe, ia mudando a todo momento a direção do meu caminho perto da margem do rio, conforme achava que escutava algo andar naquela floresta. Em certa altura percebi que seguia dois ruídos diferentes, em lados opostos dos meus ouvidos, um se aproximava e outro se afastava. 

Ouvi o estampido de um tiro e nessa hora percebi algo se deslocar com uma velocidade incrível, um espectro pálido, que pensei que fosse um grande animal, correu rápido e perdi sua trajetória, que é bem verdade, não soube ao certo estimar tamanho ou qualquer outra coisa. Olhava por todos os lados enxergando muito pouco. Aquelas passadas no escuro, senti se aproximarem de mim, mas eram indiscerníveis para os meus sentidos, desejei ser uma coruja ou um morcego nessa hora. Quando a coisa parecia estar muito perto, já podendo me alcançar, ouvi um grito nas minhas costas. Um grito gutural e aberto, de quem empenha um golpe brutal. Assustei-me e repentinamente me virei, vi o homem com a espada desembainhada, aquele arco da lâmina reluzindo como um espelho era a única coisa discernível no escuro, dei um salto para trás caindo nas folhas de um arbusto e o pequeno japonês veio em minha direção, pensei que fosse me golpear, mas ele chutou algo no chão e depois abaixou a espada, percebi então que alguma coisa fugia fazendo um barulho horrível, já estava distante de nós, cruzou o mato e caiu nas águas daquele rio. 

Perto de mim o homem estava muito nervoso, chegou mais perto indagando.

Que você fazendo?! Que você fazendo?!

Segui você!” Respondi

Você não seguir eu, não seguir… Eu fui pegar bicho

Fiquei confuso na hora e perguntei:

Você não pediu pra eu seguir você?!

Não pediu!” disse, bravo.

Voltamos para o acampamento seguindo a trilha daquela luz da fogueira que deixamos, sentamo-nos novamente perto da brasa, curiosamente ninguém acordou, refleti que afora o tiro e o grito de Ichinho que aconteceu um tanto longe das tendas dos outros companheiros, aquele acontecimento todo foi bem silencioso, mas pareceu barulhento para mim, pois foi pavoroso. Meu coração ainda estava disparado e eu, sem entender nada, fiz um gesto pedindo alguma explicação.

Seu Ichinho não entendeu aquele gesto, ainda estava sério e encarava o fogo pensativo. Depois insisti, não me lembro que palavras usei, mas me lembro como ele me respondeu. Arreganhou os dentes cerrados, fazendo uma careta que mostrava até as gengivas, apontava para a boca e dizia. 

“Seguir eu, seguir eu… Como chama isso?”

Não compreendi de pronto o que ele quis dizer, mas como apontava para os dentes que mostrava, respondi “Sorriso”

“Sorriso grande… Seguir eu” ele disse.

Na manhã seguinte, pouco depois de recolher as coisas do acampamento e dobrar as tendas, fui andar na margem do rio, perto de onde me lembrava ter acontecido tudo aquilo na noite anterior. Poucos acreditam quando conto, mas ao ver marcado na terra da barranca o rastro do que eu imagino que foi a investida do golpe com a wakizashi, olhei ao redor pelo chão e encontrei algo absolutamente aterrador. Era uma mão humana, ou ao menos parecia um pouco humana, estava seca como a de um cadáver, pálida e tinha unhas negras compridas. Tomei aquele objeto com um lenço, só quando o ergui do chão é que percebi a natureza do que era. Há quem diga que foi o susto, isso bem justifica a minha atitude depois de segurar aquilo, mas juro que ainda acredito na minha versão primeira. Senti que os dedos se mexeram e então, rapidamente, arremessei aquilo no rio.

Não contei nada a ninguém, não quis criar nenhum problema ou causar desconfiança dos outros ao meu amigo japonês, acredito que naquela noite ele salvou a minha vida. Na semana seguinte soube que Ichinho pediu conta da fábrica, nunca mais o vi desde então. Seus vizinhos me entregaram uma carta que ele deixou com o meu nome. A carta era muito curta e muito simples, com aquele mal domínio da língua.

Fui embora, vou Pará ver família, ficar com eles agora. Eu poder. Obrigado amigo. Sorriso grande não seguir mais

Junto havia uma gravura, arrancada da página de um livro, quem sabe. No pedaço de papel, cercado de símbolos da escrita oriental que eu não entendo, tinha a imagem do que parecia ser uma máscara japonesa de samurai, mas tinha aspectos horrendos e assustadores, um rosto magro, com olhos penetrantes e o mais expressivo era aquela boca com os dentes à mostra e presas pontiagudas saltadas do canto. A mesma letra desajeitada do bilhete escreveu embaixo da gravura “Sorriso grande”.

Texto publicado na 4ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de abril de 2024. → Ler edição completa

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