Névoa viva

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula
Próximo ao castelo, a lua desponta no alto da colina iluminando a floresta com sua luz avermelhada e cintilante. O vento frio, percorre os espaços sombrios entre as copas das árvores centenárias, estremecendo levemente sua solidez. Tomado por uma fúria imensurável, cavalgo ferozmente pela trilha tortuosa à procura de algo ou alguém que sacie meu desejo de vingança. O percurso é longo e meu cavalo demonstra nitidamente sinais de fadiga. Invisto mais um pouco e noto sua fraqueza em minhas mãos, minha imortalidade não acompanha a vida breve dos animais. Com rapidez, puxo as rédeas e esfrego o pescoço longo de Augustin que relincha alto indicando o alívio por minha decisão. Retorno vagarosamente para o castelo, mas minha inquietude continua alimentando meu ódio. Ao longo daquela noite letárgica, sombria e dolorosa, minha mente borbulha deixando-me nostálgico e amargurado. Caminho pelo corredor levemente iluminado por velas e observo as fotos que parecem sorrir para mim em meio ao caos de sentimentos. Tento repousar a mente próximo à imensa janela enquanto observo a formação de uma névoa tênue que espreita os arredores do castelo. Minhas mãos apertam com força a madeira envelhecida que reverte às paredes daquele velho castelo e minha fúria torna-se palpável ao enxergar o motivo da minha ira. Espalmo minhas mãos no vidro deixando marcas no vitral escurecido, desço às escadas apressadamente e no caminho vou até o quarto, retirando do antigo guarda-roupa minha capa preta. Selo novamente meu cavalo e adentro nas profundezas daquela floresta inóspita. A névoa contínua e fria espalha-se por todos os lados, perseguindo-me. Desvio de troncos caídos ao chão, a floresta sangra e meu coração compartilha de tal sofrimento arrancando gota a gota o resto de minha insanidade brutal. Ao longe, o velho chalé continua intacto e sem sinais do tempo, convidando-me para um abraço mortal. Deixo Augustin próximo a uma árvore centenária e sigo em direção ao chalé, paro junto aos primeiros degraus e pela janela consigo enxergar um sinuoso movimento. Seguro a maçaneta fria e com cautela empurro a porta devagar, meus passos me direcionam a uma sala gélida e úmida, os móveis antigos cobertos por um fino lençol branco continuam trazendo as lembranças escondidas por baixo de seus tecidos empoeirados. Um barulho no quarto retira-me do transe das memórias indesejadas e sigo apressadamente para o cômodo. Parado à porta, meu coração dispara rapidamente com a silhueta formada próximo à cama.
— O que faz aqui?! — Pergunto, incrédulo. — Não está satisfeita com o que faz comigo? — Questiono, aproximando-me lentamente.
Sem respostas, toco levemente sua cintura e sinto minhas mãos congelarem, algo em nós não é mais como antes. Minhas lembranças me atormentam e por impulso viro rapidamente seu corpo de encontro ao meu. Ela me olha com ternura e paixão, enquanto tento desvendar os meus sentimentos. Aproximo minhas mãos em seu rosto e acaricio sua face pálida enquanto a proximidade nos conecta. Nossos corpos necessitados se entrelaçam com fúria e desejo. Noto que seu coração bate descompassado e sua respiração torna-se cada vez mais acelerada. Minha fúria dá lugar à saudade e, calmamente, beijo seus lábios rosados que devolvem vida aos meus dias. Lá fora, a névoa começa a dissipar-se e já é possível ver os pinheiros e toda a extensão do lugar. Olho novamente em seus olhos e a beijo com força deixando nossos corpos sucumbirem ao amor. Ela me empurra devagar e com um sorriso tímido se afasta. Sigo-a por todo o chalé e me espanto ao ver os móveis descobertos, o lugar agora parece mais limpo e arejado, a luminosidade sombria deu espaço a um ambiente acolhedor.
— Estou aqui!
Ouço sua voz próxima à entrada e sigo em sua direção. Procuro ao redor, mas minha visão cansada não enxerga mais sua presença, a névoa aos poucos dissipa-se e a floresta já não é mais tão sombria. Caminho até Augustin que me aguarda com impaciência, esfrego sua crina delicadamente acalmando-o com meu toque. Subo em seu corpo longilíneo e olho uma última vez para o chalé, ele ainda mantém sua luminosidade e ela ainda está lá. Aceno levemente com a cabeça e retorno para a minha tumba, meu lugar sagrado, minha sentença. Enquanto aguardo ansiosamente a vinda da névoa para que novamente possa encontrar com ela.
Michele Valle nasceu em 1986, em Juiz de Fora (MG). Pesquisadora, taurina, apaixonada pela natureza e pela vida, formou-se em Fisioterapia com especialização em terapia intensiva, cardiorrespiratória e cuidados paliativos. É vice-presidente da LEIAJF - Liga de escritores, ilustradores e autores de sua cidade. Atualmente tem diversos contos publicados em Antologias no Brasil e na Europa. Sua primeira antologia como organizadora foi…
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