A Casa da Travessa

Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney

A ingenuidade é algo bobo, mas com o passar dos dias, meses e anos, simplesmente se torna uma burrice. Escrevo aqui como se fosse um diário, já que me faltam páginas nos cadernos, usei-os com intensidade escrevendo cartas que findaram a mim em dias melancólicos. Escrevi muitas cartas e, em todas elas, meus anseios sobre a casa… é a tal casa que irei preservar não só nas lembranças, mas também na pele, todos os fragmentos mais dolorosos que vivenciei.

É inútil me ater aos detalhes quando, nas palavras de meu âmago, estarei apenas descrevendo cada momento que me fez desconfiar de minha sanidade. Estive à beira muitas vezes, não só da loucura, mas também da vida, da fé e esperança. 

Aqui então começo o meu pesar. 

Quando mais nova encontrei o que achava ser o amor da vida toda, na mente adolescente e cheia de floreios, é fácil acreditar que a vida tem belas cores em todas as fases. Não me influenciei só pelo amor, mas também pela falta dele em casa, um lar conturbado deixa a mente de qualquer um à beira do abismo e eu só queria fugir, não tinha idade suficiente para tal, então, na primeira oportunidade, eu só abri a porta e lá quis ficar. 

Nunca me esquecerei daquela casa. A casa da Travessa. No meio de tantas ruas e avenidas longas, numa viela de travessas eu me enfiei. Finalmente achei que um novo lar me traria bons sentimentos, só que as emoções ruins venceram e apagaram qualquer vestígio de algum dia ter visto aquela casa com belos olhos. 

Quando vivemos em uma casa que está em completo caos, temos o intuito de achar que o piso do vizinho é melhor. Mas que piso? Aquela casa estava em um ar de insalubridade por anos, ceras de velas nas paredes. Sujeira de muitos anos de uma mente insana que dominou o local sem a menor assistência. 

O ditado que a grama do vizinho nem sempre é o melhor, cabe bem neste parágrafo. Foi tudo apenas uma mera ilusão. O piso era encardido e nem com um ano de limpeza foi possível tirar todo aquele sebo que estava encarnado. 

Submeti-me ao fracasso desde que dei uma chance ao tal amor e lá fui eu perder meu primeiro desabrochar, minha flor já estava corrompida e a mente aturdida nas palavras do potoqueiro

Quando eu subia aquelas escadas, eu sentia como se fosse a maturidade batendo à minha porta. Era tão nova e tão bobinha, achava que a morte era apenas na velhice. Mal sabia que a minha mente estava morrendo a cada segundo naquela casa. 

A casa era uma tragédia por si só, o fundo mais imenso do profundo poço existente. Minha alma ficou assim desde que entrei pela primeira vez, eu demorei a perceber com as nuvens e arco-íris ilusório. As lembranças que tenho do começo da minha jornada nesta casa são de uma pessoa que eu jamais voltaria a tornar-me. 

Hoje sou o que sou, caminhando de mãos dadas com a esperança que vaga vez ou outra, e também sou as cicatrizes dessa época e, caro leitor, eu achei que jamais iria ficar bem. Não querendo ser motivacional neste desabafo, mas acredite, a vida ainda pode te surpreender. 

Você acredita em fantasmas? No sobrenatural? Na espiritualidade?

Afinal, o que é um conglomerado de perguntas que nos rodeiam com tantas respostas no mundo atual? O que as pessoas estão pensando? O que você pensa e o que eu estou pensando agora?

Vou compartilhar com você o que mais me assustou nessa vida. Foi quando eu senti aquele vulto, não apenas de forma etérea, senti o seu toque gélido em meu pescoço. Estava tentando dormir com a minha criança ao lado. Aquela folga que toda mãe aproveita me foi tirada deixando meus pelos eriçados o dia inteiro. Ainda bem que tenho a mente forte e, mesmo incrédula com o que avistei me empurrando e sufocando contra a cama, eu consegui me afastar. E olha que neste dia eu estava faminta…

Eu sei a dor da fome, sei o que é ouvir o estômago embrulhando diversas vezes por dia. Acostumei-me com isso e já sabia até a hora que ele iria roncar de novo. Talvez seja por isso que ASMRs não me agradam. Aqueles sons baixos me lembram da minha única companhia fora o meu filho. Ouvir o estômago roncar mais e mais naquela casa escura. 

Quando você entra numa casa que o cadeado não fecha, já suspeite logo. Algo normal não está ali dentro, e quando apenas uma lâmpada funciona, então saia correndo o quanto antes. Esse é o manual de sobrevivência cuja experiência posso te alertar. Não sou a voz da verdade, e ainda assim tudo que falo aqui é verídico. É duro ler algo que já foi macerado em uma pessoa quando você não costuma pensar em tais fatos. Nossa rotina às vezes não nos dá espaço para pensar no alheio e talvez seja por isso que mesmo em sociedade, às vezes nos sentimos tão sozinhos. 

Destrinchei alguns fragmentos da casa, e com tantos pensamentos me levando a esse desabafo, te digo que ouça meu conselho. Até um homem de fé que prega a palavra correu ao entrar na casa, ele disse que precisaria derrubar tudo e reconstruir. Quando se tem apenas uma refeição por dia, como se pode derrubar o seu maior pesadelo? É fácil falar vendo do lado de fora, sentindo apenas a energia uma vez por dentro. Aquele ambiente era o mais profano dos lugares. 

Você que gosta de casa assombrada, será que gostaria de sentir o horror que ela realmente proporciona? 

A casa da travessa foi o meu maior medo por anos, eu senti e vivi a morte quase todos os dias. Eu não risquei só as folhas deixando cartas pela casa, acabei riscando também o meu corpo, mas a tinta era de outra cor. Não deixo mais um pingo sequer dessa tinta me atormentar, já agonizando tudo que tinha pra viver quando morei na travessa. 

O declínio mora naquele lugar, a casa estava aos cacos e não só por ela ser daquele jeito, os membros passados não cuidaram bem e ela sentiu. Eu a julgo porque fui uma moradora que sofreu os traumas da casa, ela descontou em mim pensando que eu seria só mais uma, e eu superei as dores dela. 

Como que se abraça uma casa?

A Bíblia com as fotos furadas nos rostos e apenas uma foto normal. As palavras clamando por um nome daquele em quem acreditam, mesmo algo estando fora das leis divinas. 

A crença na existência se fez permanente naquela mente anterior. Eu fui apenas uma câmera para registrar tudo aquilo em alguns momentos, mesmo que minha lente estivesse embaçada e quebrada. 

Guardo em mim as emoções daquela época e te digo, caro leitor, não entre numa casa da travessa. Principalmente se ela tiver tudo que te falei. Sua mente pode não ser mais a mesma. Ou você supera ou você encerra sua doce vida. 

Não apague a única luz que tem dentro da casa. Ela pode ser a única fagulha que existe também em você. Se nem o eletricista conseguiu funcionar todas as luzes do ambiente, quem sou eu para apagar a única coisa que me restava. 

Um dia eu saí e o banheiro caiu, ainda bem que ninguém se machucou. Ouvir os detalhes da casa não morando mais lá, me faz sentir naqueles jogos de realidade virtual, porque eu senti tudo e as cicatrizes que hoje estão fechadas, não doem mais como antes. O único declínio que me cerca é o da minha mente se deixar levar pelas lembranças mais dolorosas da casa da Travessa.

Texto publicado na 4ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de abril de 2024. → Ler edição completa

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