O Paciente das 18h

MidjourneyAI

Todos os acontecimentos aqui narrados aconteceram entre o verão de 2020 e o inverno de 2021. Resolvi reunir todos meus registros sobre o caso, cada nota, cada página de meu diário, cada mensagem trocada, cada relato, a fim de que outras pessoas possam se proteger daquilo que eu mesma, infelizmente, quase não pude.

Mesmo após anos de carreira e estudo, podemos nos surpreender por pacientes com demandas muito… singulares, eu diria. Apesar de todo o preparo que recebi para não impor minhas crenças, conceitos e princípios às pessoas que atendo e que buscam meu consultório, devo admitir que nunca fui tão desafiada, tão pressionada, tão questionada quanto fui com o último paciente que atendi como psicóloga clínica.

Antes de começar sua leitura, preciso que acredite em cada palavra que escrevi, pois, todas são verdadeiras, mesmo aquelas que pareçam impossíveis ou carregadas de angústia e desespero. Mesmo que não acredite, peço que se mantenha atento, afinal, existem seres que se parecem conosco, falam como nós, se comportam e, talvez, até um dia tenham sido mesmo pessoas comuns, mas hoje estão além de qualquer atribuição comum — embora eu creia que até exista uma, porém ela é fantasiosa demais para ser escrita aqui.

Não se deixe seduzir. Não se deixe levar pelo desejo ou pelos gracejos. Isso pode custar sua vida.

5 de dezembro
Diário da Dra. Camila

Dei por encerrados os atendimentos do dia. Já era tarde e eu precisava liberar Laura, secretária da clínica, para ir descansar. Não lembro ao certo, mas creio que atendi mais de quinze pacientes hoje e estou exausta. Me despedi dela, desejei um ótimo final de semana e disse que eu mesma fecharia a clínica.

Desliguei as luzes do consultório, guardei meu caderno e notebook na bolsa. Fechei a porta. Fui à recepção, acionei o alarme, tranquei a entrada no tempo de o alarme se armar.

Meu carro estava, como de costume, em frente à clínica. Entrei, joguei a bolsa no banco do passageiro e resolvi verificar as mensagens do celular. Havia, como sempre, mensagens de alguns pacientes (que Laura prontamente responderia na segunda-feira de manhã) e pouquíssimas mensagens pessoais (somente minha mãe comunicando um almoço em família, o que eu certamente ignorei).

Me dei conta de que a rua estava muito vazia e silenciosa, então resolvi guardar o celular dentro da bolsa e colocá-la debaixo do banco.

Pessoalmente não acredito em instinto, ou algo parecido, mas fui abatida por uma sensação estranha. Angústia, medo, como se eu estivesse sendo observada. Olhei ao redor, através dos espelhos do carro, porém nada encontrei. Resolvi ignorar. Liguei o carro e voltei para casa, que fica há poucos minutos da clínica.

Como sempre, sem trânsito.

Ao chegar em casa atualizei os registros de alguns pacientes e dei meu trabalho encerrado por hoje.

Uma taça de vinho é minha companheira enquanto escrevo essas páginas.

7 de dezembro
Diário da Dra. Camila

Ontem descansei como não fazia há muito tempo. Fui ao parque, caminhar pela manhã. Passei o restante do dia lendo e vendo alguns filmes.

Hoje cheguei antes do horário. Abri a clínica como de costume e fiz café. Laura chegou pouco depois de mim. Ela é sempre muito prestativa e companheira. Está cursando psicologia e, assim que se formar, quer atender junto comigo, aqui mesmo. Fico feliz de tê-la ao meu lado.

Como sempre, tive a agenda cheia até tarde da noite.

Meus pacientes são, em sua maioria, adultos, embora eu atenda alguns adolescentes, casais em processo de divórcio, executivos à beira de um burnout, jovens que em breve irão prestar vestibular… é uma diversidade muito grande de casos.

O último paciente do dia desmarcou em cima da hora. Isso é raro de acontecer. Mesmo assim, eu e Laura ficamos na clínica, conversando sobre o andamento da faculdade dela. Estava no quinto semestre e tirava ótimas notas.

O telefone tocou. Interrompemos a conversa, as risadas, e eu mesma atendi.

A voz ao telefone era de um homem, muito sereno e quase alegre por falar diretamente comigo. Ele disse que gostaria de marcar uma consulta para aquele mesmo momento. Eu disse que, infelizmente, não havia mais horários disponíveis para hoje, mas que poderíamos marcar para o dia seguinte, logo cedo. Ele foi categórico, quase contrapondo a postura que tinha até então, e me perguntou se haveria algum horário depois das 18h. Confirmei a disponibilidade e ele ficou feliz novamente. Disse que estava ansioso em me conhecer. Nos despedimos e liberei Laura.

Ao voltar para casa, mantive meu hábito de atualizar alguns prontuários.

Logo fui invadida pela lembrança daquela ligação. Um novo paciente. Mesmo após anos de profissão, ainda fico um pouco ansiosa quando alguém novo aparece. Meus pacientes estão todos comigo há muito tempo e, geralmente, minha agenda não comporta mais, então eu encaminho para outros profissionais, amigos da faculdade.

Por sorte, eu diria, havia um último horário disponível para o dia seguinte.

Vou preparar a ficha dele e dormir.

8 de dezembro
Diário da Dra. Camila

Pontual, exatamente às 18h, ele chegou à Clínica e tocou a campainha. Eu sei, pois, Laura me contou, dado que a campainha só toca na recepção. Eu estava encerrando um atendimento naquele instante. Laura o recebeu e, mais tarde, quando estávamos a sós, ela me disse que, mesmo após abrir a porta para o homem, ele esperou. Fitou os olhos e a entrada da clínica, como se esperasse um convite. Ela então disse para ele entrar e ficar à vontade, pois logo seria atendido. Assim, abrindo um sorriso, o homem agradeceu e entrou.

Seus cabelos eram curtos e muito bem cortados. Seus olhos eram castanhos, num tom avermelhado que eu jamais havia visto. Seus dentes eram incrivelmente brancos e sua pele bem cuidada.

“Raphaël” era seu nome, exatamente como escreveu na ficha. Deve ter origem francesa ou algo do tipo.

Vestia um belíssimo terno. Sapatos engraxados e a camisa aberta, sem gravata.

 — Ah, doutora! É um grande prazer conhecê-la!  — E me estendeu a mão, em cumprimento. Eu aceitei sua oferta e imediatamente senti seu aperto de mão firme e seguro, como poucos homens costumam fazer.

Eu o levei até a porta do consultório e fiz menção para que entrasse. Ao entrar, logo após ele, senti um vento gelado que me fez arrepiar. Muito provavelmente veio da janela que deixei aberta, dentro da sala. Por um instante, ele parecia uma criança, curioso e fascinado com tudo que via. Ficou parado por alguns segundos, no meio da sala, enquanto eu fechava a porta.

 — Onde devo me sentar? — Perguntou, olhando para as duas poltronas disponíveis. — Onde achar melhor.

Ele olhou mais um pouco e decidiu, como quase todos os pacientes, a sentar-se na mais próxima. Eu me sentei na outra poltrona, de frente para ele.

Ele estava realmente encantado com tudo que via, desde a estante repleta de livros até a mesa de centro.

 — As pessoas choram muito aqui? — Perguntou, ao ver a caixinha de lenços na mesa de centro. Eu não respondi, especialmente porque ele não pareceu dar atenção à própria pergunta que fez.

 — Então, como começamos? — Ele cruzou as pernas, se apoiou confortavelmente e me olhou nos fundos dos olhos, ansioso.

 — Quer falar um pouco de si? — Eu faço uma pergunta simples, para que o paciente comece a elaborar a partir daí.

 — Sempre tive muita curiosidade para saber como era dentro de um consultório, para saber como tudo isso funciona. As pessoas entram, falam sobre suas vidas e saem bem. Não sei que tipo de magia é essa que os psicólogos possuem, mas estou interessado nela. — Ele respirou profundamente. — De toda forma, não é sobre isso que vim falar. — Um pequeno silêncio pairou sobre nós — Eu li muitos livros, muito mais do que consigo contar. Tenho uma coleção tão grande quanto a sua. — E apontou para trás, para a estante.

 — Sobre o que você lê? — Perguntei, novamente.

 — Ah! Muitas coisas! Sou um homem muito curioso. A curiosidade nos mantém entretidos! — Seus olhos brilharam. — A curiosidade mantém uma mente ocupada, e uma mente ocupada é uma mente saudável, não é? — Então, me olhou novamente nos olhos, buscando uma resposta. Com um gesto, concordei. — Eu li seu currículo.

A fala soou estranha e desprendida, mas não era raro novos pacientes pesquisarem por mim na internet. As pessoas gostam de saber para quem estão olhando.

 — Excelente formação acadêmica. Diversas pós-graduações. Pesquisas sobre prevenção ao suicídio… acredito que você é a pessoa perfeita para me ajudar.

Aqui a sessão tomou outro rumo. O paciente descruzou as pernas, se projetou para frente e, com os dedos entrelaçados e apoiados no queixo, me olhou ainda mais profundamente nos olhos.

A essa distância pude ver que seus olhos, sob a luz do consultório, eram mais vermelhos do que eu pensara ter visto.

 — Eu tenho tido sonhos… como não tinha há muitos e muitos anos. — Com o que sonha?  — Sonho que estou sendo perseguido. É dia e o sol queima no céu. Eu corro tentando me proteger, enquanto uma turba me persegue, armados. — Ele faz uma pausa, quase desconfortável, e continua — Eu não sonho, e não deveria sonhar.  — Por que não deveria sonhar? — Pergunto.  — Eu… não durmo o suficiente para sonhar. Para entrar naquela profundidade de sono onde os sonhos nascem, você entende. — A resposta parecia inventada de última hora, e soou falsa.  — Como o sonho continua?  — Ah! A curiosidade do psicólogo… bem, eu me sinto incapaz de continuar a fugir. Eu poderia, em outras circunstâncias, facilmente lidar com todos eles, mas, por algum motivo que me foge da compreensão, não consigo! Então eu sinto… — Ele parou, apreensivo. Alguns segundos se passaram, que pareceu verdadeira eternidade — Eu sinto medo.

O paciente transpareceu uma expressão de pesar. Então, se levantou. Caminhou pela sala, correndo as mãos e os dedos pelos móveis. Parou em frente à estante.

 — Freud… Jung… Lacan… — Se referindo aos autores. — Você não lê fantasia? Romances? — Novamente, não respondi. Era claro que ele se esquivava constantemente dos reais motivos que o levavam até ali. O pensamento sobre medo o perturbou ao ponto de se levantar e buscar comentar sobre qualquer outra coisa.

Olhou o relógio em seu pulso e disse, em tom surpreso, que já precisava ir.

 — Mas ainda temos trinta minutos…  — Acredito que já progredimos o bastante por hoje. Foi um prazer conhecê-la! Posso voltar neste mesmo horário, na semana que vem?  — Vou confirmar e te retorno até amanhã cedo.  — Que assim seja! — Respondeu abrindo a porta e partindo.

Confesso que fiquei intrigada com aquele comportamento. Em raras situações vi pacientes evitarem tão arduamente determinados assuntos. Ele simplesmente saiu, incomodado com suas próprias palavras. De toda forma, semana que vem ele voltará, e poderemos progredir.

8 de dezembro
Nota retirada do caderno de Laura

Vi o novo paciente sair às pressas do consultório, no meio da sessão. Ele parecia apressado para algum compromisso. A doutora nada disse sobre, apenas me dispensou mais cedo e fechou, ela mesma, a clínica.

Aqui, na faculdade, não consigo me concentrar na aula, então resolvi escrever.

Antes de sair, ele parou ao lado da porta, abotoando o último botão do paletó. Me levantei e fui abrir a porta para ele. Quando toquei a maçaneta, senti sua mão quente sobre a minha. Um arrepio gelado me subiu pela espinha quando vi seus olhos fixados aos meus.

Só pude fingir constrangimento e pedir desculpas. Ele se despediu e saiu, me desejando boa noite.

14 de dezembro
Diário da Dra. Camila

Outro dia repleto de atendimentos. Cheguei em casa há poucos minutos e estou exausta. Só percebi agora que sequer almocei. Estou um pouco tonta.

Antes de dormir, vou atualizar alguns prontuários e preparar as coisas para amanhã.

14 de dezembro — Mais tarde, naquela mesma noite
Diário da Dra. Camila

É incrível como podemos ser vítimas de diversos acontecimentos quando estamos em um estado de exaustão. Agora pouco eu poderia jurar, com toda a minha convicção, que ouvi três batidas na porta. Levantei, assustada, e me aproximei. Não ouvi nada lá fora. Voltei a dormir.

15 de dezembro
Diário da Dra. Camila

O paciente Rafael (não vou me acostumar a escrever “Raphaël”) voltou, como era esperado. Antes dele entrar, percebi que Laura estava um pouco pálida, mas ele adentrou o consultório antes que eu pudesse perguntá-la se tudo estava bem.

O paciente se sentou e começamos a sessão.

 — Peço desculpas por ter saído às pressas na semana passada. Me dei conta de que estava atrasado para um compromisso que não poderia deixar de comparecer.
 — Tudo bem… E como foi a semana?
 — Creio não ter te contado, mas me mudei recentemente. Vim para São Paulo lidar com questões familiares, eu diria.
 — E como tem sido a adaptação?”— Perguntei.
 — São Paulo é uma cidade enorme… Muitas pessoas e todas elas muito… agitadas. A cidade não dorme, como dizem por aí, e eu gosto bastante disso. — Ele fez uma pausa, como se procurasse uma forma de expressar algo. — A senhorita costuma sair à noite? — Perguntou. Respondi que não tinha esse hábito desde antes da faculdade. — É uma pena. A noite reserva diversões bem… peculiares… sobre o sonho, gostaria de falar mais sobre ele.

Eu tinha certeza de que ele voltaria a esse assunto, uma hora ou outra, mas não esperava que fosse tão rápido.

 — Ele continua, quase todos os dias… Eu sou perseguido, sem chance de reagir, e quando estou acuado eu acordo. — Perguntei a ele que sentimentos este sonho trazia. Ele parou e refletiu, por um bom tempo. Eu esperava que a palavra “medo” surgisse novamente. — Não sei dizer. — Respondeu, com os olhos fixos no chão.
 — Angústia? Raiva? — Sugeri.
 — Ah, não! Eu não vivencio tais sentimentos há mais tempo do que consigo lembrar!
 — Ser perseguido e atacado deve trazer sentimentos ruins… — Sugeri novamente.

Ele esboçou um sorriso tímido, o suficiente para mostrar seus dentes incrivelmente brancos.

 — Sim, deveria! Mas eu não os tenho, como te disse. Não sei dizer o que sinto.
 — Percebo que o que te preocupa mais é o fato de sonhar do que o sonho em si.

Ele cerrou os olhos, que agora pareciam castanhos novamente.

 — Creio que você tem razão… E digo mais! Creio que ambos os fatos são estranhos para mim! Afinal, sequer me lembro do último sonho que tive, além deste. Por que deveria eu sonhar agora? Seria um aviso, como alguns acreditam? Uma premonição vinda do inconsciente? Um receio guardado tão profundamente que só veio à tona agora? O que acha? — Disse, empolgado.
 — Freud dizia que… — Comecei, até ele me interromper abruptamente.
 — Eu sei o que Freud dizia! Já li todas as suas obras, mais de uma vez. Tomei a liberdade de pesquisar muito sobre o assunto antes de vir procurá-la. Sonhos são a manifestação do inconsciente, não? É através deles que nossos desejos reprimidos vêm à tona, mas numa linguagem que não entendemos.

Então, ele se aproximou, sentando na ponta da poltrona, projetado na minha direção.

 — Eu sei o que os livros falam, doutora, mas eu não quero ouvi-los, quero ouvir a senhorita.

A voz dele se tornou ríspida, árida e desafiadora. Ele queria uma resposta, uma solução, mas somente ele poderia encontrá-la.

 — Sonhar é normal e comum a todos, desde que você tenha uma boa noite de sono. — Respondi, e continuei — Agora, por que acha que as pessoas o perseguem?

Ele voltou a se recostar na poltrona, mais relaxado.

 — No sonho, você diz? — Perguntou, então confirmei com um gesto.
 — Ah, sim! Eles têm medo! — Respondeu, quase rindo novamente.
 — Eles sentem medo?
 — Sim! Sentem! Posso ver isso em seus olhos enquanto estão furiosos atrás de mim. Medo, doutora, o mais profundo e visceral medo, eu diria!

Neste ponto, acredito que o paciente esteja projetando seus próprios sentimentos, por mais que os renegue, aos seus perseguidores.

Um vento gelado entrou pela janela, me fazendo arrepiar. Levantei-me e a fechei.

 — A noite está linda, não está? — Perguntou, atento a cada movimento meu.

Quando sentei e fiz menção de continuar, ele se levantou.

 — Veja só! Preciso partir. Creio que avançamos o suficiente!

Sessões tão curtas e breves não permitem um bom progresso. Sugeri marcamos mais cedo para a próxima semana, sugestão que foi negada prontamente por ele.

Saiu às pressas, assim como na semana passada.

15 de dezembro
Nota retirada do caderno de Laura

O mesmo paciente voltou. Novamente, saiu rápido do consultório, poucos minutos depois de entrar. Parou em frente à minha mesa e tirou um envelope pardo. Disse que ali havia dinheiro suficiente para quitar sua dívida e adiantar as próximas sessões.

Quando peguei o envelope, enquanto abria, me dei conta de que o paciente não estava mais lá. A porta estava entreaberta e não percebi quando saiu. Me sinto inquieta.

21 de dezembro
Diário da Dra. Camila

O Natal se aproxima. Minha mãe insiste que eu vá às comemorações da família, mas não me sinto à vontade para isso. Todos os anos é a mesmíssima história: jantares chatos, comentários desagradáveis e uma competição estranha por “sucesso”.

Este ano acho que vou abrir uma garrafa de vinho em casa e maratonar alguma série. Preciso descansar…

21 de dezembro — Mais tarde, naquela mesma noite
Diário da Dra. Camila

Isso deve ser uma piada! Ouvi as mesmas três batidas na porta há poucos minutos. Acordei num sobressalto e fui, com uma faca, até a porta. Novamente, ninguém. Deve ser algum engraçadinho tentando me assustar.

22 de dezembro
Registros pessoais do policial Jonathan

Essa cidade é uma merda. Toda noite é uma novidade… agora os viciados começaram a matar animais! Toda noite aparecem mortos um… dois… às vezes até três animais de rua.

Imagina ter que limpar essa merda toda… todo dia uma novidade!

Se não forem os viciados deve ser algum desafio entre jovens ou sei lá. Se essa porra continuar vou ter que abrir uma investigação, e como sempre vai sobrar pro meu rabo.

22 de dezembro
Diário da Dra. Camila

Estive cheia de atendimentos e o dia passou rápido. Atendi o penúltimo paciente antes do horário e fiquei esperando as tão aguardadas 18h.

Fui ao banheiro e voltei. Perguntei a Laura se nosso paciente havia chegado, ela disse que ainda não.

 — Ora, perdoem minha falta de modos! 

Não tenho ideia de onde ele veio, mas estava na porta do consultório, com os braços cruzados, quase impaciente. Tentei esconder o susto, mas creio que meu semblante tenha transparecido.

 — Como a porta estava aberta, tomei a liberdade de entrar. — Disse, sereno.
 — Ah, tudo bem! Vamos entrar… — Meu coração ainda estava acelerado pelo susto e vi, pelo canto do olho, Laura quase que paralisada pelo acontecimento.

Antes de entrar, peguei um copo d’água na recepção.

 — Noite quente? — Perguntou, quase que em deboche. Não respondi e fiz menção para entrarmos, fechando a porta em seguida.

Ele se sentou na mesma poltrona de antes. Cruzando as pernas e entrelaçando os dedos. Sentei-me e perguntei como havia passado a semana.

 — Ah, muito bem. Tenho me acostumando cada vez mais com a cidade grande, me sinto vivo! — Disse, transparecendo uma empolgação que eu, poucas vezes, vi antes.

Reparei, novamente, em seus olhos. Estavam mais vermelhos e menos castanhos que da última vez, deve ser a iluminação da sala.

 — Doutora, preciso perguntar uma coisa. — Então, assumiu a clássica postura projetiva, sentando-se na ponta da poltrona e se inclinando sobre a mesa de centro. Pegou a caixa de lenços e começou a lê-la.

 — Você já desejou a morte? — A pergunta foi fria e direta.
— Não, nunca. — Respondi, o mais calmamente possível.
 — Ah, que bom! Pois eu a desejei por várias vezes. — Disse, com uma calma que eu jamais pensei em ver em alguém que admitia, abertamente, pensamentos suicidas.
 — Está dizendo que já desejou morrer?
 — A grande surpresa aqui é a senhorita nunca ter desejado a morte! Mas não é esse o ponto… O ponto é que lembro com clareza de quando isso aconteceu. Faz tanto tempo que por pouco não esqueci por completo. — Soava estranho ouvir tantas vezes menções a acontecimentos tão distantes, sendo que ele havia relatado ter apenas trinta anos de idade. Mantive a atenção e o foco na narrativa. — Eu estava distante, muito distante, na Itália. Já conheceu a Itália doutora? — Neguei com um gesto, e ele continuou — Uma pena! A Itália possui lugares onde eu facilmente escolheria viver até o fim dos tempos!

 — Você disse que foi lá que os pensamentos sobre morte começaram… — As respostas iriam aparecer.
 — E sim, de fato foram! Reflita comigo, doutora, quando você observa algo tão lindo, por tanto tempo, poderia este algo permanecer tão belo quanto a primeira vez que seus olhos pousaram nele? Claramente não! A experiência, o momento, é único e, após perdido, jamais retorna. Foi exatamente aí que percebi que lugar algum neste planeta me faria feliz pelo tempo que desejo.
 — Então você pensou em morrer?

Ele riu alto.

 — Talvez! Ou teria sido antes? Não sei dizer…— Como sempre, se recostou na poltrona, voltando a relaxar. — Quando você vive sem medos, doutora, a vida se torna um tédio infindável. Hoje, nada me falta. Aprecio meu trabalho e o faço com prazer. Possuo uma casa grande o suficiente para me acomodar por muito tempo. Possuo fortuna abundante herdada de meu pai. Que mais ei de querer?

Agora o cenário começa a se desenhar. Ele é um herdeiro entediado e começou a refletir sobre a vida.

 — E como é sua relação com esse pai? — Estamos progredindo.

Ele deu de ombros, com um sorriso no canto da boca.

 — Eu mal o conheci. Tivemos um relacionamento intenso e extremamente curto, eu diria. Depois disso, nunca mais o vi. Recebi um comunicado quando ele morreu, me declarando herdeiro de todas as suas poses. Eu era jovem e creio ter aproveitado muito bem as oportunidades que me foram dadas. — Senti um tom amargo e pesado em sua fala. Tive receio de que desse a sessão por encerrada e tentei buscar mais respostas.

 — Você relaciona o tédio com a morte. — Quando eu disse, ele rapidamente me olhou nos olhos, focado. — Como se o tédio fosse te consumir e tirar de você a vida. — Arrisquei. Ele refletiu em silêncio por alguns minutos. É um dos poucos pacientes que sustém o silêncio, a maioria se sente incomodado e fala o que vem à cabeça.

Levantou-se devagar, pensativo.

 — Veja só, que horas são. Preciso partir. Retomamos na semana que vem? — Eu disse que vamos entrar no pequeno recesso de Natal e ano novo, e que vamos retomar na primeira semana de janeiro. Ele não pareceu satisfeito, mas concordou.

22 de dezembro
Nota retirada do caderno de Laura

Beleza, tem alguma coisa muito estranha acontecendo. Aquele cara simplesmente apareceu do lado de nós duas! A porta não estava aberta, eu tinha acabado de olhar pra ela uns, sei lá, dois segundos antes disso tudo!

Eu não suporto aqueles olhos vermelhos me olhando…

24 de dezembro, véspera de Natal
Diário da Dra. Camila

Me permiti ficar em casa, em paz e tranquilidade. Já separei o vinho, os salgadinhos e a série. Quero dormir até tarde e descansar.

24 de dezembro — Mais tarde, naquela mesma noite
Diário da Dra. Camila

Devo ter caído no sono sem perceber, ou o vinho me derrubou. Não tenho ideia como, mas acordei de pé, de frente para a porta, e ela estava aberta. As chaves estavam na minha mão. Será que tive um episódio de sonambulismo? Isso nunca me aconteceu antes. Depois preciso perguntar para mamãe se existe histórico disso na nossa família…

É surreal a sensação de acordar e estar de pé, quase saindo de casa. Mal posso imaginar o que poderia ter acontecido.

Bem, chega de vinho nos próximos dias.

25 de dezembro — Natal
Registros pessoais do policial Jonathan

Odeio trabalhar no Natal, mas prefiro isso do que ter que trabalhar no Ano Novo. Ninguém merece.

Estou na delegacia, tomando um café enquanto vejo o noticiário da madrugada. O caso dos animais mortos só piora e, pra melhorar tudo, agora uma pessoa apareceu morta! Deve ter algum cachorro ou outro bicho andando por aí, porque o corpo tinha as mesmas marcas que encontramos nos animais, como se fossem pequenos furos no pescoço. Será que tem um morcego andando por aí? Mas que caralho de morcego conseguiria matar uma pessoa?

25 de dezembro — Natal
Diário da Dra. Camila

Fazia muito tempo que eu não descansava decentemente… A rotina entre atendimentos e relatórios era tudo que eu tive desde que me formei na faculdade. Me tornei referência na área, atendendo mais casos do que sou capaz de lembrar. Até escrevi alguns livros sobre terapia cognitivo-comportamental e casos específicos que atendi.

Agora, tudo que quero, é me desligar, nem que seja por alguns dias, das responsabilidades e obrigações.

Respondi a pouco a algumas mensagens desejando um feliz Natal.

Vou ao mercado comprar algo especial para o jantar.

25 de dezembro — Natal, à noite
Diário da Dra. Camila

Me sinto tão linda. Coloquei um vestido que não usava a muito tempo e que serviu perfeitamente em mim. Preparei uma ceia farta (até demais para uma única pessoa) e até pus a mesa! Deixei tocar uma lista de músicas clássicas, que deixaram a casa com uma atmosfera maravilhosa e acolhedora.

Pensei em convidar Laura para cear comigo, mas acredito que a coitada queira um pouco de privacidade depois de um ano inteiro trabalhando ao meu lado.

Vou tomar uma, e somente uma, taça de vinho, somente para relaxar e aproveitar melhor o fim da noite.

25 de dezembro — Natal, mais tarde naquela mesma noite
Registros pessoais do policial Jonathan

Como sempre digo, essa cidade sempre é uma novidade. As investigações tomaram outro rumo depois que outro corpo foi encontrado. Dessa vez, havia algo diferente. O corpo não havia sido apenas mordido, mas destroçado. Seria irreconhecível se não fossem as digitais preservadas. A merda é que o exame deve levar dias, talvez semanas, até retornar quem era o viciado que virou jantar de algum bicho.

Por sorte, dessa vez achamos duas testemunhas e uma câmera que pegou de relance o responsável por essa insanidade: um cachorro. A imagem era péssima, desfocada e parecia acelerada, mas dava pra ver um cachorro enorme, preto, que cruzava a rua e desparecia.

Essa cidade é absurda de dia, e ainda mais de noite.

Não virei policial para dar conta de cachorro, mas olha essa merda! A porra do cachorro destroçou um homem adulto como se fosse nada.

Amanhã cedo vou acionar o centro de controle de animais e passar esse caso de merda pra frente.

26 de dezembro — A noite
Diário da Dra. Camila

Acho que o tempo de descanso, aliado do pouquíssimo vinho que tenho tomado, devem ser os responsáveis pelas alucinações visuais que tenho tido a noite, mas essa foi muito, muito vívida pra mim, tanto que estou escrevendo isso tonta e com as mãos trêmulas.

Eu estava na cama, coberta e acomodada, quando sofri um episódio do que deve ser terror noturno. Não consegui me mover, estava paralisada por completo, mas consciente de tudo ao meu redor. Olhei ao redor, tomada de terror e medo. Minha visão estava borrada, turva, mas eu reconheci claramente a imagem de um gato preto, grande, sentado no pré da minha cama, me olhando nos fundos dos olhos, que pareciam dois rubis. Eu não tinha um gato fazia muito, muito tempo, e a vizinhança não era receptível com eles. Por onde ele entrou? A casa estava completamente fechada, desde as janelas até a porta, e eu tinha certeza absoluta de que tranquei tudo antes de me deitar.

Contrariando toda a lógica e probabilidade, lá estava ele. Escuro como a noite, imóvel como uma estátua, com aqueles dois pontinhos brilhosos na escuridão.

Me esforcei ao máximo para me mover, nem que fosse um único e pequeno movimento, mas falhei. O terror noturno é apavorante, mesmo quando você o conhece.

Tentei gritar, mas minha boca sequer se moveu.

Eu estava indefesa, desprotegida, sem chance alguma de reagir a qualquer coisa. E o gato continuava ali, imóvel como uma esfinge.

Em um pulsar, ele pareceu maior e mais próximo. Comecei a sentir um desespero visceral, que me corroía os ossos.

Aquilo não era um gato.

Mergulhei em seus olhos rubi e adormeci profundamente, como nunca havia adormecido antes.

28 de dezembro
Nota retirada do caderno de Laura

Faz dias que eu não tenho uma noite de sono decente. Eu me sinto observada, em casa, na rua, em qualquer lugar. Talvez o estresse do final de semestre na faculdade tenha encadeado alguma condição clínica em mim… Eu durmo e acordo assustada, como se escapasse por pouco de algo.

A privação de sono tem surtido efeito… Minha memória anda péssima e minhas capacidades cognitivas estão ridiculamente baixas… se eu estivesse em época de prova estaria ferrada.

Estamos no final do ano, eu deveria estar dormindo doze horas por dia, mas sequer consigo dormir três horas seguidas…

Se tudo isso continuar, vou procurar ajuda.

30 de dezembro
Diário da Dra. Camila

Desde o terror noturno não mais problemas em dormir. Tenho tirado tempo para caminhar no parque, continuar meu último livro, que estava parado havia meses, ouvir música e pôr a leitura em dia.

Me sinto linda, jovem e disposta como nunca estive antes.

31 de Dezembro
Registros pessoais do policial Jonathan

Trabalhei durante o Natal e agora vou ter que trabalhar no final do ano! Já estou farto dessa porra de trabalho… ainda estou preso no caso dos ataques noturnos, especialmente agora que mais meia dúzia de corpos, dilacerados, ocupam as mesas de autópsia do centro médico. Os veterinários levantaram hipóteses absurdas sobre o culpado dos assassinatos… Cachorros de raças de grande porte, leões, animais exóticos… Eu estou convencido que existe um assassino em série aqui, e que ele tenta a todo custo despistar a polícia.

A real é que não sei o que achar… nunca vi um caso assim e é praticamente impossível rastrear um culpado.

3 de janeiro
Diário da Dra. Camila

Amanhã voltam os atendimentos. Me sinto descansada e preparada. Só existe uma coisa que tem me incomodado… Laura não responde minhas mensagens.

Lhe desejei um feliz Natal e um ótimo ano novo, ela nem mesmo viu as mensagens e tampouco as respondeu. Resolvi não fazer caso, afinal, Laura deve estar entretida com a família e pode não ter respondido por achar se tratar de mensagens sobre o trabalho. De toda forma, amanhã nos veremos e podemos pôr o papo em dia.

O paciente das 18h confirmou a sessão para amanhã, disse que estava ansioso para contar as novidades e que a terapia seria “chocante”, seja lá o que ele queira dizer com isso.

Às vezes é difícil se ausentar pelo período das férias, mas é necessário e até terapêutico para alguns pacientes.

Estou empolgada para rever Laura contá-la sobre meus últimos dias.

4 de janeiro- Pela manhã
Diário da Dra. Camila

Laura não deu notícias e tampouco foi trabalhar. Meu coração ficava cada vez mais apreensivo com o passar das horas e sem o mínimo sinal dela. Não recebeu minhas mensagens, não atende o celular e nem mesmo sua família dá notícias sobre seu paradeiro. Se ela não aparecer amanhã vou tentar outras formas de comunicação.

Precisei seguir o dia sozinha e cuidar da recepção e dos atendimentos.

4 de janeiro- A noite
Diário da Dra. Camila

Com anos de profissão ainda me surpreende que os pacientes possam trazer acontecimentos que me façam questionar as minhas próprias noções de realidade. Isso aconteceu hoje.

Rafael, o estranho e singular paciente das 18h, apareceu e, como da última vez, com sua repentina entrada cheia de mistério. Quando seu horário chegou, surgiu dentro do consultório, me dizendo que a porta estava aberta e que tomou a liberdade de entrar. Não sei como ele faz isso, mas vou por algumas hipóteses à prova na próxima semana.

Ele estava empolgado, corado e, arrisco dizer, até jovial. Seguiu me contando animadamente sua rotina durante o recesso, animado com suas descobertas sobre a “cidade grande” que São Paulo é. Parecia uma criança quando me contou que passou horas sentado em um café na Avenida Paulista, observando as pessoas que entravam e saíam, tentando prestar atenção em cada detalhe, desde suas roupas, seus gestos, sua forma de falar… Tudo isso dramatizando cada fala, como em um teatro.

Pela primeira vez, a sessão foi do começo ao fim, de forma fluida e vaga. Não nos aprofundamos em nenhum dos temas anteriores e ele parecia completamente renovado.

Ao chegar em casa, tentei contato com Laura pelas redes sociais, mas ainda sem resposta…

8 de janeiro
Diário da Dra. Camila

Estou horrorizada… mal consigo escrever estas palavras sem deixar escapar as lágrimas… Laura está morta.

Pelo relato da polícia, ela foi atacada dentro do próprio quarto, por um animal ou algo do tipo. O sepultamento ocorreu ontem pela manhã, sem velório… Meu coração dói profundamente.

Acompanhei a cerimônia e o breve discurso ao lado de sua família. Pai, mãe e irmão, todos extremamente abalados pela brutalidade do acontecimento.

Contive as lágrimas e a dor até agora pouco, quando cheguei em casa.

Estou devastada… vou cancelar os pacientes da próxima semana e tentar me recompor.

6 de janeiro — Último registro
Nota retirada do caderno de Laura

Eu não consigo dormir… não consigo comer… tem alguma coisa muito errada comigo… estou ficando sem desculpas para justificar o porquê passo o dia inteiro no quarto.

Estou sem forças, sem vontade… até arrisco dizer que estou vivendo um quadro depressivo, embora não tenha a menor ideia de como isso começou.

Não consegui nem mesmo pegar o celular para responder a doutora, que deve estar preocupadíssima comigo…

O pior de tudo são os sonhos… faz dias que tenho o mesmo sonho: Estou paralisada, completamente imóvel, e me sinto observada, como uma presa indefesa. Vejo a figura de um homem alto, com dois pontos vermelhos onde seriam os olhos. Ele me olha com desejo, raiva, crueldade… A cada noite ele se aproxima e eu tenho medo, muito medo, do que pode acontecer hoje.

11 de janeiro — A noite
Diário da Dra. Camila

Minhas mãos tremem e preciso me concentrar para escrever a insanidade que acabei de viver. Preciso que alguém acredite em mim.

Cancelei todos os atendimentos da semana, para tirar tempo para me recompor pela perda da Laura. Todos os pacientes compreenderam bem a questão e não insistiram. Exceto um. O paciente das 18h disse que precisava urgentemente falar comigo e foi inflexível. Eu disse que marcaria nossa sessão para o primeiro dia disponível. Ele nada respondeu e desligou o telefone.

Eu adormeci, com o rosto inchado e vermelho pelas lágrimas.

Acordei durante a noite e peguei o celular para conferir que horas eram. Exatamente 3h3. Meu coração disparou e deixei escapar um grito curto quando percebi que tinha alguém no quarto. Era o paciente das 18h!

Estava ali, tão real e vivo quanto eu estou agora, escrevendo isso. Sentado, com as pernas cruzadas e os dedos entrelaçados, me observando dormir.

Com o susto, deixei o celular cair e ele apagou, mergulhando o quarto na escuridão quase que total, apenas iluminado por um facho de luz vindo da pequena abertura na janela.

Ele não disse uma única palavra, permanecia imóvel e observador. A quanto tempo estava ali? Minutos ou horas? Isso já foi muito além da relação entre paciente e terapeuta!

Fiz menção de pegar o abajur da mesa de cabeceira, para tentar usar como arma, mas fui interrompida:

 — Eu não faria isso se fosse você, senhorita. — Ele estava perto demais para que eu conseguisse fugir ou pegar qualquer coisa para usar como arma. — Tem um copo de água ao seu lado. Tome e vamos conversar.

Olhei para a outra mesa de cabeceira, do lado esquerdo, e realmente tinha um copo d’água ali. Deve ter algo ali, pensei.

 — É seguro, beba.

Peguei o copo e tomei, sem tirar os olhos dele. Agora eu tinha um objeto, de vidro, que podia usar contra um possível ataque.

 — Desculpe entrar deste jeito, mas não havia outra forma. Eu preciso da senhora e nosso encontro não poderia ser adiado.
 — Quando você invadiu a minha casa cruzou uma linha que não deveria ser cruzada. — Respondi, tentando permanecer calma.
 — Invadi? Ah, não! Você mesma me convidou, não se lembra?

A porta… A única vez que abri a porta sem perceber foi durante o episódio de sonambulismo. Mas eu tenho certeza de que havia fechado a casa inteira hoje. Que absurdo era esse?

 — Só adentro ambientes aos quais sou convidado, senhorita. Sou educado e jamais ousaria entrar na casa de uma dama que não houvesse aberto as portas para mim.

Eu precisava lidar com aquilo. Eu poderia jogar o copo nele, correr até a porta, mas a essa distância não tinha como ter certeza se estava ou não aberta.

 — As coisas fugiram um pouco do… Controle. — Disse, tomando um ar sombrio e quase vulgar. — Acho que me deixei levar pela febre da cidade grande e errei a mão em alguns momentos. A senhorita deve entender.
 — Do que está falando? — Estava difícil manter a compostura perante uma cena insana como aquela.
 — É chegada a hora de algumas verdades, doutora.  — Ele se levantou, parecendo muito maior do que eu me lembrava. — Existem coisas que se parecem com seres humanos, andam, agem e até falam como, mas não são. Coisas que vagam pela Terra a tanto tempo que sequer se lembram do fatídico primeiro dia de suas novas vidas. Coisas, doutora, que veem pessoas belas e coradas como você como rebanho.

Era muita informação para processar, mas eu precisava estar atenta a narrativa e pensar em uma forma de escapar dessa loucura.

 — Eu sou assim, há mais tempo do que me recordo. Meu sangue não corre, meu coração não bate e eu preciso de vocês para continuar assim!  — Enquanto falava, seus dentes se tornavam mais brancos e seus caninos mais pontudos. — Note, bela dama, que não me orgulho de nada que fiz! Mas fiz por necessidade. Vim para São Paulo com esperança, devo admitir, esperança de encontrar alguém que me ajudasse a entender minha condição. Como viemos a descobrir, existem coisas que não devem ser compreendidas, apenas aceitas!

Minha mente vagueou e o terror tomou conta de mim.

 — Aceitas! Sim!  — Em uma fração de segundo, ele estava perto de mim, tão perto que consegui sentir o calor do seu corpo e suas mãos em meu rosto. Aproximou sua boca de meu ouvido e sussurrou — Cansei de tentar negar a fera que habita em meu interior. Cansei de manter oculto a vontade bestial de dilacerar, caçar e de tirar a vida.  — Estava tomada pelo terror e por uma sensação de submissão. — Monstros foram feitos para serem monstros, doutora.

Em um espasmo de coragem consegui virar o copo com força contra ele, mas, no mesmo instante, seu corpo não estava mais lá, mas próximo à janela, fazendo com o que o copo espatifasse na parede.

 — Hostilidade não combina com você.
 — Saia já da minha casa! — Exclamei, com as forças falhando.
 — Durma! — Foi a última palavra que lembro de ouvir, antes de acordar pela manhã, tonta, e com os cacos de vidro ao lado da cama.

Estou a horas sentada no canto do quarto, tentando entender tudo que vivi… até onde aquilo foi real? Até onde foi uma alucinação? Até onde posso confiar em meus próprios sentidos? Minha mente colapsa diante de tantas perguntas sem resposta…

Estou exausta, confusa, dolorida e apavorada.

Conto publicado na 1ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2024. → Ler edição completa

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Leonardo Garbossa

Leonardo Garbossa nasceu em São Paulo, em 1995. Desde jovem é um leitor apaixonado e grande fã das obras romancistas. Sentimentalista por natureza, iniciou sua vida acadêmica na área das ciências exatas, migrando em seguida para psicologia, que estuda atualmente. Teve a infância conturbada após perder o pai para o suicídio, tema que se tornou seu foco nos estudos acadêmicos. Foi criado pela avó, que fez o máximo possível para ensinar a ele a importância da excelência nos estudos e na cultura. Em Dezembro de 2020, percebeu que a escrita poderia ser uma ferramenta adicional à terapia. Desde então, passou a escrever quase diariamente. Após dois anos, e muito trabalho depois, resolveu publicar os melhores textos, todos inspirados em pensamentos, sentimentos e emoções pessoais, para que outras pessoas possam se sentir acolhidas em suas palavras.

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