Hereditário: Parte II, Darquinha — Capítulo III: Desmerecimento

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Bem antes de o sol nascer, Madame Staell já estava de pé, preparando um forte café preto para iniciar aquele dia que, ela sabia, seria longo e muito tumultuado. Darquinha ainda dormia tranquilamente naquele momento, depois de dolorosas lágrimas e muitas lamentações. Os suspiros e gemidos que emitia vez por outra demonstravam um imenso cansaço – o sofrimento consegue levar qualquer ser vivo à mais profunda exaustão. Seu vestido sujo de sangue havia sido lavado com suco de limão e já secava num pequeno varal dentro da barraca. Todo e qualquer vestígio que pudesse de alguma forma ligá-la ao crime em si havia desaparecido por completo. Com a morte de seu tio Nicolas – acusado injustamente do assassinato de Vladimir – o assassinato do faquir tinha sido solucionado. Madame Staell, que esteve bastante preocupada com o semblante de Darquinha e a possível desconfiança de seus companheiros pela tristeza dela, agora estava bem mais aliviada. Afinal, a jovem acabara de perder, de uma forma bastante violenta e covarde, seu único parente vivo. Mesmo com todos os defeitos que seu tio Nicolas pudesse ter, ainda assim, era o irmão de seu amado e saudoso pai. Sendo assim, ela poderia chorar à vontade e lamentar como quisesse seu luto.

Tanto Vladimir quanto Nicolas Benetti foram enterrados naquele mesmo dia. O velório de ambos fora simples, sem muita cerimônia, apenas as exéquias necessárias – exigência feita por parte da autoridade eclesiástica. A mulher que também perdera a vida naquela fatídica confusão fora velada e enterrada com toda a grandeza de uma pessoa de altíssima posição. Toda a cidade – até mesmo quem não simpatizava com ela – chorou pela sua morte. No fim da tarde, – na hora do ângelus – os sinos da igreja repicaram de forma tão triste que a qualquer um causaria um aperto no peito. Naquela noite, não houve espetáculo – pois até mesmo a quermesse fora cancelada – e, por mais uma vez, o circo estava de luto pela perda de dois integrantes ao mesmo tempo, como outrora o fora com os pais de Darquinha, parecendo que uma sombra de tragédia os acompanhasse.

De certa forma, todos estavam abalados com o acontecido – não porque alguém morresse de amores pelos dois companheiros que se foram, mas pela forma como tudo acontecera. O faquir morto pelo próprio instrumento de sua arte – que, juntamente com ele, fora enterrado numa sepultura simples. E o anão, pela violência de seu assassinato – que certamente ficaria impune – também fora jogado numa cova sem muito glamour. Pois aqueles que morrem mortes heroicas ou pelas mãos do destino trágico são eternamente lembrados. No entanto, ladrões, bêbados e todos os covardes são rapidamente lançados nas valas do esquecimento.

No provérbio: “... há males que vêm para o bem...” há mais verdade do que se imagina. No caso da perda de dois outros integrantes do circo, esse trágico fato tornara-se muito conveniente para as pretensões do dono do circo, que naquela mesma noite de tristeza e lamentação decidiu de uma vez por todas colocar um fim naquele artístico empreendimento. Estando recluso em seus aposentos, por mais de uma vez contou suas economias, e com determinada resolução decidiu que, no dia seguinte, assim que se acalmasse, faria uma reunião com todos seus companheiros e anunciaria sua decisão. De certo modo, ele conseguiu retirar um peso de suas costas e, naquela mesma noite, após fazer e refazer seus planos de poder finalmente retornar para sua terra natal, conseguiu dormir como há muito tempo não fazia.

Se por um lado o sepultamento da querida conterrânea fora prestigiado por toda a cidade, o enterro dos artistas do circo foi vazio e insosso. Darquinha – assim como muitos outros artistas – não quis acompanhar as exéquias de seus companheiros. Madame Staell, além de se fazer presente todo o tempo, com poucas palavras – que ninguém ousou questionar – justificou a ausência de sua protegida no último adeus ao seu tio, dizendo que ela estava muito abalada. A convite da própria cigana, pediu ao negro Thomás que zelasse pela pobre órfã, ficando em sua companhia até que tudo se desse por encerrado. De certo modo, a cigana unia o útil ao agradável. Mantinha sua protegida sob severa vigilância, enquanto tentava aproximar aquele promissor casal. Pois, sabia ela, que dias tenebrosos estavam por vir e que certamente precisaria de um porto seguro, caso a tempestade que se aproximava se mostrasse violenta demais para suas já calejadas forças.

Naquela mesma noite, após o sepultamento de seus companheiros de longa data, como Thomás estivera quase o dia todo na companhia de Darquinha, ele também fora convidado a ficar para o jantar, na tentativa de quebrar o clima de tristeza que se abatera sobre todo o acampamento. Comeram um repasto simples e tomaram um refresco que Thomás buscara na venda, juntamente com figos cristalizados para a sobremesa, que ele trouxera como mimo para Darquinha. Sobre o acontecido, poucas palavras foram ditas. Contudo, Madame Staell percebeu que entre eles um extenso diálogo era travado na constante troca de olhares. De alguma forma, eles já haviam encontrado uma maneira de se entenderem sem precisarem do uso das palavras.

O dia seguinte foi sem graça e sem muitos afazeres. Primeiro porque choveu quase o dia todo, segundo porque ninguém ousou ir até a cidade, que, de certa forma, estava ofendida pelo acontecido e também agora com a presença daquele circo em suas cercanias. Por último, ainda havia um sentimento de perda que pairava no semblante de todos. Com a lama que tomava conta do acampamento e se impregnava até os ossos, e o frio enregelante que a chuva trouxera, todos passaram o dia cada qual em sua barraca, como animais escondidos do inverno em suas tocas. No fim da tarde, a chuva deu uma trégua e, já se despedindo daquele dia, tímidos raios de sol tentavam iluminar aquele melancólico acampamento. Como o tempo dava mostras de se firmar, logo uma grande fogueira foi acesa no meio do acampamento para que, com o calor do fogo e o brilho das chamas, um pouco de animação pudesse pairar sobre eles.

Antes das oito da noite, quando o Sr. Zacky percebeu que todos já haviam se alimentado e todos os afazeres diurnos estavam encerrados, convocou a todos ao centro do acampamento, ao redor da fogueira que ardia incessantemente, e iniciou um longo discurso. Com a voz entrecortada pela emoção, relatou sobre a magnitude daquele circo em tempos áureos nas distantes terras do velho mundo. Com certa nostalgia, relembrou sua infância e a imagem saudosa de seus pais e velhos artistas que já haviam partido. Nesse momento, teve que interromper sua fala, pois a emoção lhe tomara as palavras e as lágrimas lhe turvaram a visão. Enquanto tentava controlar as emoções, foi ovacionado com uma forte salva de palmas e palavras de apoio. Assim que secou seus olhos e novamente já era senhor de si, citou a qualidade de cada um dos presentes e também dos que já haviam partido e, mais uma vez, reafirmou o laço de amizade que sempre houvera entre eles. Com um esforço descomunal, conseguiu reunir a coragem necessária e, ainda com muitas palavras de afeto e eterna gratidão, disse a frase que há tempos já estava ensaiando.

– É com muita tristeza no coração e com uma dor inconsolável no peito que, de minha parte, declaro que minhas atividades nesse circo se dão por encerradas de uma vez por todas.

O silêncio que pairou por um breve momento naquele acampamento foi algo fora do comum; parecia que até mesmo a natureza ao redor, com suas inúmeras criaturas da noite, se calara perante aquelas palavras. Somente o crepitar da fogueira se fazia presente. Um dos gêmeos que, juntamente com seu irmão, fazia parte do grupo de palhaços – cinco ao todo – questionou de forma muito inocente para onde eles iriam. A resposta do Sr. Zacky foi vazia e bastante insossa, como se a responsabilidade pelo circo não lhe dissesse mais nenhum respeito.

– Sinceramente, meu nobre amiguinho, não sei! O que sei é que todos vocês agora são livres para fazerem o que bem quiserem, até mesmo tocarem o circo sozinhos se assim for do agrado de todos. O que estou dizendo é que meus dias de picadeiro acabaram. Amanhã mesmo retornarei para a capital, e de lá, assim que possível, voltarei para a Europa...

Ninguém disse mais nenhuma palavra na presença do dono do circo, que, pela inconveniência do comunicado, se viu constrangido pelos olhares acusadores e de surpresa que de todos os lados lhe eram desferidos. O Sr. Zacky logo se retirou para seus aposentos. Assim que se viram a sós, começaram as discussões e burburinhos. Houve todos os tipos de comentários; desde os mais elogiosos até os de mais baixa infâmia. Depois de muitos reclames e infinitas lamúrias, decidiram que o melhor a se fazer era dar continuidade aos espetáculos, pelo menos por enquanto. A liderança do grupo ficou a cargo do Homem Montanha – dois metros e dez de altura de pura massa muscular muito bem distribuídos em mais de 130 quilos – que, dentre eles, parecia ser o mais versado e confiável para aquela função.

Madame Staell, que por nenhum momento em nada fora consultada, observou tudo em absoluto silêncio, prestando bastante atenção em tudo que estava ocorrendo, mas principalmente em como cada um se comportava perante tudo aquilo. Após perceber que estava sendo ignorada como alguém que já não mais fazia parte daquele grupo, recolheu-se à intimidade de sua barraca e logo, através de gestos, comunicou a Darquinha tudo que estava ocorrendo e lhe disse que, sem a proteção do Sr. Zacky, o melhor que elas poderiam fazer era aproveitar a oportunidade e também deixar o circo, seguindo o infinito ciclo universal de todas as coisas que, da mesma forma que se iniciam, também têm um fim. Disse a sua protegida de uma forma bastante maternal que o Infinito, de alguma forma, nos deixa mensagens de como devemos proceder perante os acasos a que todos os dias somos submetidos. Devemos ter a mente aberta para entender essas mensagens.

Certamente, o trágico ocorrido nos últimos dias era um aviso do universo para que elas – tal qual o próprio dono do circo – seguissem em frente, abandonando o circo. Quando Darquinha lhe questionou sobre como elas poderiam sobreviver longe do circo, Madame Staell a tranquilizou, deixando bem claro que o futuro de ambas estaria garantido, pelo menos por um tempo. O que precisavam era decidir sem muita demora o que fariam e para onde poderiam ir. Sendo elas uma mulher já madura, quase cega, e uma donzela surda-muda ainda bastante jovem, o mundo poderia ser bastante hostil fora do circo e da proteção que elas sempre puderam contar. Mesmo com todas as dificuldades e as inúmeras diferenças que pudessem existir entre eles, ainda assim, aquele grupo sempre fora muito unido perante as adversidades, como se fizessem parte de uma grande família, e ela sempre se sentira muito segura sob a proteção do circo.

Devido a tudo que ela pôde perceber – e através de sua intuição – ela logo entendeu que o melhor a se fazer era buscar refúgio em outros caminhos. Em mais uma noite insone, ela buscou respostas em todas as vias que conhecia. Em todos os meios que consultou, a resposta para sua mais terrível pergunta – "Que fazer?" – era sempre a mesma: um obscuro silêncio. Já na alta madrugada, quando ela, vencida pelo cansaço, conseguiu adormecer, sua resposta veio num sonho ou talvez uma visão – ela não conseguiu discernir ao certo – onde via claramente o negro Thomás e a jovem Darquinha saindo de mãos dadas de uma pequena igreja, ambos vestidos em trajes nupciais, e com o semblante demonstrando uma incontida felicidade. Madame Staell, que tinha sua sensibilidade bastante aflorada, acordou sobressaltada com aquela visão, mas de alguma forma sentiu-se aliviada e com o coração tranquilo em saber como deveria proceder.

Na manhã seguinte, o tempo amanheceu cinzento e bastante frio devido a uma leve garoa que caía sem cessar. O Sr. Zacky fazia os últimos preparativos para sua partida, como se aquela resolução já tivesse sido decidida há bastante tempo. Levava consigo apenas seus pertences mais íntimos em dois grandes baús. E todo o restante de seus bens, deixava para ser dividido em partes iguais entre todos, sem exceção. Madame Staell e Darquinha foram deixadas de lado na divisão daqueles bens. Sem demonstrar muito interesse naqueles inúteis cacarecos e muito menos na forma como seus companheiros procediam perante ela, deu dois tostões para que um dos gêmeos fosse até a cidade em busca de Thomás, pois tinha um negócio importante a tratar com ele. Darquinha, devido a tudo que ocorrera nos últimos dias – tanto sua trágica desventura com o atrevido faquir, bem como a perda não tão sofrida de seu tio Nicolas – mantivera-se fechada em seu particular universo de silêncio e quietude. Seu semblante preocupado e tristonho apenas se alterava na presença de Thomás, que havia se tornado para ela em pouco tempo algo indispensável.

Naquela manhã, Thomás havia conseguido uma diária de trabalho como ajudante de um carpinteiro que estava dando manutenção no telhado da padaria. Assim que recebeu o recado, disse que no final daquele mesmo dia estaria com elas. O dia ainda esteve frio e cinzento por quase todo o tempo. O Sr. Zacky partiu logo cedo em direção à capital e ninguém mais teve notícias dele – certamente conseguiu retornar para o velho mundo. Assim que o dia estava findando, Thomás apareceu na tenda da velha cigana. Havia se lavado e colocado seu melhor traje. O cheiro dele era bastante agradável, lembrava canela, livros antigos e, também, tabaco perfumado, talvez com almíscar. Foi recebido com muito préstimo e bastante alegria por ambas. Por mais que tentasse recusar, foi convencido a jantar com elas. Madame Staell lhe disse que o que tinha a tratar com ele era algo bastante delicado, pois dizia respeito ao destino dos três...

Terminado o jantar, a cigana, com toda a experiência de uma pessoa que já vivera muitos janeiros e enfrentara muitos altos e baixos, expôs-lhe a situação. Primeiro, relatando parte da sofrível história de Darquinha e os trágicos acontecimentos de sua vida até aquele presente momento. Relatou-lhe o quanto ela era cara para ela, tanto pela sua simpatia quanto pela sua inocente fragilidade. Disse ainda o quanto havia se afinizado com sua pessoa, percebendo o quanto ele era um homem de princípios e bastante honrado. Por fim, explanou suas intenções de ambas deixarem o circo e irem viver em alguma cidade mais próspera, quem sabe até mesmo em alguma capital. Após ter gastado bastante o verbo com um rodeio que não parecia ter mais fim, ela decidiu, afinal, lhe fazer a proposta de acompanhá-las. Antes que ele pudesse responder, ou mesmo confundir a proposta, ela lhe relatou sobre sua visão, dizendo ainda que fazia muito gosto em saber que Darquinha seria entregue em boas mãos.

Sendo ele um homem de índole incorruptível, de imediato quis recusar a proposta. Alegou, através de um breve discurso, que havia inúmeras diferenças que os afastavam, mas logo foi convencido por um único olhar que Darquinha lhe desferiu. Ela, mesmo sem poder ouvir nada, entendeu praticamente tudo que fora dito e lhe direcionou um olhar questionador, como se perguntasse: “... não sou digna do seu amor?”. Ele rapidamente tomou suas mãos, beijando-as ternamente e, olhando em seus olhos, disse-lhe:

– Desde o momento em que a vi, é tudo que eu mais quero nesta vida. Eu que não me sinto digno de tanta beleza e simpatia. Se me tornares seu marido, serei para ti o mais gentil dos homens, prometo com toda a força de minha alma amá-la e protegê-la até o fim dos meus dias.

Naquele momento, o mais dorido dos suspiros se ouviu naquela tenda, e lágrimas banharam a face da bela Darquinha como uma torrente que não parecia ter mais fim. Madame Staell concluiu que em toda sua vida jamais presenciara a mais sincera demonstração de amor de um ser para com outro. Naquele momento, o destino daquelas três pessoas foi traçado para todo o sempre.

Menos de um mês depois, já estavam os três vivendo na capital. O circo que ambas deixaram para trás seguiu seu caminho, e nada mais se soube nem sobre ele, muito menos sobre seus integrantes – que, de certo modo, sentiram-se aliviados com a partida da velha cigana e de sua protegida. Thomás e Joana D’arc se casaram numa singela igrejinha no alto do morro na periferia onde se instalaram. Todo o enxoval foi presente da velha cigana, incluindo o alinhado terno do noivo e o belíssimo vestido da noiva. A cerimônia pode até ter sido simples aos olhos de outrem, mas para aquele casal, foi um acontecimento apoteótico. A alegria de ambos era um inquestionável exemplo de que o Amor é realmente um sublime sentimento capaz de tornar o impossível em algo extraordinário, possibilitando a união das mais diferentes criaturas em um único ser.

Os primeiros dias após suas núpcias foram de um total deleite. Contudo, assim que contraiu matrimônio com Darquinha, sentia-se de certo modo hostilizado por olhares perscrutadores e maledicentes. Ele, um negro cinquentão – talvez até um pouco mais velho – ela, uma jovem branca de olhos claros, que teria talvez idade para ser sua filha – quem sabe até mesmo neta. Não era uma relação bem-vista pelas pessoas autoproclamadas "pessoas de bem". Thomás sempre fora um ser de espírito livre e jamais se incomodara com aquilo que diziam dele, afinal, era um negro e ex-cativo vivendo numa sociedade onde, há bem poucos anos, pessoas como ele eram vendidas como uma mercadoria qualquer, e já havia sentido na pele e na própria alma a maldade humana. Mas agora, tudo havia mudado e era o nome de sua amada que estava na boca da raia miúda e desocupada.

Thomás não suportava esses olhares e os cochichos que pareciam inconvenientemente estar em todos os lugares, mesmo na rua, no rosto de desconhecidos. Durante o dia, ele trabalhava duro para arcar com as despesas da casa, que agora tinham aumentado bastante, mesmo com Madame Staell ajudando em parte com algumas contas do lar. À noite, mesmo coberto de carícias de sua adorada companheira – que estava descobrindo aos poucos as delícias do leito – não conseguia dormir direito. E se perguntava por quê. Será que dava tamanha importância a essas pessoas que sempre o olharam com descrédito e certa repugnância? Com certeza não! Pois sempre tivera total resiliência de quem ele era e de onde tinha vindo. A opinião dessas pessoas – consideradas por ele como pessoas de mente vazia – não tinha nenhum peso sobre ele, o deixando até irritado de, às vezes, se deixar perturbar pelos seus hostis olhares. Por ser uma pessoa de índole diferenciada, achava tudo aquilo por demais desprezível. Como algo tão insignificante poderia estar incomodando-o agora? No fundo de sua alma, sabia que não deveria ficar dependendo da aprovação de pessoas que ele mesmo considerava limitadas e de caráter duvidoso.

Pode ser que a profunda desconfiança que sentia das pessoas ao seu redor, e talvez saber que esse sentimento fosse recíproco por parte delas, tivesse exercido uma forte influência em sua decisão de deixar a cidade grande e se estabelecer no campo, distante de olhares curiosos e acusadores. Thomás se viu, pela primeira vez, numa situação em que o simples ato de ir ao mercado tornava-se um verdadeiro suplício, pois vários olhares caíam sobre aquele casal que, na maioria das vezes, estava acompanhado pela velha cigana, já praticamente cega por completo. Em algumas ocasiões, esses olhares indiscretos eram acompanhados por algum comentário ofensivo. De certo modo, a situação começou a ficar insustentável. O trabalho para Thomás começou a rarear e, logo, o senhorio da pequena casa em que viviam solicitou o imóvel de volta, alegando que o havia vendido e que o novo proprietário o desejava desocupado o mais brevemente possível.

A pedido de Darquinha – que irradiava uma tranquila paz de espírito, jamais se deixando abater por qualquer coisa que fosse – Thomás até tentou alugar outra casa. No entanto, além de estar praticamente sem dinheiro, havia a questão da cor de sua pele que o denunciava. Depois de várias recusas, já havia compreendido que sua história era por demais conhecida e que as pessoas, em sua grande maioria, eram más e se regozijavam com a humilhação moral de negros e imigrantes. Por mais que ele, utilizando sua boa oratória, tentasse convencê-los de ser uma pessoa de boa índole, ninguém queria dar ouvidos à conversa de um ex-cativo; desconhecido, sem trabalho e, principalmente, sem dinheiro no bolso.

Através da intervenção de Madame Staell e do dinheiro que ele ainda possuía, conseguiram alugar uma casa praticamente do outro lado da cidade. Essa locação só foi possível pagando seis meses de aluguel adiantado. Thomás, que trabalhava em qualquer tipo de trabalho que se apresentasse, logo conseguiu serviço. Darquinha fazia pequenas costuras para fora e Madame Staell, mesmo com a visão praticamente a abandonando, ainda assim, vez por outra, tirava a sorte de um aqui, outro acolá. Essa calmaria não duraria por muito tempo.

Certa noite, já em horas avançadas, após o amor e estando ele sentado no leito olhando ao longe pela janela aberta, estando claro como o dia, pois era noite de lua cheia, Darquinha se aproximou dele em silêncio e, após o abraçar, estando ele com o torso nu, começou suavemente a acariciar suas costas e delinear com a ponta dos dedos suas inúmeras cicatrizes. Sem poder conter sua curiosidade – que nas mulheres é considerado um dom, pois essa mesma curiosidade feminina foi o solene motivo de várias descobertas e invenções que em muito ajudaram na evolução da humanidade – perguntou-lhe de um modo muito delicado, olhando nos olhos dele e gesticulando com os ombros em gestos de curiosidade. Thomás, que de alguma forma a compreendia, mesmo sem ela pronunciar nenhuma palavra, após suspirar profundamente, disse, mais para si mesmo do que em resposta:

– Algumas pessoas machucam seus semelhantes simplesmente pelo fato de poderem fazê-lo. Essas marcas em minhas costas são uma pequena amostra daquilo que meu corpo padeceu quando eu ainda era cativo. No entanto, muito pior que essas horrendas cicatrizes é aquilo que ainda padeço por causa de minha cor e minha origem. Nossa gente foi liberta de nossos grilhões, mas ainda somos prisioneiros do preconceito e da discriminação...

Na manhã seguinte, um domingo bastante agradável de céu limpo e ensolarado, após retornarem da missa, tiveram um terrível dissabor, pois foram avisados por um vizinho que os donos do imóvel haviam estado bem cedo batendo em sua porta, deixando o recado que retornariam naquele mesmo dia. O que de fato realmente aconteceu e a notícia que trouxeram consigo não foi nada agradável. O marido da mulher que lhes locara o imóvel solicitava a desocupação imediata da casa, alegando acionar até mesmo a justiça se fosse necessário. Era ele uma pessoa de aparência bastante repugnante e ameaçadora, tinha uns 55 anos, talvez 70, quem sabe até mais – algumas pessoas parecem ter sempre a mesma aparência, como uma montanha que, aos perenes olhos humanos, não demonstra nenhum leve traço de mudança. Já lhe faltavam mais da metade dos dentes e os que sobraram estavam podres e enegrecidos pelo uso constante de tabaco, que tornava o seu hálito nauseabundo, fato que fez com que Darquinha tivesse ânsia de vômito e saísse discretamente de sua presença, tapando a boca com as mãos.

Quando Madame Staell questionou-lhe sobre os seis meses de aluguel que foram pagos de forma adiantada, o senhorio respondeu que nenhum negócio havia feito com eles e que nenhum valor lhe fora pago, que buscassem por seus direitos perante a justiça. Como o imóvel lhe pertencia e ele não lhes alugara coisa alguma, dava-lhes o prazo de três dias para que se mudassem. Após dizer que não queria problemas com ninguém, apenas seu imóvel de volta, saiu sem se despedir, prometendo retornar ao fim daquele prazo estabelecido e reaver sua casa de volta, independente de quais meios fossem necessários para esse fim.

Aquela tarde foi bastante inquietante para aquela peculiar família. Thomás sentia-se bastante injustiçado, ao ponto de dizer que só sairia da casa se a justiça o obrigasse. Darquinha, tomada de um sentimento de completa resiliência, disse que sempre haveria outros lugares e que o melhor a se fazer era evitar todo e qualquer tipo de problema. A cigana, por sua vez – que já havia sentido na própria pele a injustiça da Justiça brasileira – com sua longeva sabedoria, disse por fim:

– Já ouvi dizer que simples palavras podem ser como uma leve brisa, que mal nenhum pode nos causar. No entanto, até mesmo a mais suave das brisas pode se transformar em um vento forte e trazer uma terrível tempestade. Não sou mais jovem e, a cada dia que passa, minhas forças me abandonam um pouco mais. Seja como for, no fim, a noite cai para todos nós, e às vezes cedo demais para alguns. Preciso de um lugar tranquilo para passar meus últimos dias nesta terra. Ainda tenho comigo algum dinheiro e alguns pertences dos quais posso me dispor e comprar uma pequena propriedade no campo onde possamos viver em paz. Se ambos cuidarem de mim na minha senilidade – que se aproxima em passos velozes – deixo a vocês dois essa propriedade para que possam criar seus filhos e seguir com suas vidas sem ninguém os perturbar novamente.

E assim foi feito. Em dois dias, já estavam hospedados numa pensão, onde logo conseguiram contato com um corretor de imóveis – irmão do dono da pensão – que, de forma muito benevolente, lhes conseguiu um excelente negócio, desde que a propriedade fosse paga de forma imediata e em dinheiro vivo. Em menos de dois meses, já estavam vivendo no campo, numa aconchegante, mas bastante humilde casa no alto de uma colina, onde as manhãs eram alegres e o entardecer bastante iluminado pelos raios do sol poente. Era o início de um novo ano e de uma nova vida.

Thomás – que tinha os conhecimentos necessários para a lida no campo – iniciara os trabalhos de lavrar a terra e cuidar de alguns animais que a cigana adquirira, enquanto Darquinha zelava da casa e dos afazeres domésticos, vez por outra sendo auxiliada pela cigana, quando sua saúde permitia, pois a cada dia sentia-se mais fraca, sendo vencida pelos sinais do tempo. No final daquele mesmo ano, a família ficaria um pouco maior com a chegada de uma nova flor para aquele belo jardim. A felicidade parecia enfim ter feito morada naquele humilde lar. No entanto, no horizonte distante, nuvens negras anunciavam uma terrível tempestade. Darquinha tivera uma gestação conturbada e constantemente reclamava de fortes dores de cabeça, principalmente nos ouvidos...

Texto publicado na 8ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de agosto de 2024. → Ler edição completa

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