Lírios do Campo
“Observem como crescem os lírios do campo...”. — Mateus 6,28
... – Era para ser apenas uma tranquila viagem entre amigos. Um pitoresco passeio em busca de uma paz que somente o campo poderia nos oferecer, onde nos divertiríamos como pessoas normais – ou ao menos tentaríamos fazê-lo. Fugindo do estressante caos da cidade grande, nos dirigimos para o pequeno vilarejo onde Amélia nascera. Uma localidade que sequer constava no mapa. Na opinião da maioria, um lugar ideal para a paz e o sossego. Na verdade, o que todos nós buscávamos era justamente tentar nos afastar ao máximo da loucura do dia a dia da cidade grande. Estávamos em busca de momentos de paz. Levando em consideração os problemas emocionais e as crises existenciais de cada um, nada mais nos interessava naquele momento.
Como todos sabem, quando partimos – sem saber que o pior aconteceria – estavam naquele carro apenas cinco pessoas – todos nós, amigos de longa data. Além de mim, havia: a própria Amélia – nossa anfitriã – Marcos, Esther e, por último, o filosófico Luís. O veículo em que estávamos pertencia ao pai de Luís. Era uma Kombi velha, mas em ótimo estado de conservação, com uma mecânica invejável. Os pneus eram novos e, antes de partirmos, Luís havia feito – a pedido do pai – uma revisão completa no veículo, para que nenhum incidente viesse a nos incomodar pelo caminho. A maioria de nós era habilitada. No entanto, durante todo o trajeto, Luís fez questão de estar sempre ao volante. A viagem duraria em torno de cinco a seis horas – isso se não chovesse pelo caminho. Quando saímos, ainda pela manhã bem cedo, o céu estava limpo e o clima bastante agradável. Nada poderia dar errado...
Daniel se calou de forma bastante repentina, seu olhar ficou distante e vazio – talvez tentando ver algo ao longe ou se lembrar de algum detalhe esquecido. Houve um momento de reflexão e um silêncio que durou quase cinco minutos. Contudo, logo ele retornou à realidade e, sem mais demora, continuou seu relato.
... – Durante quatro ou cinco horas, rodamos por quase quatrocentos quilômetros sem fazer nenhuma parada. A estrada estava em ótimas condições e, como Luís era um exímio motorista, a viagem rendeu bastante nesse primeiro trecho. Da forma como as coisas estavam se desenrolando, tínhamos a intenção de chegar à casa da avó de Amélia antes do anoitecer. Se isso tivesse realmente acontecido, teria sido excelente, pois nenhum de nós estava nem um pouco interessado em rodar durante a noite por caminhos desconhecidos, muito menos dormir em pensões na beira da estrada. A verdade é que nem mesmo Amélia se lembrava ao certo de como estavam as estradas pelo caminho. Afinal, ela havia saído de sua terra natal quando ainda era uma criança de colo. E isso fora há muitos anos.
Amélia era uma jovem alegre, descontraída e com um sentimento de liberdade estampado no rosto, mas trazia nos olhos algo de muito obscuro. Até as vésperas de nossa viagem, jamais havia falado sobre sua infância, qual era sua origem ou muito menos sobre sua família. No entanto, quando propusemos fazer uma viagem para bem distante da cidade e de nossa vida no campus, ela logo sugeriu que visitássemos sua avó em um distante lugarejo no interior. Mesmo havendo certa desconfiança com aquela repentina euforia por parte dela, Amélia acabou por nos convencer de que seria uma viagem inesquecível para todos nós...
Passava um pouco do meio-dia quando paramos em um posto para abastecer o veículo e fazer uma breve refeição, e percebemos ao longe que uma forte tempestade se anunciava no horizonte. Assim que terminamos de nos alimentar e o veículo estava devidamente abastecido, decidimos que deveríamos continuar seguindo viagem. Não conseguimos rodar nem mesmo cem quilômetros e logo nos deparamos com uma obra de recuperação de uma ponte que havia caído e tivemos que nos desviar da estrada. As placas diziam que o desvio era de apenas três quilômetros, através de uma nada pitoresca estrada de terra. Mal tínhamos começado a rodar por aquele poeirento e esburacado caminho quando o céu, que já estava se fechando, escureceu por completo e uma pesada chuva começou a cair.
Logo, a estrada tornou-se um verdadeiro mar de lama. Luís não tinha nenhuma perícia para dirigir em estradas de terra, ainda mais com aquela terrível tempestade desabando sobre nós. Aquela não era uma chuva comum; mais parecia um segundo dilúvio. O céu era constantemente riscado por faiscantes relâmpagos que culminavam em retumbantes trovões que balançavam todo o firmamento. A chuva era tão intensa que dava a impressão de não apenas cair, mas ser despejada por um céu bastante furioso. Após apenas algumas curvas um tanto quanto perigosas demais para um condutor inexperiente com aquele tipo de terreno, Luís logo decidiu que o melhor a se fazer era encontrar um lugar seguro, parar e esperar que a chuva desse uma trégua para podermos seguir viagem em segurança.
Após contornarmos uma curva bastante fechada, depois de um pequeno bosque de enormes árvores que cobriam a estrada com seus frondosos galhos, nos deparamos com um pequeno descampado com uma vegetação rasteira carregada de flores, principalmente lírios, que naquele momento eram jogados de um lado para o outro pelas rajadas de vento que os açoitavam de forma impiedosa. No centro desse descampado havia uma pequena casa às margens da estrada que, à primeira vista, parecia estar abandonada. Era uma humilde construção em estilo simples, mas com traços de uma arquitetura bastante aconchegante. Suas feições – mesmo em ruínas, aparentando estar há bastante tempo abandonada – demonstravam que, em seus tempos áureos, havia sido uma bela morada. Na frente da construção havia uma grande varanda, e mesmo que não conseguíssemos adentrar na casa, poderíamos nos abrigar da chuva ali mesmo.
Assim que o veículo foi estacionado em frente à casa, rapidamente nos dirigimos rumo à varanda e, para nossa surpresa, assim que pisamos no velho assoalho já em frente ao umbral da porta de entrada, esta se abriu por completo e uma bela jovem veio nos receber, como se já fôssemos esperados naquele lugar. Essa jovem de pele clara e belíssimos olhos azuis aparentava ter uns quinze anos – talvez até um pouco menos, pois tinha um semblante bastante juvenil – estava com um castiçal em uma das mãos, cuja luz de uma vela iluminava o obscuro interior da casa na qual ela nos convidava a entrar, para nos abrigar da chuva e do vento. Desde criança aprendi que jamais deveríamos falar com estranhos e muito menos entrar em lugares desconhecidos. Contudo, aquela jovem parecia ser a criatura mais doce e inofensiva de toda a Terra. Como do lado de fora o frio e a umidade estavam bastante intimidadores e o interior da casa parecia ser quente e muito aconchegante, sem pestanejar decidimos que o melhor a se fazer era aceitar o convite e aguardar até que a chuva passasse.
Assim que entramos, logo, com um forte estrondo, a porta foi fechada às nossas costas, e quando Esther quis questionar, nossa anfitriã respondeu de forma meiga e bastante convincente:
– Se não fecharmos a porta barrando o vento frio, de nada adianta nos abrigar aqui dentro!
Logo fomos direcionados a nos aproximar de uma crepitante lareira. Havia um enorme estofado em formato de semicírculo em frente ao aconchegante calor do fogo, de onde vinha um convidativo odor de folhas de erva-cidreira sendo fervidas. Sentada de frente a essa lareira, numa poltrona à parte, havia uma peculiar senhora, de aparência bondosa e confiante índole, que logo nos foi apresentada como sendo a avó da jovem que nos recebera. Essa senhora se servia de um fumegante chá que logo nos foi oferecido. A maioria de nós achou por bem recusar, mas Esther, a mais mística dentre nosso grupo, sempre receptiva a velas, incensos e todo tipo de beberagem natural, logo quis experimentar o sabor daquela bebida, até porque o cheiro estava bastante convidativo. Como Esther o tomara e não tivera nenhuma reação imediata, nem mesmo demonstrara nenhum tipo de comportamento estranho, logo todos nós fomos servidos. O chá estava quente, doce e com um sabor que trazia certa paz de espírito, proporcionando um lento relaxamento do corpo e da mente. Após tomar aquele chá, tudo se tornou escuro e vazio.
Quando acordei, a impressão que tive é que haviam passado várias horas. Tentei me levantar, mas logo percebi que não estava deitado, mas sim sentado em uma cadeira e amarrado a esta. Ao meu redor tudo era silêncio e quietude. Pelas frestas no alto das paredes e no teto, pude perceber que estava em uma espécie de porão e que lá fora o sol brilhava forte. Pelo barulho dos pássaros e pelo frescor ao meu redor, tive a impressão de que era uma bela manhã. Durante quase uma hora, após chamar por meus amigos sem obter resposta e clamar desesperadamente por socorro sem sucesso, me esforcei de todas as formas até que consegui me desvencilhar das amarras que me prendiam. Com muita dificuldade, consegui encontrar a saída daquela espécie de porão, que mais parecia ser um covil de uma terrível criatura que, se realmente existisse, naquele momento estaria dormindo ou escondida em algum lugar se refugiando da luz do dia.
Logo, sem muito esforço, já estava do lado de fora daquela estranha casa. A Kombi estava parada no mesmo lugar em que fora deixada. No entanto, não havia nem vestígio do paradeiro dos meus amigos. Por quase uma hora rodeei em volta da casa, gritando por cada um deles sem sucesso. Por fim, decidi pegar a Kombi e ir em busca de ajuda. As chaves principais haviam ficado com Luís, mas no quebra-sol do veículo havia uma chave reserva. Saí com a Kombi e retornei pelo caminho que havíamos chegado ali, voltando até o posto de combustíveis onde havíamos almoçado e, de lá, pedi que a atendente chamasse a polícia. Foi quando vi que havia vários panfletos – alguns, até mesmo bem antigos – com pessoas desaparecidas...
A cama estava sem o lençol. O espelho estava quebrado. Na cômoda havia poucos pertences: apenas um hábito limpo, algumas roupas íntimas…