Os Órfãos

MidjourneyAI

Um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível.
— Edgar Allan Poe

Há muito tempo, em terras distantes das cidades, longe de todas as comodidades de uma civilização, quando em noites de calor extremo, onde ficar dentro de casa era quase um suplício, o frescor da varanda demonstrava-se como uma dádiva. Na quietude da noite onde não havia música ou livros — e estes, se houvessem, seriam totalmente inúteis para uma maioria de sertanejos que não sabiam ler — a diversão e o entretenimento das pessoas, logo após a ceia e pouco antes de se recolherem, era se ajuntarem na varanda em dias de chuva, ou mesmo logo a frente da casa sob a luz do luar entre um gole ou outro de café quente — as vezes até algo um pouco mais forte. Era comum preencher o tempo ocioso com diálogos diversos e curiosas histórias, algumas até verdadeiras, outras nem tanto. Contudo, em alguns casos — ou causos — para corroborar essas estórias, havia até mesmo cicatrizes ou sérios traumas psicológicos que acompanhariam o indivíduo até o fim de seus dias.

Numa noite não muito diferente de qualquer outra, assim que o clarão do dia cedeu lugar à escuridão — apesar de que, aquela noite em questão estava clara como o dia, pois além da lua cheia, o céu estava completamente limpo sem nenhum rastro de nenhuma nuvem sequer — e como o calor do dia já havia cedido lugar ao frescor da noite que vinha a cada momento se tornando mais agradável devido a leve brisa que soprava vez por outra, todos se acomodaram no pátio em frente à casa, logo ao lado do curral e, sem mais delongas, entre um gole de café recém-coado e uma baforada ou outra de cigarros de palha, ou até mesmo cachimbos, iniciaram uma animada conversa. Os conteúdos eram variados: intrigas de família — daqueles que estavam ausentes — fofocas inéditas, o clima, o valor dos produtos e das mercadorias e muitas outras coisas sem sentido. Contudo, dentro de todos os assuntos, um que jamais passava batido nessas rodas de conversas era a morte recente de conhecidos. Se o falecido fosse alguém querido, muito se falava sobre seus feitos e suas qualidades, mas se fosse alguém detestável o assunto se encerrava com poucas palavras. A Falecida recente era Dona Amélia, e ninguém disse uma palavra sobre ela.

Naquela noite depois de muita conversa fiada jogada fora sem muito aproveito, alguém iniciou uma estória sobre uma velha ponte que passava sobre o Riacho da Prata, onde já, há bastante tempo, ninguém ousava cruzar após o sol se pôr. Fosse quem fosse a coragem logo abandonava o mais corajoso dos homens. Primeiro, porque a ponte se encontrava numa curva bastante fechada e debaixo de duas grandes árvores que a deixavam na mais completa penumbra mesmo em pleno dia de sol claro e durante a noite era completamente tomada pelas trevas. Segundo, devido aos dois suicídios que aconteceram em uma de suas travas, sucedidas um ao outro no período de menos de uma semana. Sendo os dois infelizes da mesma família. A primeira das mortes se deu à filha de 15 anos, — por se achar grávida de um homem casado — depois logo em seguida a própria mãe — por ser a esposa desse homem, padrasto da filha infeliz — casada com o suposto pai da criança que sua única filha levava no ventre. E por último, os diversos relatos de inúmeras pessoas de índole confiabilíssima que alegavam, com veemência, terem visto duas mulheres de pé sobre a ponte, sendo uma delas, uma bela jovem que segurava uma criança no colo.

A seguir, alguém contou uma estória sobre um negro cego que pedia esmolas à beira de uma velha porteira nas noites de sexta-feira. Se, porventura, alguém de coração bondoso, com coragem suficiente, lhe doasse algum trocado, esse mesmo negro lhe concedia um pedido, que logo lhe seria realizado. Todavia, se a esmola solicitada pelo negro fosse ignorada por alguém de alma dura e vazia, não demoraria muito para que uma tragédia se abatesse sobre aquela pessoa. Para evitar tanto uma coisa quanto outra, — sempre que possível — quem sabia das estórias sobre a encantada porteira fazia de tudo para evitar cruzar por esse caminho nas noites de sexta-feira, período no qual o velho negro era visto esmolando. Uma pessoa sábia de forma alguma gostaria de nenhum tipo de envolvimento com uma entidade do outro mundo. Um favor recebido por um ser mítico poderia se concretizar numa dívida difícil de ser saudada, pior ainda seria ter um dissabor com um ser do outro mundo.

Como a Lua estava clara e o tempo bastante agradável, as estórias foram se sucedendo umas às outras, até que alguém, dentre os presentes, logo propôs que todas aquelas estórias seriam puras bazófias para assustar crianças e mulheres medrosas. Ele, por sua vez, tinha quase meio século de vida, e mesmo andando por ermos caminhos em horas tardias da noite, nunca vira nem presenciara nada que pudesse ser considerada como sobrenatural. Um dos presentes, que acabara de acender seu cachimbo e iniciar um excesso de tosse, assim que conseguiu recuperar o fôlego respondeu com uma voz tranquila de uma pessoa já experimentada em anos.

— Tião — Sebastião Tavares era o nome do incrédulo que acabara de falar — Vosmecê deveria ter mais respeito com aquilo que não entende. Não é porque vosmecê nunca viu, que essas coisas não possam existir. Eu tenho idade para ser seu avô, porque Graças ao nosso bom Deus, já estou chegando aos cem anos e também devo confessar, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo como testemunha, que até hoje meus olhos nunca viram nada do outro mundo. Nem presença nenhuma senti, muito menos barulho estranho meus ouvidos ouviram. Mas acredito que tem muita coisa sombria se escondendo pelas frestas escuras desse mundo.

Tião que era um homem que fora educado a sempre respeitar quando os mais velhos falassem, não quisera retrucar o que Nhô Quinca havia dito, e por um breve momento, em respeito ao ancião, o silêncio se fez presente, até que foi quebrado por um jovem um tanto quanto mais atrevido, que disse, — até mesmo em tom de galhofa –.

— O nosso companheiro Tião é um velhaco, falando essas coisas. Não passa de um medroso que teme até a própria sombra e fica querendo se amostrar dando pinta de homem corajoso. Eu, de minha parte, Nhô Quinca, tenho medo de andar por alguns lugares até mesmo durante o dia claro, agora imagine durante a noite, período que as criaturas das trevas vagueiam livres por todos os lados.

— Vosmecê é um menino sabido Jorge!

Respondeu Nhô Quinca com orgulho do jovem marido de sua neta. Sabendo que era ele um homem que fora ensinado a respeitar tudo aquilo que não podemos compreender.

Juscelino Peixoto era talvez, dentre todos ali presentes, o mais destemido. Celino, como era mais conhecido, era um homem na altura de seus 30 anos muito bem vividos. Amigo fiel do copo, um eterno apaixonado pelas cartas e de forma alguma dispensava um rabo de saia. Para ele, excetuando sua mãe e suas irmãs, o restante das mulheres — solteiras ou casadas — se fossem de seu agrado e tivesses dispostas, ele jamais recusava uma boa oportunidade. Não tinha a aparência de nenhum príncipe encantado, é certo dizer. Contudo, tinha os lábios de mel e era raro acontecer de uma mulher — mesmo que séria ao extremo — após uma conversa em particular não cedesse aos seus encantos. Para seus amigos era um companheiro fiel, sempre disposto a ajudar a quem quer que fosse não importava a hora nem o lugar.

Desde que saíra de casa, ainda com 17 anos, para seguir a vida de peão, vivia sempre sozinho em busca de trabalho numa fazenda e outra tentando se estabelecer em algum lugar que lhe fosse mais agradável. Longe do carinho da mãe e da proteção do pai, se encontrara obrigado a enfrentar o mundo sozinho, contando apenas com a proteção do Céu. Por essas e outras a coragem era sua única companheira. Celino era do tipo de individuo que abaixo de Deus, a nada temia nesse mundo. Contudo, para se solidarizar com Nhô Quinca — há quem ele muito respeitava — disse:

— Devo concordar com o senhor, Nhô Quinca, que há muita coisa que nós desconhecemos, mas, para falar a verdade, eu, quando ainda era garoto, tinha um medo terrível de Dona Amélia. Na noite que fiquei sabendo de sua morte, fiquei acordado até bem tarde rolando na cama de um lado para o outro impressionado com a lembrança que eu tinha da aparência dela, quando ainda era viva.

Naqueles dias próximos, havia falecido uma senhora que era bastante impopular entre a maioria dos que estavam ali presentes e certamente dos que também não estavam. Dona Amélia era uma criatura ímpar dessas que são únicas em todo o universo. Vivia só, desde que perdera seu único parente que se tinha notícias. Essa parenta era sua irmã Angelita que morrera há mais de quinze anos, supostamente afogada na própria saliva após uma crise convulsiva de epilepsia. O verdadeiro motivo de sua morte, ninguém sabia ao certo, essa suposição se deu pelo fato dela ter sido encontrada morta no caminho entre sua casa e o pequeno riacho onde uma vez por semana, ela lavava suas roupas e da própria irmã que a tratava como uma espécie de gata borralheira.

Amélia sempre fora fechada de humor, detentora de um comportamento taciturno e irascível, — a quem diga, que sua personalidade fora moldada dessa forma, após ter sido abandonada pelo noivo que desaparecera sem nunca mais dar notícias, deixando-a com dois filhos na barriga. Tal como o próprio noivo, dessas crianças ninguém nunca mais ouviu falar — o que se sabia ao certo era que marido nunca tivera. Sendo assim, tanto Amélia como Angelita eram beatas sem nenhum outro parente conhecido — se esses, porventura, existissem, não era do conhecimento de ninguém –. Muito raramente frequentavam a igreja e jamais foram vistas em visita a lares alheios. Em sua casa não recebiam ninguém, até mesmo o próprio padre Severino era despachado da varanda mesmo, sem nunca ter sido convidado a entrar. Nem mesmo no velório de Angelita houve visitas a sua casa, uma vez que todas as exéquias foram feitas na própria igreja.

Após o falecimento da irmã, Dona Amélia ficara tão reclusa que muitos até mesmo se esqueceram de sua existência. Era o tipo de pessoa que, de forma alguma, se interessava pela vida em sociedade, uma vez que produzia praticamente tudo que sua humilde existência necessitava, até mesmo a visita ao mercado local era uma raridade. Talvez a sua reclusão pudesse ter mil motivos, a solidão a que se acostumara, a vergonha por ter sido abandonada pelo noivo ainda quando era jovem, mas certamente a sua aparência era o mais preponderante deles. Dona Amélia era uma mulher de quase um metro e noventa de altura, de corpo magro com feições cadavéricas. Seu rosto era chupado e cheio de marcas deixadas pela varíola. Tinha fiapos de grossos pelos entre um lugar e outro na face, e um bigode que faria inveja há muitos rapazotes. Sempre de cara fechada, quando muito raramente sorria, esse era, por sua vez, com traços maquiavélicos, mostrando dentes amarelados que enfeitavam uma boca de lábios finos — quase ausentes — boca essa que não perdia uma oportunidade de praguejar quem cruzasse o seu caminho.

Se, por um lado, até os adultos já experimentados pelos anos a temiam, as crianças, por sua vez, tinham pavor à simples menção do seu nome. Os pequenos mais apocalípticos eram ameaçados com a visão noturna de Dona Amélia caso não se comportassem. Essa sinistra criatura se viva já era apavorante, quando morreu, transformou-se numa visão tão terrível que até mesmo o padre Severino benzeu-se todo ao vê-la estendida no chão da sala de sua própria casa onde ela fora encontrada morta. O preparo de seu corpo fora feito de forma negligente e sem muito capricho, até mesmo porque, ela fora encontrada morta já de alguns dias. Seu corpo estava ressequido, mas preservado dando a entender que nem mesmo os vermes tocariam suas carnes.

Seu corpo fora envolvido numa simples mortalha e colocado num caixão improvisado feito às pressas por Seu Juca — coveiro e agente funerário voluntário, que sempre auxiliava padre Severino nessas questões. O velório — que não teve — e o enterro ocorreram no mesmo dia, de forma rápida e sem muita cerimônia. Além dos quatro homens que foram solicitados por padre Severino para ajudarem a transportar o corpo até o cemitério — mas logo foram embora — estavam presentes o próprio padre Severino — quem fez as exéquias, Seu Juca — quem cavou a sepultura e se encarregaria do enterro do corpo — e Dona Alzira, uma alcoviteira local — que fazia as vezes de carpideira voluntária — que nunca perdera um enterro sequer em toda a sua inútil existência. Além dessas parcas testemunhas, ninguém mais estava presente ao último adeus a essa singular criatura, exceto um pássaro ou outro assentado nas árvores próximas que circundavam o cemitério.

Seu Juca que, além de cavar a sepultura de Dona Amélia, também fora o responsável de colocar o corpo dela no improvisado caixão — que ele mesmo o fizera — ao ouvir Celino dizer que ficou impressionado com a lembrança de sua aparência ainda em vida. Disse que certamente ele ficaria traumatizado se a tivesse visto morta no caixão.

— Gente! A criatura estava tão medonha que seria capaz da fazer homem barbado borrar as calças. Até mesmo o padre Severino ficou tão aterrorizado que pediu para que eu lacrasse logo o caixão. Nunca em toda minha vida presenciei um enterro tão rápido.

Nessa altura da conversa, Tião que havia ficado muito ofendido com as palavras de Jorge, que não apenas o chamara de covarde, mas também dissera que ele era apenas um velhaco atrevido, quisera mais uma vez chamar a atenção para si, propondo ao destemido Celino um desafio que sacramentaria de vez se este, por sua vez, era realmente um homem de coragem ou apenas mais um borra botas com pinta de valentão.

— Celino meu nobre amigo, uma vez que há certa unanimidade entre os aqui presente, que dentre todos nós, você é o mais corajoso, proponho a você um desafio simples, que de forma alguma possa representar nenhum perigo a sua integridade física, mas que a de vir a requerer muita coragem para executá-lo. Tenho em minhas mãos esse relógio de ouro que fora de meu falecido pai e, como bem sabes, vale muito dinheiro. Certamente o ordenado de pelo menos seis meses de trabalho. Além do valor monetário tenho por esse objeto um apreço pessoal, mas estou disposto a me desfazer dele, se você tiver a coragem suficiente para ir agora até o cemitério e nos trazer pelo menos uma das varas do banguê que transportou o corpo de Dona Amélia até sua última morada. Esse belo relógio será seu.

Essa fala fez com que muitos dos presentes se escandalizassem com tal abjeta proposta. Nhô Quinca dotado de uma severa postura de recriminação dissera:

— Vosmecê é um sujeito desrespeitoso ao extremo, Tião. Parece que não conhece limite algum. Nem de brincadeira, jamais devemos importunar os mortos em seu merecido descanso.

Houve muitas outras recriminações, principalmente por parte dos mais velhos. Devido a inconveniência da proposta, fez-se um breve silêncio, que fora rompido com a resposta de Celino, que por sua vez fora dada de forma mais desafiadora do que a proposta de Tião.

— Não devo deixar nosso companheiro Tião sem resposta. Afinal, um desafio como esse não poderia ficar no vazio. Devo confessar a todos aqui presentes, que não tenho toda essa coragem, até porque, como eu mesmo o disse, eu tinha pavor da simples imagem de Dona Amélia mesmo ela estando ainda viva, imagine agora que ela se foi então. Contudo, uma vez que você, Tião, brada aos quatro cantos que não acredita em estórias de fantasmas e sempre diz que os mortos não podem nos fazer nenhum mal, eu dobro sua aposta e faço esse mesmo desafio a você. Se agora mesmo, você for até o cemitério e trouxer o mesmo objeto que me pediu e mostrar a todos aqui presentes dou-lhe meu cavalo arreado como está e mais essa arma. Que também é para mim, um objeto de muito estima, pois me fora dado pelo meu pai. A diferença é que, pela Graça de Nosso Senhor, ainda está vivo, mas se cumprir essa tarefa tudo isso será seu.

Dizendo essas palavras, Celino retirou a arma do coldre e a entregou a Tião. Era uma bela pistola Beretta 380, objeto de desejo de muitos dos que estavam ali presentes, inclusive do próprio Tião, que por mais de uma vez havia lhe demonstrado interesse em comprá-la caso Celino quisesse, por algum motivo se desfazer dela.

Todos ficaram boquiabertos com a contraproposta de Celino. Até mesmo o próprio Tião, que não esperava por algo daquele tipo. Nhô Quinca reiterava sua posição quanto ao desrespeito por aqueles que já se foram. Todavia, a maioria — que sempre se ofendia com o ceticismo de Tião — aprovou a resposta de Celino perante aquela afrontosa proposta. Até mesmo aqueles que apenas ouviam a conversa em silêncio até então decidiram se manifestar em favor de Celino. Tião que pela primeira vez naquela noite, se vira sem argumentos necessários para uma resposta satisfatória, percebeu que acabara de cair numa armadilha. Para que não tivesse seu ceticismo colocado à prova, decidiu que aceitaria a aposta, dizendo logo em seguida:

— Aceito a proposta, mas para que tudo logo se resolva, uma vez que já era hora bastante avançada, e amanhã tenho compromisso bem cedo, peço que me permita ir em seu cavalo, pois assim em menos de meia hora estarei de volta. Também quero levar a pistola comigo, para o caso de me encontrar com Dona Amélia perambulando fora de sua sepultura.

Essa última frase fora dita em tom de galhofa, fato esse que também gerou desagrado a Nhô Quinca que apenas balançou a cabeça em gesto negativo. Contudo, nada mais dissera, sabendo que seria inútil gastar palavras perante tamanha teimosia e desrespeito. De posse da pistola, já na cintura. Tião montou no cavalo de Celino — um belo alazão todo ajaezado com todo tipo de parafernália que se tinha direito — e sem mais delongas, saiu num trote rápido pela estrada afora em sentido ao cemitério que distava menos de meia légua dali de onde estavam. Como a lua estava em todo seu esplendor no meio de um céu limpo e azulado a estrada estava banhada de luz, clara como o dia. Para os que ficaram aguardando o retorno do destemido e imprudente Tião, fora possível ainda vê-lo mesmo já bem longe na estrada, trotando despreocupadamente.

O cemitério ficava num outeiro limpo e descampado, onde o capim ao redor era baixo e bastante raspado pelo gado que muito apreciava a sombra das árvores que o circundavam — um enorme jatobazeiro, uma amoreira baixa e um frondoso cajueiro. Num trote rápido, em menos de vinte minutos, Tião estava em frente ao pequeno portão de entrada daquela mórbida cidadela onde o silêncio reinava em absoluto. Rapidamente, apeou do cavalo e, após amarrar as rédeas num dos galhos da amoreira, entrou sem nenhum tipo de receio e ali, de pé entre os mortos, pôde perceber ao clarão da lua como aquele lugar era simples. Nenhum mausoléu, nem mesmo uma pequena capela, apenas humildes sepulturas, — algumas de tão antigas nem mesmo a cruz que identificaria quem ali estaria repousando em seu descanso eterno, existia mais –. Um lugar onde o luxo e a prepotência não tinham espaço. Nivelando todos os seus residentes num único rebanho de condenados.

De certo modo, sentiu-se estranho estando ali sozinho no meio da noite, rodeado por todos os lados de tantas pessoas que já se foram. Como era um cemitério bem antigo, havia sepulturas com quase cem anos, pessoas que ninguém mais se lembrava, talvez nem mesmo seus próprios descendentes soubessem que um dia existiram. Involuntariamente deu um profundo suspiro e logo foi em busca do que viera buscar. Como era um cemitério pequeno, numa rápida olhadela, conseguiu logo identificar onde se encontrava a sepultura de Dona Amélia, pois era a mais recente e ainda de longe era possível perceber que a terra estava revolvida de novo. Um dos galhos do cajueiro lançava sua sombra justamente em cima daquela mais nova moradia. Ao lado da sepultura, encostado no pequeno muro que circundava toda aquela lúgubre cidadela, estavam as varas que formavam o banguê que trouxeram o caixão até ali.

Sem nenhum tipo de cerimônia ou demonstração de respeito, Tião empunhando uma das varas do banguê como se fosse um cavaleiro medieval preparado para uma justa, ficou de pé perante a sepultura de Dona Amélia olhando para a pequena cruz que identificava quem ali dormia o sono dos justos, pensou consigo mesmo: — Levarei também essa cruz, para que ninguém ouse duvidar que estive aqui. Sei do atrevimento de Jorge, em muitos espertinhos que podem muito bem, alegar que essa vara não seja parte do banguê que transportou a defunta até aqui.

Até aquele momento, nada de estranho havia acontecido naquela fresca e enluarada noite de aventuras, mas, quando ele, rompendo todos os limites da decência, arrancou a cruz da sepultura, uma enorme coruja, que a tudo aquilo observa em zeloso silêncio, assentada num dos galhos do cajueiro, deu um agourento piado e passou num voo rasante sobre sua cabeça e foi se assentar na amoreira próxima a seu cavalo, que deu um assustado relincho e vários pinotes, quase se soltando do galho da amoreira onde estava com as rédeas amarradas. Tião, temendo que pudesse ter que retornar a pé, caso o cavalo se soltasse e se debandasse em disparada de volta para seu antigo dono, logo que reuniu os objetos que viera buscar encaminhou-se para a saída e a após montar no arredio cavalo que a custo fora acalmado, rapidamente seguiu o caminho de volta para sacramentar sua vitória perante aquele audacioso desafio e tomar posse de suas preciosas prendas.

Assim que apontou com seu cavalo na cabeceira da estrada que dava para a casa de Nhô Quinca, logo percebeu que muitos dos presentes se levantaram para recepcioná-lo, ainda na porteira de entrada da casa. Até mesmo o próprio Celino, veio lhe dar os parabéns. Todos ficaram admirados com sua coragem e pela sapiência, em ter trazido também a cruz, para que ninguém duvidasse de seu destemido ato. Todos lhe deram os cumprimentos, exceto Nhô Quinca, que de muito mau humor, com uma voz em tom de advertência lhe dissera:

— É certo que vosmecê provou que tem mesmo coragem. Suas prendas foram conquistadas de forma merecida, mas será que tudo isso valerá a pena, perante a dívida que vosmecê adquiriu ao profanar o túmulo de alguém que nem mesmo quando ainda estava viva gostava de ser incomodada?

Perante aquelas palavras, um perturbador silêncio se estabeleceu entre todos. Até mesmo os mais exaltados se calaram. Celino, mais uma vez foi o responsável por romper o inquietante mutismo de todos, que em respeito as palavras do venerável ancião se mantinham calados.

— Quero que todos saibam, que eu nada tenho a ver com isso! Como todos aqui presenciaram, minha coragem foi experimentada e logo de imediato puderam perceber que eu me recusei veementemente. Pois, me faltara e ainda me falta a coragem necessária para tal ato. O que Tião fez agora na calada da noite, eu não o faria nem mesmo durante o dia com sol claro. Contudo, como eu mesmo propusera uma contraproposta perante o desafio que Tião me apresentara e ele por sua vez o aceitara, tendo ele honrosamente cumprido tal tarefa, tanto meu estimado cavalo, bem como minha preciosa pistola lhes pertence de agora em diante. Agora, quanto às dívidas que você, Tião, adquiriu ou deixou de adquirir, isso já não me diz respeito. Pagando o que te prometi eu lavo minhas mãos.

Todo cheio de si, como se fosse o dono de toda a verdade e da razão, Tião ainda quis dar uma amostra de humildade e após apertar a mão que Celino lhe estendia, devolveu-lhe as rédeas de seu cavalo, dizendo-lhe logo em seguida:

— Também lhe dou os parabéns por ser um homem honrado e cumpridor de suas promessas, mas esse cavalo lhe pertence, apesar de ser um belo alazão, e eu tê-lo ganho de forma honesta, dentro daquilo que você mesmo me propôs, não acho justo te desprover de sua única condução e também meio de trabalho, agora a pistola, essa eu faço questão de ficar com ela! Até mesmo para me precaver, caso Dona Amélia ou alguma outra entidade desocupada venha me cobrar alguma dívida.

— O recebo de volta, desde que você, Tião, aqui na presença de todos dê a sua palavra que a aposta foi devidamente paga! E que foi você mesmo, de livre e espontânea vontade, que não quisera recebê-la ao todo, mas tão somente a pistola que lhe fora oferecida.

Com mais um aperto de mão, assim fora feito. Como o semblante de Nhô Quinca — o anfitrião em questão — ficara bastante carrancudo, demonstrando uma desaprovação total perante aquela ultrajante situação e também como já era bem tarde, um por um, os presentes foram se despedindo e cada qual foram tomando o rumo de suas devidas casas. Por último, além dos residentes da casa, ficaram o próprio Celino e também Tião que não sabia — ou se fazia de ignorante — quando sua presença se tornava inconveniente em algum recinto. Celino, percebendo tal fato, após pedir sinceras desculpas ao dono da casa por todo aquele acontecido ter se passado em sua residência, despediu-se de todos e também logo seguiu seu caminho, convocando Tião que o seguisse, pois, o acompanharia parte da estrada até onde o caminho dos dois se separava. Algo muito constrangedor acontecera então, pois ao tentar se despedir do dono da casa, Nhô Quinca não quisera apertar sua mão. Tião ao estender a mão, recebera fora uma severa reprimenda quando o sábio ancião lhe dissera:

— Tião, esperei que todos saíssem para poder lhe dizer de forma que não lhe causasse nenhuma ofensa perante nossos companheiros, mas quero lhe dizer uma única vez. E quero que ouça bem minhas palavras. O que vosmecê acredita ou deixa de acreditar, não me diz respeito, até porque nós dois somos apenas amigos, e é em nome dessa amizade que vou lhe pedir que o que aconteceu aqui hoje, jamais volte a se repetir em minha humilde casa. Peço-lhe que tenha mais respeito, se algum dia vosmecê decidir voltar aqui outra vez. Minha casa está de portas abertas para qualquer pessoa que saiba se comportar de forma decente e respeitosa. Se nossa amizade tem algum valor para vosmecê, peço-lhe encarecidamente que pegue esses objetos e os devolva de onde você os retirou.

De forma bastante envergonhada, tanto Celino bem como o próprio Tião se desculparam de Nhô Quinca, que dera mostras de estar profundamente ofendido com a desventura de ambos. Tião, de posse dos fúnebres objetos, após dar sua palavra que os devolveria no mesmo lugar que os pegara, despedindo-se mais uma vez, seguira pela estrada afora, carregando tanto a cruz bem como a vara do banguê nas costas. De pé, tendo uma das mãos nas costas e a outra segurando o cachimbo que levara a boca para mais uma baforada, Nhô Quinca ao lado de sua esposa, olhando Tião se distanciando pela estrada, ainda iluminada pela luz da lua que brilhava soberana, disse:

— Tenho pena dessas pessoas ignorantes que se acham sabidas demais e acabam por se deixar guiar pela emoção e agem de forma estúpida e intempestiva, sem pensar nas consequências de seus atos. Tais indivíduos são como os peixes em sua grande maioria, acabam se perdendo pela boca.

Menos de um quilometro a frente, Celino seguindo por outro caminho o deixou só em seu retorno para casa, uma vez que seus caminhos se separavam. Caminhando agora mais devagar, e também porque estava a pé, demorou um pouco mais a chegar até o cemitério. Devido a claridade da lua, não havia necessidade de uma lanterna, pois a estrada estava clara como dia. De acordo que a hora avançava o tempo esfriava a cada momento, deixando a noite mais fresca e agradável, fria até, pois Tião vez por outra sentia um estranho arrepio correr por todo o seu corpo. Por mais de uma vez sentiu uma brisa um pouco mais forte lhe roçar a face. Ele, bastante orgulhoso de si mesmo, trazia na cintura o prêmio por sua coragem e perspicácia. Nos ombros trazia tanto a cruz bem como a vara do bendito banguê. Por mais de uma vez, pensou em abandonar pelo menos aquela comprida vara. Porém, uma vez que de qualquer forma teria que passar em frente ao cemitério, de forma alguma correria o risco de deixar algum vestígio que poderia gerar comentários que viessem a manchar sua reputação, dizendo que ele não passava de um vil profanador de túmulos. Além do mais, dera sua palavra a Nhô Quinca — que se ofendera bastante com sua conduta — que devolveria aqueles itens onde os havia encontrado.

Resoluto de que cumpriria com sua palavra, seguiu com passos firmes e ao terminar de subir uma pequena ladeira um pouco mais elevada na estrada, do alto já conseguia ver o pequeno cemitério que ficava menos de quinhentos metros à frente. Mesmo de longe pode perceber que havia algo de errado, pois o portão do cemitério ainda estava aberto. Parou por instante, primeiro para tomar um pouco de fôlego, pois a pequena subidinha o tinha tirado as forças, sentia que aquela vara junto com a cruz em suas costas começara a ficar bastante pesadas. Segundo porque, além do portão estar aberto, parece que havia duas figuras estranhas na porta do cemitério. Mesmo com a claridade da lua, devido à distância não era possível discernir do que se tratavam aquelas duas sombras ladeando o pequeno portão. Como até aquele momento, tudo correra dentro da mais cômoda normalidade, continuou caminhando sem titubear, até porque trazia uma arma na cintura.

A menos de cem metros do portão e com todos os pelos do corpo espontaneamente eriçados, teve um leve sobressalto e quase correu, quando a mesma coruja — pelo que pareceu — mais uma vez deu outro rasante sobre sua cabeça com um piado mais pavoroso do que o primeiro. Ainda dominado pelo seu ceticismo, concluiu que o portão fora ele mesmo quem o deixara aberto quando na pressa de logo retornar, não o fechara devidamente. A coruja certamente teria um ninho ali por perto e estava tentando o manter longe de seus filhotes. Contudo, quando já estava buscando uma explicação lógica para as duas sombras que circundavam o portão, pode perceber que as sombras eram duas crianças. Um casal de uns sete anos ou até um pouco menos, — se fossem irmãos certamente seriam gêmeos –. Estavam ambos muito bem-vestidos, como se estivessem vindos de uma festa.

Tião parou já quase em frente ao cemitério e por um momento ficou sem reação. Talvez devido ao susto de encontrar duas crianças daquela idade, sozinhas no meio da noite. Como sempre fora um homem de gentileza maior, mesmo com todo seu inconveniente ceticismo, quisera logo trazer algum conforto àqueles pequenos inocentes que ali se encontravam em tão abandonada situação. Talvez por sua incredulidade, quantas as coisas que não pertencem a esse mundo, ou por mera inocência de espírito se aproximou das crianças e foi logo dizendo:

— Boa noite, crianças! O que estavam fazendo aqui a essa hora da noite? Quem são seus pais? Onde eles estão?

A menina, uma criança de face meiga e sorriso inocente, lhe respondeu educadamente, mas com o olhar desolado, de quem padeceu uma grande tribulação.

— Boa noite, senhor Sebastião! Não sabemos quem são nossos pais! Somos órfãos!

Tião sentiu suas pernas perderem as forças quando a garotinha de cabelos cor de ouro disse seu nome de batismo, como se o conhecesse. Ficou mais pasmo ainda quando ela lhe dissera que eles eram órfãos, pois vivia ali naquela região desde que nascera e jamais ouvira falar de algum casal que tinha tido filhos gêmeos, muito menos que tinham ficado órfãos. Exceto a inverossímil estória que havia escutado ainda naquela mesma noite, sobre as duas crianças que Dona Amélia havia perdido — ou mesmo abortado — quando seu noivo a havia abandonado. Antes que pudesse chegar a uma racional conclusão, mesmo estando ainda pelo lado de fora do cemitério, pôde ver que a figura de uma enorme mulher caminhava em sua direção com as mãos levantadas em decidido movimento de agarrá-lo. Ao luar, a face da mulher que logo entendeu que só poderia ser a própria dona da cruz em pessoa, muito se assemelhava às monstruosas imagens que certo dia padre Severino mostrara numa missa, como sendo as criaturas que povoavam o reino das Trevas. Rapidamente jogou tanto a cruz, bem como a vara no chão e, num desesperado ímpeto de se defender, sacou a pistola e a apontou em direção àquela cadavérica e infernal figura que se aproximava numa rapidez que não era própria de um ser humano, pois aquela horripilante criatura planava por sobre as lápides. No silêncio daquela tranquila cidadela, onde o orgulho e arrogância não jazem, um único tiro foi dado.

Como o tempo estava limpo e a noite bastante silenciosa, o estampido daquele tiro fora ouvido há uma distância bastante considerável. Nhô Quinca, que ainda não havia se recolhido, e estava naquele momento sentado em sua varanda, numa confortável cadeira de balanço, fumando sossegadamente seu cachimbo, pensou consigo mesmo: — Parece que o nosso incrédulo Tião se encontrou com sua verdade tão almejada, tomara que aquela pistola tenha lhe servido de algum conforto nessa hora tão ingrata –…

Texto publicado na 2ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2024. → Ler edição completa

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