Hereditário, Parte I — Gardênia, Capítulo II — Desilusão

MidjourneyAI

Com o passar do tempo, — esse extraordinário deus, bem como o rio Lete que em suas límpidas e serenas águas guarda todas as lembranças daqueles que saciam sua sede, também cicatriza todas as feridas e muito rapidamente lança várias lembranças para o abismo do esquecimento — Gardênia, aconselho de seu sábio e amoroso pai, colocou uma pedra sobre o assunto e seguiu com sua vida e logo se tornaria uma bela mulher, esbanjando charme e sensualidade, contudo por quase dez anos, ninguém nada soubera sobre qualquer tipo de relacionamento dela com quem quer que fosse. Quando alguém um pouco mais corajoso ou apenas mais um desavisado, se aproximava dela um pouco mais romanesco e demonstrando segundas intenções, ela logo o repelia. Entre o populacho — essa raia miúda que não tem muitas ocupações — surgiu inclusive alguns bochichos sobre o verdadeiro interesse de tão bela jovem, pois essa por sua vez, sempre preferia a companhia de outras mulheres, principalmente mulheres separadas, viúvas ou jovens solteiras como ela mesma o era.

Além de Gardênia trazer consigo a desconfiança sobre a verdadeira causa da morte do Coronel Guilhermino, e temer que aquele tipo de mal se repetisse a outra pessoa e repelisse qualquer um que se aproximasse dela, a maioria dos então possíveis pretendentes da região — que já não eram muitos — temiam profundamente os boatos sobre o pai dela e se mantinham há uma distância segura. Assim, essa bela e prendada jovem, após sua primeira e dolorosa experiência que se demonstrou bastante traumática de todas as formas, só veio a conhecer o carinho de um homem no leito com mais de vinte e cinco anos, quando seu corpo quase retornara ao estágio virginal novamente.

Seu único e verdadeiro caso de amor, ou pelo menos aquilo que se pode se chamar de amor — sentimento recíproco entre dois seres que ocorre de forma espontânea e com consentimento mútuo — se deu nos braços do boiadeiro Emanoel Batista, que estava de passagem pela região acompanhando uma tropa de boiadeiros, — da qual ele mesmo fazia parte — tocando uma enorme boiada em sentido ao Pantanal mato-grossense. O encontro entre Emanoel e Gardênia se deu por um simples deslize do acaso, pois o boiadeiro estava acampado às margens do Rio das Almas, aguardando as águas baixarem um pouco, pois como havia chovido muito e de forma inesperada nos últimos dias, a correnteza estava letalmente violenta, tanto para os animais, bem como para os peões. Tentar atravessar o rio naquelas condições era um risco que o velho e sábio capataz não estava atinado a correr. Sua ordem ao chegar às margens do rio havia sido direta e inquestionável:

— O acampamento deve ser armado às margens do rio e assim que as águas baixarem um pouco e a violência da correnteza se amainar, poderemos atravessar em segurança sem nenhum tipo de prejuízo ou lamentação posterior.

Depois de três dias acampados às margens daquele caudaloso rio, aguardando por uma travessia segura, como a chuva teimava em cair cada vez mais forte — houve um tempo que nessas ermas regiões era comum chover semanas inteiras sem a presença do sol nem por um momento se quer. Emanoel — conhecido entre seus companheiros como Mané Faísca, devido a sua fogosa personalidade e intrépida rapidez sobre o lombo de uma animal — como era uma dessas criaturas de espírito inquieto, que não conseguem ficar ociosas por muito tempo, decidiu dar algum tipo de ocupação a si mesmo, enquanto a natureza seguia vagarosamente seu eterno e incansável fluxo. Se por um lado a maioria dos boiadeiros daquela tropa se mantinham sossegados debaixo de suas improvisadas barracas, protegidos da chuva e do frio, dormindo em suas redes na maioria do tempo ou envolvidos em jogatinas entre uma refeição e outra, Mané Faísca por sua vez, após selar sua mula e comunicar ao capataz, decidiu conhecer a região de forma mais íntima, fazendo uma cortês visita aos moradores da região. Esse simpático boiadeiro sempre deixava rastros de sincera amizade por onde passava, as vezes até algo mais do que uma simples amizade.

Na terceira casa onde bateu palmas, logo foi alegremente recebido pelo proprietário, acompanhado de seu filho mais velho — nas outras duas casas anteriores, como só havia mulheres e crianças presentes, não fora convidado a entrar, pois era comum nessas regiões não receber visitas se o dono da casa não estivesse presente. Até mesmo a estrutura da casa era planejada e construída prevendo uma situação assim, caso o assunto fosse urgente, o visitante aguardaria a chegada do proprietário num local específico do lado de fora da casa denominado alpendre, — uma espécie de varanda na frente da casa, onde o visitante pudesse aguardar o tempo que fosse necessário acolhido do sol e da chuva, fosse o caso de uma espera tardia. Nesse terceiro casebre onde ele se anunciou, como toda a família estava presente naquele dia em questão, inclusive recebendo outra visitante, logo ele também foi convidado a apear de sua montaria e entrar na casa para se proteger da chuva que, naquele momento, caia fina e bastante friorenta, acompanhada de um vento calmo mais constante.

O dono da casa, seu Antônio Fidelis, um homem de aparência bastante peculiar, estava trajado com suas vestes domingueiras, pois justamente além de ser dia do domingo, coincidentemente havia outra visita em casa. Nhô Tunico, como era verdadeiramente conhecido por todos na região, era um homem roliço, já pelos cinquenta anos, — talvez até um pouco mais –, acompanhando seu físico avantajado, o rosto era rechonchudo e liso, reluzindo a sabonete barato, utilizado para retirar a barba. Tinha os olhos castanhos e umedecidos, como se estivesse prestes a chorar a qualquer momento, esses mesmos olhos eram caídos e distantes como se quisesse enxergar ao longe, talvez buscando longínquas lembranças de um tempo bastante ido. Esse gentil senhor, mesmo sendo um homem simples, mas bastante hospitaleiro, logo decidiu dar guarida ao recém-chegado, convidando-o a entrar em sua humilde casa, lhe oferecendo logo em seguida uma xícara de café bem quente que, de imediato, foi aceito pelo boiadeiro com gratidão e afetuosidade.

Emanoel ao adentrar na sala de Nhô Tunico se deparou com quase toda a família ali reunida. Demonstrando gentileza e polidez, correu a vista por todo o recinto, cumprimentando a todos de forma unanime independentemente da idade de cada um. Contudo, logo seus olhos matreiros de bom caçador, se depararam com a bela silhueta de Gardênia, que naquele exato momento, também adentrava na sala por outra porta, proporcionalmente oposta a que ele estava adentrando ao recinto. Como se fosse por objeto de magia do próprio destino, os olhares dos dois se cruzaram, entre tantos outros, e mesmo antes de serem apresentados, um ao outro, parece que já se conheciam intimamente de outros tempos idos. Algo inverossímil e extraordinário sucedeu a ambos ao mesmo tempo, pois de forma rápida e bastante tímida, na troca daqueles poucos e discretos olhares, parece que mil juras de amor foram proferidas um ao outro de forma cúmplice e verdadeira.

Nhô Tunico, como homem polido e bom anfitrião que sempre fora, após apresentar sua família ao forasteiro, logo lhe ofereceu uma toalha limpa, para que o visitante pudesse se secar. Também fora lhe oferecido uma confortável cadeira para que se acomodasse o melhor possível. Rapidamente, uma das filhas da casa trouxera-lhe uma fumegante xícara de café, com um cheiro bastante atrativo, e ao experimentar um gole, logo o boiadeiro pôde comprovar que o sabor fazia jus ao aroma.

Emanoel agradeceu polidamente a gentileza, mas sem muito entusiasmo, pois a mulher que lhe servira o café já não era tão jovem e muito menos dotada de algum tipo de simpatia. Tinha ela um aspecto taciturno e bastante carrancudo, — semblante este comum a pessoas frustradas e infelizes. Tratava-se da filha mais velha da casa, — ou pelo menos assim se fez parecer. Foi apresentada a ele como Maria Lisandra, mas também foi lhe oferecido a intimidade de ser tratada pelo seu apelido mais conhecido — Liana. Era uma mulher na altura de seus trinta e cinco anos, — talvez, quem sabe, até um pouco mais. Logo de primeira vista era possível perceber que era uma solteirona sem as mínimas pretensões ao matrimônio. Os motivos eram muito aparentes, mas o principal e mais notório talvez fosse o conformismo latente em sua face que, além de muito sombria, também era bastante queimada pelo sol. Seus cabelos eram curtos e lisos de uma cor amarelada como palha seca, suas mãos eram grandes e grosseiras ao extremo, como couro curtido, com dedos compridos e cheio de nódulos que se encerravam em unhas amarelecidas pelo uso contínuo do tabaco. Não havia o mínimo traço de sorriso em seus lábios secos e rachados. No geral, seus traços se resumiam numa masculinidade velada, talvez pelo árduo trabalho no campo que ela desempenhava tão bem como se fosse um homem rude, — dependendo do homem, até um pouco melhor. Ao fim não era bonita de fato. Por outro lado, sua feiura estava longe de assustar alguém, mas era o suficiente para afastar qualquer pretendente da região, ou de qualquer outro lugar que fosse. Pelo seu olhar duro e sombrio, demonstrava clara resiliência quanto ao seu destino, certo e imutável, de eterna beata, ao qual ela caminhava a passos largos e contínuos.

Após saborear seu café, Emanoel acendeu seu cigarro de palha e deu boas baforadas. Pois, como a maioria dos presentes na sala também já o tinha feito, sendo assim, não seria falta de educação alguma empestear o recinto com mais um pouco de fumaça. Aquela mesma sala se tratava de uma local amplo e bastante arejado com várias janelas, num total de quatro ao todo. Duas delas estavam fechadas devido ao vento e a chuva que não dava mostras de estiar tão logo, mas as outras três, que davam para uma varanda lateral, estavam abertas e ventilavam satisfatoriamente o ambiente. O piso era assoalhado, mas não tão bem cuidado como necessário, contudo, pelo menos estava limpo. Além de uma enorme mesa de madeira com umas doze cadeiras, tinha, também, dois sofás de couro oleado e duas outras cadeiras de balanço. Num dos cantos da sala, havia um guarda louça com diversas quinquilharias, dividindo espaço com poeira e uma ou outra teia de aranha pendurada aqui ou acolá. Entretanto, o que mais chamava a atenção no ambiente era um belíssimo oratório no canto oposto ao da porta lateral da sala, que ficava justamente na direção da nascente. No centro desse oratório havia um majestoso crucifixo de madeira, posicionado de forma estratégica, proporcionando o ato de que Jesus Cristo pudesse receber todas as manhãs o nascer do sol em seus braços abertos. Aos pés desse crucifixo brilhava bruxuleante uma tímida vela caseira que exalava um agradável perfume de canela ou almíscar talvez.

Nesta sala além de Nhô Tunico, — o dono da casa, obviamente —, também estavam presentes; Liana e os demais filhos do proprietário. O mais velho lhe foi apresentado pelo nome de Antonio Lisandro — nome que ele simplesmente odiava — dando preferência por ser tratado apenas como Naldo ou Mestre Naldo — como seus alunos o chamavam. Era uma criatura de aspecto um tanto quanto peculiar. Completamente o oposto ao de Liana, sua irmã. Trazia em si movimentos sensíveis demais para um homem do campo que eram corroborados pela sua sutil aparência. Tinha os cabelos sedosos e cacheados, levemente crescidos tampando sua nuca. Muito bem cuidados, tal qual os de uma donzela casamenteira. Seus olhos eram brilhantes e carregados de certa malícia, sua pele clara e macia demonstrava completa repugnância a exposição ao sol, fato esse confirmado por suas mãos finas e delicadas, que denotavam à primeira vista nunca terem tocado uma ferramenta grosseira. Seus dedos eram finos e alongados com unhas limpas e bem cuidadas. Por fim, tinha um sorriso fácil e solto que sempre deixava à mostra, dentes brancos como marfim. Muito diferente de sua irmã Liana, que além de cumprimentar Emanoel com muita má vontade, nada mais lhe dissera, ignorando-o por completo. Naldo, por sua vez, se demonstrava falante e muito curioso quanto a tudo que o visitante dizia. Talvez porque fizesse parte de sua profissão — ouvir e falar — que era de mestre-sala de pequenos jovens da região, — a maioria filhos de fazendeiros prósperos, que o contratavam para lhes ensinar a ler e a escrever, além de lhes apresentar o místico mundo da matemática com seus números e as complicadas operações aritméticas. Para quem, porventura se interessasse, Mestre Naldo também ensinava música, além do canto, o fino trato com os instrumentos de corda, como o violão, a viola e o bandolim, não somente a simplesmente tocar os instrumentos, bem como, delicadamente a afiná-los. Além das aulas práticas ele fazia questão de ensinar todas as questões que envolviam a teoria musical.

O boiadeiro acostumado a lidar com companheiros rústicos, à primeira vista, — com seu jeito um tanto quanto matuto e até mesmo ignorante perante a certas novidades –, tinha sido preconceituoso e até mesmo leviano para com a sensível aparência do rapaz, logo repreendeu seus pensamentos e se autocensurou , convencendo a si mesmo que talvez aquela estranha aparência delicada de Naldo — que estava sendo tão educado a atencioso para com ele — era devido a sua intimidade para com as crianças, que se sentiam mais à vontade próximo a alguém com uma aparência menos grotesca. Emanoel também logo entendeu que, devido as circunstâncias, estava comparando Naldo com sua irmã Liana e aquela referência pode claramente ter exercido uma errônea influência em seu crítico e precoce julgamento. Próximo a Liana qualquer um — mesmo um rude lenhador — poderia muito facilmente ser confundido com uma donzela.

Naldo era um tipo de pessoa de diálogo fácil a agradável, pois falava corretamente e tinha um vocabulário bastante rico, até mesmo com palavras estranhas ao uso comum no cotidiano de uma pessoa simples. Era um sujeito muito querido por todos que o conheciam. Num raio de muitos quilômetros era um dos raríssimos letrados daquela erma região. Quando se fazia necessário, era ele quem redigia cartas a quem precisasse enviar uma mensagem a quem estivesse distante, e depois era ele também quem lia alguma epístola recebida. Como era bastante requisitado na questão que abrangia o universo das letras, além de saber muito sobre a vida de quem sempre o procurava, para um documento qualquer ou um simples escrito também era muito respeitado por sua sabedoria e polida discrição, naquilo que tangia aos assuntos alheios.

Para completar o grupo ali presente naquele ambiente, além de Gardênia que também estava como visitante, bem como ele mesmo — apesar de que Gardênia era uma visita mais íntima, pois era confidente de Naldo, seu antigo professor e conselheiro. Também era muito amiga da filha do meio de Nhô Tunico, Lisandra Maria. Havia também na sala o jovem Daniel, um belo rapaz, e mais três outras crianças menores, brincando num canto mais afastado, com alguma coisa bastante divertida, pois estavam bem entretidos e riam quase o tempo todo. Emanoel, vez por outra, também ouvia bulhas de uma criança de colo em outro cômodo, nos fundos da casa, talvez fosse o caçula da família. Lisa e Daniel pareciam ter mais ou menos a mesma idade com diferença de no máximo dois anos talvez, sendo Lisa mais velha. Contudo, Emanoel ficou pasmo quando soube do curioso fato de que Liana e Naldo eram gêmeos, algo surpreendente e complicado de acreditar, pois ambos eram completamente antagônicos entre si, e não somente na aparência física, havia ainda a questão temporal. Liana parecia ser pelos menos uns dez anos mais velha do que Naldo.

Após ter tomado mais um gole de café — que lhe fora novamente oferecido — e de mais algumas baforadas com seu palheiro já ambientado com o lugar e tomado certa intimidade tanto com a casa bem como com seus habitantes, Emanoel iniciou uma agradável prosa com o dono da casa e todos ali presentes, fato esse que muito agradou Nhô Tunico que se mostrou bastante interessado na conversa do boiadeiro. A vida de peão estradeiro é sempre cheia de histórias e muitas aventuras, algumas até verdadeiras, outras nem tanto. Contudo, nem mesmo por isso, deixam de ser interessantes e curiosas. Dentre os presentes ali naquela sala, o mais interessado nessas estórias de estrada era o jovem Daniel, — que logo se soube –, tinha apenas dezenove anos, e sonhava mais que tudo nessa vida, deixar a casa paterna e conhecer o mundo e poder desfrutar de tudo que essa vida pudesse lhe oferecer. Desde que nascera nunca havia colocado os pés para fora de casa e se alguma vez assim o fizera, fora em companhia dos pais pelas cercanias, nunca além dos limites da região onde vivia desde sempre. O que conhecia sobre o mundo era através do que Naldo lhe falava pelos livros — e de uma ou outra viagem que este fizera até a capital — ou pelas estórias de um ou outro viajante que muito raramente fazia parada por sua casa. Por muitas noites ficava até tarde acordado olhando, pela janela de seu quarto, o longínquo horizonte, sempre devaneando que a qualquer momento se lançaria pelo mundo e que, por sua vez, seria ele quem contaria as histórias de terras distantes quando retornasse a casa paterna.

Daniel era um jovem muito sonhador que sempre vivia suspirando ais de tristeza ao observar um pôr do sol ou ao contemplar um céu estrelado, pensando na grandiosidade do mundo que se perdia de vista no horizonte, enquanto ele estava preso ali naquela humilde casa desde que nascera. Primeiro de baixo da proteção de sua mãe, quando ainda criança sempre agarrado a barra de sua saia e agora, já quase um homem adulto, ainda não conseguiu se desvencilhar da sombra do chapéu de seu pai. Esse, até então, frustrado jovem, era meio termo dos dois irmãos mais velhos. Mais alto e mais forte do que Naldo, contudo bem menos grosseiro do que Liana. Tinha os olhos de expressão tristonha e distante que demonstrava ansiedade e muita sede de aventuras. No rosto ainda juvenil, já trazia os traços de um homem adulto, pois um fino bigode ainda tímido estava sendo cultivado com muito esmero. Suas mãos eram fortes e demonstravam uma ânsia incontrolável de tomar as rédeas de seu próprio destino e logo se enveredar pelas estradas da vida. Por mais duras e grosseiras que suas mãos pudessem parecer, quando Naldo trouxe o violão de seu quarto e a ele o entregou, rogando-lhe que alegrasse ainda mais a casa com algumas canções, de imediato pôde ser percebido que havia inconteste suavidade no contato de seus dedos com as delicadas cordas daquele instrumento. Lisa rapidamente sentou-se ao seu lado e enquanto ele tocava com bastante maestria, ela o acompanhava com uma voz bastante melodiosa, num tom quase angelical, demonstrando perfeita sintonia entre ambos.

A chuva continuava de forma insistente, mesmo sendo apenas um leve chuvisqueiro, mas bastante frio e como a conversa e agora também a cantoria estava bastante agradável, o tempo foi passando depressa e o visitante estava cada vez mais à vontade e ainda mais ficou, quando lhe ofereceram o violão, e lhe perguntaram se porventura ele sabia tocar. Emanoel com muito jeito, se apropriou do instrumento e disse:

— Um boiadeiro que se preze tem que saber lidar com o gado e ter certa intimidade com um violão para alegrar as noites frias e vazias longe de casa.

De posse do violão, logo Emanoel demonstrou que sabia muito bem como se deve tratar um instrumento como aquele. Das pontas de seus dedos, doridos acordes foram tirados daquelas sonoras cordas, e como sua voz era um pouco grave, as canções foram muitos bem recebidas. Quando, muito rapidamente ele olhava para Gardênia, algo dentro de si lhe dizia que aquelas melodiosas canções estavam tocando no fundo do coração daquela bela mulher, teve até mesmo a sensação de tê-la visto suspirar uma vez ou outra. Emanoel sabia melhor do que ninguém que a música acalma e agrada até mesmo a mais rude das criaturas e, quando a canção é dedicada a alguém de alma doce e transparente, o resultado se torna algo ainda bem mais satisfatório.

Após várias estórias e inúmeras canções, logo aquele boiadeiro entendeu que deveria ser tempo de se despedir e seguir seu caminho. Mas quando, ousou demonstrar suas intenções, logo foi convencido do contrário, quase que por unanimidade a ficar um pouco mais e aguardar pelo almoço, — que já estava na verdade para ser servido, a qualquer momento. Emanoel um pouco sem jeito por tanta hospitalidade que lhe era despendida, até que tentou, com certa relutância, recusar o convite, mas para surpresa de todos, foi a bela Gardênia que, quebrando a timidez e o recato de uma mulher solteira, o convenceu a ficar, dizendo a ele com uma voz quase suplicante e toda cheia de charme.

— Ainda chove lá fora e como a prosa está muito agradável, não vejo motivos que o impeça de nos privilegiar um pouco mais com sua companhia e ficar para o almoço. Se o senhor nos agraciar com sua presença à mesa, além de ter a chance de experimentar o humilde tempero da casa, poderá provar também dos deliciosos licores que Tia Jandira prepara com frutos colhidos por ela mesma. Posso lhe garantir que não se arrependerá por ter esperado um pouco mais.

Com essas convincentes palavras que a bela Gardênia tão docemente lhe dirigiu, quase que, na verdade lhe convocando para o almoço, temendo ele fazer uma grosseira ofensa ao dono da casa, logo se viu na iminência de aceitar o convite, até porque, também já estava farto da repetida refeição de seu acampamento que, seguindo uma regra básica de comida de estrada, era quase sempre o mesmo cardápio. Feito com muito asseio, mas tudo junto e misturado — até porque a estrada não permite certos luxos. Assim que foi anunciado que ele ficaria para o almoço, logo foi aberta uma garrafa de licor de jenipapo que foi recebida por todos com bastante regozijo, até mesmo pelas crianças que, devido ao frio, foram também autorizadas a tomarem um pequeno trago cada uma. Quando Gardênia, dizendo-lhe que a espera seria bem recompensada, insistiu para que ele ficasse, de forma alguma ela faltou com a verdade. Realmente, o almoço valeu a pena a espera, pois estava divinamente apetitoso e bastante sortido.

Emanoel soube depois que aquele fantástico repasto, fora preparado por Jandira, uma espécie de serviçal da casa que a bem da verdade era uma prima em segundo grau da esposa de Nhô Tunico. Tia Jandira — como todos a chamavam — era uma mulher de pele escura e corpo avantajado e aspecto forte, mas com uma aparência agradavelmente bonacheira. Mesmo trazendo consigo uma grotesca corcunda e uma das pernas quase esquecida, tornando o seu caminhar uma atividade bastante estranha e ruidosa, não tinha uma aparência que pudesse causar espanto, pois tinha sempre um sincero sorriso na face de bochechas salientes e nariz adunco. Seus proeminentes lábios cobriam uma dentição perfeita de dentes brancos e fortes. Por fim, Tia Jandira era discreta ao extremo, até porque nunca fora escrava de suas palavras, mas sempre senhora de seu silêncio, desde sempre vivera sua singela vida no mais absoluto mutismo, sem nunca pronunciar qualquer tipo de tagarelice desnecessária, mas utilizando-se dos verbos somente em necessidade extrema. Tia Jandira, em troca da proteção e do abrigo que lhe era oferecido desde sempre, retribuía tão nobre gentileza se fazendo de serviçal doméstica, assumindo para si praticamente todo o serviço da casa. Ainda que, fazendo sempre de tudo um pouco, tudo o que fazia era executado com esmerada maestria. Sendo assim, o almoço daquele dia em questão, não o fora diferente — estava divino.

O cardápio era simples, mas bastante caprichado no tempero. Arroz branco — soltinho e bem cozido —, feijão refogado na banha de porco com bastante alho, mandioca cozida, banana frita, couve refogada, salada de rúcula com tomates e o prato principal: frango ao molho de açafrão com pimenta e cheiro verde. Aquela comida tipicamente caseira, com todas as suas peculiaridades, muito agradou ao paladar do boiadeiro. Uma vez tendo perdido a timidez, não se fez de rogado e repetiu o prato sem nenhuma cerimônia. De certo modo, houve uma ponta de arrependimento, por parte do visitante, em ter exagerado no almoço em si, pois assim que findou aquela refeição principal, logo em seguida foi servida uma farta sobremesa com vários tipos de doces e licores de fabricação caseira. Juntamente com a sobremesa foi disposto sobre a mesa outro fumegante bule de café recém-preparado e um belo queijo fresco.

Não apenas a comida em si, mas os doces e, também, as bebidas eram fruto do trabalho de Tia Jandira. Segundo Naldo, — que logo deixou explicito que naquela casa era quem mais a respeitava — Tia Jandira não sabia o significado da palavra preguiça, por isso, tudo era preparado por ela com alegria e muito boa vontade, sobretudo os licores, que ela preparava a base de cachaça artesanal — que ela mesma produzia — e frutos colhidos no faustoso pomar do quintal. Daniel, de uma forma jocosa relatou que, Tia Jandira enquanto preparava os licores experimentava um e outro, testando o teor de cachaça e vez por outra se animando além da conta. Qualquer um que não a conhecesse pessoalmente poderia jurar que a qualquer momento ela iria começar a cantarolar uma bela canção. Contudo aquela servil e humilde criatura levava sua vida de forma simples e desinteressada, relegando sua existência num completo e resiliente silêncio.

É costume — independente de qualquer coisa ou qualquer dia que seja — em qualquer residência de fazenda interiorana que se preze que o almoço seja servido logo bem cedo. E naquele dia não foi diferente, e antes mesmo das onze horas o barulho de talheres no fundo dos pratos se fez ouvir.

Ao meio-dia a prosa ainda continuava muito alegre e mais algumas canções foram ouvidas, mas mesmo entre música, estórias e um gole e outro de licor, assim que a chuva deu uma pequena trégua, Emanoel logo percebeu a oportunidade de não abusar da hospitalidade alheia e decidiu que era hora de partir. Aquele destemido e aventureiro boiadeiro, depois de ser agraciado com uma manhã tão agradável na companhia de tão amáveis e prestativas pessoas — fora lhe oferecido um belo queijo e uma garrafa de licor de Jenipapo como prenda em agradecimento pela visita — nem imaginava por alto que fosse que o destino estava traçando o trágico início do final de sua jornada por essa estrada, que todos chamam de vida. Emanoel estava se encaminhando de forma totalmente involuntária para a última curva de sua estrada.

Ainda que, naquele momento, a chuva tivesse dado uma trégua, o céu ainda se mantinha carregado com nuvens pesadas e escuras, dando a entender que a qualquer momento poderia chover forte novamente. Após despedir-se de todos os presentes com galhardia e polidez, Emanoel dirigiu-se ao local onde sua mula pastava sossegadamente. Caminhando tranquilamente e com os pensamentos em completa abstração, ele, que naquele momento, tinha o rosto afogueado pelo efeito dos vários cálices de licores saboreados com avidez exagerada, nem se deu conta de que alguém lhe dirigia a palavra timidamente às suas costas, seguindo-o timidamente. Quando percebeu que estava sendo solicitado, virou-se para responder ao chamado e logo se deparou com Gardênia — que durante quase toda a manhã não havia tirado os olhos dele, fato que o havia deixado muito animado — e que, ao perceber que havia conseguido sua atenção, perguntou-lhe de forma bastante meiga, quase suplicante:

— Será que haverá algum incômodo se eu o acompanhar pela estrada, uma vez que o caminho que seguiremos será o mesmo até certo ponto?

Para qualquer mulher solteira, um ato como aquele poderia se caracterizar como um escândalo, especialmente considerando a época e aquele ermo local. Contudo, no caso de Gardênia, não havia perigo algum; e se porventura houvesse, com plena certeza, esse perigo jamais seria para ela. Emanoel, por sua vez, ficou muito satisfeito com a companhia em si. De certo modo, ficou até surpreso com a forma como tudo se encaminhava. De forma muito cavalheiresca, ofereceu a garupa de sua mula a ela. Gardênia, no entanto, devido à sua conduta moral e irrepreensivelmente ilibada, agradeceu a gentileza, mas negou veementemente montar em sua mula junto a ele, e seguiu a pé ao seu lado.

Caminhando então juntos, ambos estavam a pé, pois ele, de forma solidária, também apeou de sua montaria e foi andando ao lado dela, arrastando sua mula atrás de si — fato esse que trouxe certo regozijo àquele imberbe muar, que de forma alguma quisera protestar. Foram caminhando próximos um ao outro e conversando animadamente sobre diversos assuntos da vida, como se já se conhecessem desde sempre. Toda a inibição que pudesse ter existido entre eles se desfez por completo nos vapores dos licores, consumidos por ambos, evidentemente que por parte dela de forma mais comedida, mas, mesmo assim — para alguém que não tinha o mais leve costume de consumir bebidas alcoólicas — ela estava com o corpo quente, sentindo o caminhar mais leve e os gestos mais soltos. Seu sorriso se desprendia com maior facilidade a cada gracejo dele. O assunto entre eles não tinha um tema específico; na verdade, era aberto e diversificado. Contudo, nenhum dos dois se atrevia a falar sobre si mesmos, mantendo uma aura de mistério sobre suas intimidades. Se por um lado, um não perguntava nada a respeito, o outro, por sua vez, não respondia tampouco.

Quando já estavam mais ou menos na metade do trajeto, onde cada um deveria seguir o seu caminho em direções diferentes, a chuva voltou a cair forte novamente, contudo, dessa vez, com fortes rajadas de vento e estrondosos trovões que balançavam o firmamento. Rapidamente o céu se cobriu de um negrume tenebroso, tornando o dia claro de, talvez, no máximo, umas duas horas da tarde ainda, em quase noite fechada. Logo, os dois caminhantes se viram obrigados a procurarem um abrigo. Por sorte, numa encruzilhada próxima, logo avistaram uma pequena capela de há muito tempo abandonada, mas ainda muito bem conservada pelo tempo. Há um velho ditado que diz: “…quando o morador abandona seu lar, logo a construção se desfaz. Contudo, em se tratando de uma construção sagrada, seu verdadeiro residente jamais se muda.”

Essa pitoresca construção ficava às margens da estrada e parecia ser um local bastante promissor para se abrigar de todo aquele aguaceiro que estava sendo despejado pelo céu e não dava mostras de se encerrar tão logo. Dentro da capela estava frio e muito escuro, entretanto estava seco e acolhedor. Com certa relutância, logo Emanoel conseguiu fazer uma fogueira com alguns pedaços de madeira que havia dentro da capela. Além de servir como lume, aquela pequena e improvisada fogueira serviria também para aquecer a bela jovem que tiritava de frio, pois estava ela completamente encharcada com a água da chuva. Suas roupas pingavam de tão molhadas, suas mãos estavam trêmulas, talvez de frio, ou quem sabe até mesmo por nervosismo, por se encontrar presa ali naquela capela, mais uma vez sozinha na presença de um homem.

Gardênia, naquele dia, trajava um belo vestido de algodão cru de tecido leve na cor bege claro, com delicados florais bordados à mão. Como estava molhado ao extremo, o tecido lhe colara ao corpo, deixando quase à mostra uma pele firme e macia. Devido ao frio, seus mamilos, ainda quase virginais, estavam acesos e deixavam uma sedutora protuberância no tecido molhado. Emanoel viu tudo aquilo com uma ardente volúpia que lhe queimava profundamente suas entranhas. Todavia, seu recato de homem sério e seu senso cavalheiresco lhe impediam de tirar alguma vantagem de uma donzela em que lhe confiara sua inocência, quando decidira acompanhá-lo por parte do caminho que ambos deveriam seguir na mesma direção.

A capela onde os dois estavam abrigados não era muito grande e, como a fogueira acesa ainda estava entre ambos, os dois se viram obrigados a ficarem muito próximos um ao outro. Emanoel, que sempre fora muito gentil e prestativo, ofereceu à Gardênia sua camisa que, estando por baixo de uma jaqueta de couro que ele trajava, havia se mantido seca, mesmo com toda a chuva que tiveram que enfrentar até conseguirem entrar ali naquela capela. Gardênia, por sua vez, obviamente tentou recusar a oferta, mas se viu obrigada a aceitar, por temer estar ofendendo tão nobre gesto de delicadeza e, logicamente, por estar realmente com bastante frio. Desde o primeiro momento que seus olhos se depararam com o corpo másculo do boiadeiro que adentrava a casa de Nhô Tunico naquele início de manhã, um estranho sentimento tomou conta de todo o seu ser. Um estranho arrepio correu-lhe por toda a sua espinha e um frio apoderou-se de seu ventre a ponto de ela pedir para que Daniel lhe servisse um gole de licor, para aquecer-se do frio.

O jovem e prestativo Daniel tinha-lhe muito apreço, pois havia uma grande amizade entre eles, e foi justamente devido a essa bela amizade que ele de forma muito cortês lhe servira uma satisfatória dose daquela perfumada e adocicada bebida. O licor, saído de uma garrafa recém-aberta, estava com o teor alcoólico bastante concentrado e quando Gardênia tomou aquela dose de um único gole, o efeito em sua garganta foi de imediato, aquecendo-a por completo, entretanto de nada adiantou contra as estranhas palpitações que estava sentindo naquele momento. Uma vez a cada mês, nas vésperas de suas regras, Gardênia sentia essas mesmas sensações estranhas, contudo logo eram controladas por um banho frio e um chá de camomila, mas agora, ali naquela capela, ela estava sentindo a mesma coisa. Sentia frio devido a estar bastante molhada, mas também sentia calor devido ao efeito dos licores consumidos de há pouco.

Sua cabeça estava zonza e de certa forma parecia que ela havia perdido o controle de suas emoções. Aquelas sensações, que lhe tiravam o sono vez por outra, estavam se tornando cada vez mais fortes ali naquele local e ficaram quase incontroláveis quando Emanoel despiu sua camisa e ficou com parte de seu corpo nu. Naquele momento, Gardênia que já sentia sua cabeça pesada, perdeu por completo o controle de suas atitudes e quando se levantou meio trôpega para receber a camisa que ele lhe entregava tão solicitamente, sentiu falharem as suas pernas. Emanoel ao perceber que ela poderia cair sobre a fogueira que estava imediatamente entre ambos, logo se lançou em seu socorro. Contudo, ao tentar ampará-la, o fez de forma muito desajeitada, pois foi surpreendido por não esperar por aquele incidente e, ao tentar segurá-la, involuntariamente uma de suas mãos se deparou com um seio rijo que se encaixou perfeitamente entre sua mão em forma de concha naquele momento. Gardênia, estando totalmente zonza e desequilibrada, caiu em seus braços.

No mesmo instante que ele, por um momento, chegou a imaginar que seria grosseiramente censurado por ela, Gardênia quase desfalecida em seus braços, languidamente ofereceu-lhe seus lábios e os dois se perderam completamente em um longo e ardente beijo. Ainda que, mesmo molhados e arrepiados devido ao frio, logo seus corpos se acenderam de tal maneira, como se a chama que emanava de dentro deles fosse proveniente das profundezas do próprio Tártaro.

Gardênia, a bem da verdade, nunca havia estado realmente nos braços de um homem, pois sua primeira e traumática experiência não passou de um ato de brutal selvageria, ela jamais havia sentido o verdadeiro calor de um corpo nu sobre o seu muito menos a volúpia de estar enlaçada a outro corpo por vontade própria. Por outro lado, Emanoel, mesmo sendo ainda bastante jovem, havia sido iniciado nas práticas do amor, nos braços de experimentadas matronas, pelos incontáveis prostíbulos que havia frequentando até então, pelas inúmeras cidades que, vez por outra, sua tropa acampava. Quando ele era ainda muito jovem, mas bastante vigoroso e ainda possuidor de poucas posses, sempre lhe sobravam as matronas já desprovidas de beleza e qualquer encanto aparente, muitas delas já em fins de carreira, que nem sempre lhe cobravam por seus préstimos, todavia o amavam com todo o fervor de suas lascivas almas, saboreando o frescor juvenil que emanava de seu corpo ainda em formação, mas, em troca, dando-lhe prazer gratuito e o ensinando os segredos mais íntimos da sedução.

Por ser conhecedor dos caminhos que levam ao prazer no leito, Emanoel assumiu logo o controle da situação. Gardênia totalmente entregue e sem controle algum sobre si mesma, se deixou conduzir sem relutância alguma, como se ela mesma desejasse aquilo mais que tudo na vida. A mesma camisa que deveria ter sido usada por ela para lhe proteger do frio foi jogada no chão daquela velha capela abandonada. Estando os dois já completamente nus, como chegaram ao mundo, logo o amor aconteceu. No início, Gardênia sentiu uma dor desconfortável, que logo cedeu lugar a algo que ela nunca sentira antes. O prazer por ela sentido era tão grande que, por breve momento, aquela penumbrosa e friorenta capela se iluminou por completo, como uma bela manhã de primavera. O deleite que ela estava sentindo era de tal forma inexplicável, ao ponto dela se esquecer de onde estava e até mesmo de quem ela era. Num pequeno lapso temporal teve um breve deslumbre do que poderia vir a ser o paraíso e de todas as delícias que ali, porventura, poderiam existir.

Emanoel após chegar ao êxtase, por um breve momento sentiu todo o seu corpo esmorecer e deitou-se ao lado de Gardênia sobre o piso frio e empoeirado daquela pequena capela. Ficaram ambos em silêncio por alguns minutos, ouvindo apenas o barulho da tempestade que caía de forma ainda bastante violenta pelo lado de fora, com estrondosos e retumbantes trovoadas que davam mostras que o firmamento desabaria sobre a terra a qualquer momento. Vez por outra o clarão dos relâmpagos iluminava a capela pelas frestas que havia, tanto nas paredes, bem como pelo telhado entre um lugar e outro. Quando aquele silêncio entre ambos já o estava incomodando, ele reuniu coragem para dizer algo, percebeu que Gardênia se deitava sobre ele e mais uma vez se encaixou em seu corpo. Sobre a luz bruxuleante da fogueira que já estava se extinguindo, pôde contemplar o belo corpo dela sobre ele, logo seu membro acordou para uma vez mais cumprir sua obrigação. Dessa vez foi Gardênia quem tomou o controle da situação, pois para o amor não há necessidade de experiência alguma, quando acontece de forma permissiva por ambos, a natureza age sozinha. E ela com delicados e sensuais movimentos cavalgando sobre ele, logo chegou ao êxtase novamente, dando lancinantes gemidos, e puxando seus cabelos num completo estupor de incontrolável prazer, assim o fez gozar novamente.

Emanoel, completamente saciado de prazer, se deu por satisfeito de tal forma que chegou a imaginar que, se sua vida terminasse ali, naquele momento, tranquilamente sem nenhum pesar na consciência se entregaria nos braços do anjo da morte. Mal sabia ele que aquilo aconteceria tragicamente muito em breve. Assim que se refizeram daquela deliciosa viagem ao mundo das delícias infinitas, logo se vestiram com suas devidas roupas e, quando intentaram iniciar um diálogo, perceberam que a chuva estava diminuindo e em poucos minutos cessou por completo, ao saírem do interior da capela puderam visualizar que o céu estava limpando e dava mostras que o tempo ficaria limpo pelo resto da tarde. Gardênia, após retomar o controle de todas as suas faculdades mentais e tomar conta de si mesma outra vez, se sentiu um pouco envergonhada com tudo aquilo, e um tanto quanto constrangida por ter se entregado daquela forma a um estranho e disse a Emanoel com uma voz que denotava certo arrependimento.

— Já está ficando tarde e meu pai certamente deve estar preocupado comigo, devemos retornar logo.

Emanoel, por sua vez, não disse nada e, assim que se desfez dos resquícios da fogueira que ainda fumegava timidamente, temendo que, se deixasse qualquer sinal de fogo dentro da capela, poderia haver um incêndio consumindo aquele abandonado lugar sagrado. Concordou com ela com gestos tímidos e logo retornaram a caminhada.

Devido a quantidade de chuva derramada até aquele momento, a estrada, que, na verdade, era apenas um caminho boiadeiro, feito pelo incessante trotar de animais de carga de um lado para o outro, estava muito lamacenta e escorregadia, ao ponto de Emanoel, calçado com botas de montaria e estar caminhando a pé arrastando sua mula atrás de si, teve que por duas vezes se dependurar nas rédeas do animal para não cair na lama. Gardênia, mesmo com seu semblante meio encabulado, talvez até arrependido, sorria timidamente com o sofrimento do boiadeiro em tentar manter-se de pé, enquanto a estrada caprichosamente insistia em lhe derrubar. Durante todo o restante do trajeto, seguiram ambos no mais absoluto silêncio. Ela demonstrava notório arrependimento e uma vergonha profunda. Ele, no entanto, mesmo estando saciado, trazia consigo uma crise de consciência, afinal, ela parecia ser uma moça direita e só se entregou a ele daquela maneira num momento de fraqueza, de certo modo ele aproveitara de sua inocência. Emanoel como era um homem casado e com três filhos para sustentar, nada tinha a oferecer a ela, e estava incomodado imaginando o que poderia dizer a ela se, na hora de seguirem direções diferentes, ela porventura lhe questionasse alguma coisa.

Caminharam por mais de meia hora, e o discurso de despedidas já estava pronto. Contudo, todo seu esforço em imaginar belas palavras de adeus, após tão agradável tarde junto a ela foi inútil, pois a ensaiada oratória não pôde ser proferida. Numa encruzilhada do caminho um pouco a frente, mesmo ainda ao longe, a silhueta de alguém pode ser identificada. Era um homem negro de estatura alta, que Gardênia logo reconheceu como sendo seu pai que certamente estaria vindo atrás dela. Gardênia contando com a vantagem da distância que havia entre eles e seu pai e tendo a certeza de que, de forma alguma, poderia ser ouvida por ele, disse de forma deliberada:

— Peço-lhe que tenha cuidado com suas palavras boiadeiro, meu pai é um homem muito sábio e perspicaz, diferente de qualquer pessoa que você possa ter conhecido na vida, certamente seria muito perigoso para sua segurança se ele viesse a desconfiar do que aconteceu entre nós esta tarde.

Ao se aproximarem do local onde seu pai estava a esperando de pé encostado junto a cerca, Gardênia logo foi apresentando o forasteiro a seu pai e dizendo em seguida que aquele gentil senhor lhe oferecera companhia e proteção pela estrada, uma vez que, bem como ela mesma, ele também era convidado de Nhô Tunico para o almoço. Sendo o caminho de ambos o mesmo até aquele local, ela decidira que aceitaria sua respeitosa companhia, para não ter de caminhar sozinha pela estrada durante todo aquele temporal. Emanoel mais que depressa, tirou seu chapéu e cumprimentou o pai dela. Com muita simpatia e respeito, contudo Pai Tomaz apenas lhe acenou com um leve gesto de cabeça, sem ao menos tirar sua cartola em resposta à cortesia recebida — cartola essa, muito bem-feita por ele mesmo, Pai Tomaz era o chapeleiro da região. A grande maioria de homens e mulheres da região usavam chapéus produzidos por ele, para todos essa era sua profissão oficial. Além do cumprimento frio e desprovido de simpatia, Pai Tomaz lançou ao boiadeiro um estranho olhar, medindo o rapaz de baixo acima como se estivesse tentando se lembrar de onde o conhecia. Emanoel se arrepiou por completo. Sua mula, até então, sempre muito pacata, deu um violento refugo levantando um forte e desesperado esturro, como se estivesse vendo algo sutilmente pavoroso, tão sinistro que, talvez, nem mesmo pertencesse a esse mundo.

Emanoel, que possuía aquele animal desde que ela nascera, nunca tinha presenciado aquele tipo de comportamento por parte dela, pois uma criatura que desde sempre fora extremamente dócil, naquele momento, sem nenhum motivo aparente se mostrava bastante assustada. Com gestos de afagos e ternas palavras, Emanoel logo conseguiu acalmá-la. Contudo, ainda assim, ela se mostrava impaciente e bastante arredia. Seu desconforto naquele lugar era bastante evidente, pois demonstrava claramente suas intenções de sair logo dali. Emanoel, por sua vez, também não tinha intenções diferentes, havia algo de muito macabro no ar, — tal como sua mula que sempre fora dócil até então —, de alguma forma ele o podia sentir. Se sentindo muito desconfortável, sem muito mais delongas, quisera ele logo se despedir, sem dizer quaisquer outras palavras que não fosse um simples adeus. Porém, antes mesmo de montar em sua mula e partir logo dali, teve a desagradável e arrepiante oportunidade de ouvir a voz do pai de Gardênia. Era um som bastante sereno, mas cortante como uma navalha. Sua voz cavernosa ao extremo era carregada com uma entonação que demonstrava claramente muita sabedoria, pois suas palavras eram proferidas de forma pausada e com perfeita dicção:

— O senhor demonstra estar bastante apressado cavalheiro. Talvez fosse melhor agir com menos celeridade. Diz um velho provérbio que, “… aquele que tem muita pressa na vida, logo se apressa a encontrar a morte…”.

Emanoel, com o corpo todo arrepiado, recebeu aquelas palavras, ditas de uma forma calma e num tom bastante ameno, como uma velada ameaça e, mais assustado ainda, ficou, quando Pai Thomaz deu alguns passos em sua direção olhando dentro de seus olhos e disse-lhe, acariciando a face de sua mula, que naquele momento ficou completamente inerte como se tivesse sido hipnotizada pela mais astuta das serpentes.

— O senhor, pelo que pude presenciar, parece ter muita destreza no trato com uma montaria, tomara que, também assim o seja, com sua própria vida! Porque, tal qual esse animal, que sem mais nem menos, de repente ficou arredio e violento, assim também é a vida, que quando menos se espera, muda de uma hora para outra e pode te jogar no chão. E algumas quedas, meu intrépido e destemido jovem, são de tal forma violentas, que se tornam quase que impossível de se levantar novamente. Agora que estou te vendo mais de perto estou me recordando de sua aparência e de onde eu o conheço. O senhor é mais conhecido como Mané Faísca o famoso peão de rodeio. Espero que o senhor possa também se lembrar de minha humilde pessoa, mesmo que já tenha passado algum tempo desde que travamos conhecimento um com o outro.

O já então assustado boiadeiro, ficou ainda mais desconfortável ao ouvir essas palavras, pois, por mais que se esforçasse ao extremo, não estava conseguindo se lembrar de onde pudesse ter conhecido tão estranha e sinistra criatura. A elegância de Pai Thomaz se fez presente uma vez mais, e logo lhe logrou sua dúvida ao dizer-lhe:

— Há uns cinco anos, talvez até um pouco mais, um cunhando seu, — acredito eu — veio à minha procura em busca de alguma beberagem que aliviasse uma moléstia que estava acometendo um de seus filhos. Pelo que me lembro na época, sua esposa estava de resguardo de uma menina muito viçosa que havia nascido naquela mesma semana. Pelo que me foi dito, a criança em questão, havia sido picado por uma serpente venenosa e agonizava em febre há mais de três dias. Mas o efeito da peçonha da serpente já estava passando e apenas lhe dei uma beberagem simples e ele logo se restabeleceu. Na mesma época, o senhor também se recuperava de uma forte gripe que havia pegado numa de suas viagens de tropa, por isso, estava em sua casa.

Emanoel disse que se lembrava do episódio em que seu filho mais velho havia sido ofendido por uma cobra jararaca e que um benzedor havia orado por ele e lhe curado da moléstia. Contudo, não estava conseguindo reconhecê-lo como o autor de tão nobre gesto, mas que de qualquer forma lhe era bastante grato por tamanha gentileza. Pai Thomaz em sinal de enorme senso de sociabilidade questionou-lhe sobre sua família. Sobre a saúde de sua senhora e o desenvolvimento de seus filhos. Perguntou-lhe também como a criança que ele atendera havia se recuperado após sua despedida. Ouvindo Pai Thomaz citar sua família e desejoso de saber novidades sobre sua esposa e filhos, Emanoel olhou para Gardênia de forma muito desconcertada e com as faces em completo rubor como se tivesse perante a mais ardente chama e, meio sem jeito, respondeu:

— Graças a Deus estão todos em paz. Realmente o senhor não se enganou quanto ao tempo que decorreu esse episódio, pois no último mês de maio minha filha Amélia completou cinco anos, mas ainda fomos contemplados com outro menino, somando um total de três filhos ao todo, o filho mais velho que o senhor conheceu juntamente com a recém-nascida e o meu caçula, nascido a menos de um mês pouco antes de minha partida. Ainda não tive o privilégio de estar muito tempo com ele. Como o senhor bem o sabe a vida de um pai de família não é muito fácil.

Ouvindo aquele desagradável diálogo entre seu pai e o até então encantador boiadeiro que havia conseguido seduzi-la com seu charme e sua música, Gardênia lhe desferiu um último olhar de adeus. Contudo, já não era mais aquele olhar lânguido que o havia enfeitiçado desde o primeiro momento em que o vira, e sim um olhar que demonstrava um ódio terrível e um profundo arrependimento. Com um sorriso bastante amarelo ela se esforçou ao extremo, mas não conseguiu disfarçar um involuntário suspiro, baixando os olhos levemente lacrimejados, perguntou a ele com a voz um pouco embargada pela decepção em saber a verdade sobre a vida dele.

— O senhor, em momento algum durante o dia de hoje mencionou que era um pai de família com mulher e filhos para cuidar.

— Com todo o respeito, minha gentil senhora, não me lembro de alguém ter me questionado nada a respeito de minha vida particular. Mas certamente, se alguém o tivesse feito, com todo o prazer teria uma resposta bastante satisfatória. Não vejo motivos que me levem a esconder que sou um homem sério e honrado pai de família.

— Senhorita, por gentileza. Ainda sou uma senhorita! Não sou compromissada com ninguém, excerto com minha própria honra e dignidade.

Respondeu ela, dizendo em seguida.

— Perdoe-me minha indiscrição. Apenas achei estranho que em momento algum o senhor tenha mencionado sua honrada família, mas o senhor tem razão, sua vida particular só ao senhor mesmo diz respeito. De qualquer forma, obrigada pela companhia pelo caminho, o senhor realmente foi muito gentil e bastante cavalheiro para comigo. Que Deus o proteja e o acompanhe em sua jornada.

Gardênia suspirou uma vez mais e olhou diretamente em seus olhos. Daquela vez o olhar daquela sedutora jovem tinha algo diferente, era um olhar de terrível ódio, mas também de um profundo remorso de alguém que olha para um condenado que caminha a passos largos para o cadafalso em seus últimos instantes de vida.

Emanoel, que havia ficado mais desconfortável ainda com toda aquela situação, decidiu que o melhor a se fazer era sair logo dali. Aproveitando a despedida de Gardênia, montou em sua mula, — que naquele momento estava novamente dócil e tranquila como sempre o fora —, e, após tirar seu chapéu e se despedir de forma meio desajeitada, seguiu seu caminho. Pai Thomaz, que de certo modo já sabia de todo o acontecido entre eles e vendo como sua filha havia ficado emocionalmente instável em saber que ele era um homem casado, — mas principalmente pela resposta indiferente que ele lhe dera quando ela o questionou sobre esse fato maliciosamente omitido, o acompanhou com o olhar, vendo-o se afastar. Gardênia, — mesmo com as entranhas ardendo pelo mais profundo ódio — ficou toda arrepiada vendo seu pai com a mão levantada, sussurrando alguma coisa ininteligível a ela, como se estivesse benzendo Emanoel pelas costas.

Após aquele estranho tipo de benção proferido por seu pai, iniciaram os dois a caminhada de volta em direção a sua casa. Gardênia caminhava ao lado de seu pai no mais absoluto silêncio, aguardando a qualquer momento que ele dissesse algo. Contudo, para seu desespero, Pai Tomaz estava calado e com o olhar distante, mirando o vazio, como se estivesse enxergando algo além das aparências. O mutismo de seu pai estava deixando-a bastante desconfortável. Em determinadas situações o silêncio se faz necessário, entretanto em outras ocasiões, pode ferir muito mais do que qualquer palavra que pode ser dita. Percebendo que ele nada diria, resolveu ela mesmo iniciar um breve diálogo e após escolher sabiamente as palavras disse:

— Logo após o almoço, assim que a chuva deu uma trégua, decidi voltar logo para casa, esse gentil senhor, de forma muito respeitosa, me ofereceu sua companhia, como nosso caminho seria o mesmo, pela boa educação que recebi do senhor meu pai, resolvi aceitar de muito bom grado. Contudo, mesmo caminhando com passo acelerado, ainda assim, a chuva nos alcançou quase em frente à antiga capela, onde o senhor um dia me disse que mamãe sempre rezava. Como o vento estava muito forte e os trovões estavam assustadores, decidimos que deveríamos nos abrigar dentro da capela e aguardar a chuva passar, ou pelo menos diminuir um pouco. Levando em consideração que raramente frequento lugares assim, aproveitei a ocasião para colocar minhas preces em dia, relembrando o que o senhor mesmo um dia me dissera, que mamãe também adorava demonstrar sua devoção no interior daquela simples capelinha.

Pai Tomaz, mesmo esboçando um misterioso sorriso amarelo, pareceu ter si dado por satisfeito, mas não deixou passar a oportunidade de expressar sua opinião sobre o que pensava sobre aquele gentil e prestativo cavalheiro.

— Homens como este rapaz, minha filha, são indivíduos persuasivos, charmosos e sedutores e na maioria das vezes, torna-se quase impossível perceber que atrás de sua fala macia e doce demonstrando muito boa vontade, se esconde um ser bastante lascivo e carregado de más intenções.

Gardênia sabia que ao mencionar o nome de sua mãe, rapidamente daria aquele impalatável assunto por encerrado. Astutamente ela aprendera que a simples menção de qualquer lembrança que rememorasse a memória de sua falecida mãe, — que ela mal conhecera, — era motivo para todo e qualquer assunto ser finalizado por completo. Qualquer assunto que se referisse a sua mãe era assaz doloroso para ele. Mesmo que aquele assunto tivesse sido momentaneamente encerrado, ainda assim, Gardênia continuou revestida de um ódio profundo, por ter sido tão facilmente enganada, mas, ao mesmo tempo, muito preocupada com o desenlace de toda aquela história. De certo modo, ela só teve um pouco de sossego quando os dois chegaram em casa, e naquele dia, seu pai não lhe dera nenhuma beberagem, assim como o fora quando, há muitos anos ela fora violentada pelo então falecido Coronel Guilhermino.

Após o acontecimento com o Coronel Guilhermino, — fato esse que, até onde é sabido, ninguém nunca ouviu nem mesmo comentários que pudessem delatar o acontecido entre ambos no riacho. O tempo foi logo passando, e entre uma conversa e outra, entre mulheres em suas intimidades, Gardênia ouviu dizer que para evitar uma gravidez indesejada, existem certas ervas medicinas, que ao serem preparadas de forma correta e ingeridas em tempo hábil, tem um efeito deliberativamente eficaz. Tempos depois de seu idílio com Emanoel, naquela chuvosa tarde, Gardênia entendeu com o peito arfando em remorso, que talvez tivesse sido melhor, que naquela mesma tarde, quando tudo aconteceu, ela tivesse logo relatado tudo a seu pai de um modo cúmplice e esclarecedor, pois resultado de sua infeliz negligência para com seu pai, foi algo drástico e determinante, tanto para Emanoel, — que se encontrou com o único e inevitável objetivo de cada ser vivo de forma triste e dolorosa, — bem como para ela mesma, que se viu obrigada a criar um filho sem pai, vez por outra tendo que enfrentar os olhares perscrutadores da raia miúda da região, que via aquela maternidade independente com certo ar de mistério e maledicência.

Assim que chegaram em casa, tanto ela, bem como seu próprio pai, cada um do seu modo, foram cuidar de seus afazeres cotidianos. Pai Thomaz foi para suas hortaliças com o intuito de ali terminar por aquela tarde entre suas ervas e se manter distante do olhar tristonho e quase arrependido de Gardênia. Ela por sua vez foi cuidar de seus afazeres domésticos, do jantar que logo foi preparado e servido em seguida. Sempre após a última refeição do dia, seu pai se sentava numa cadeira de balanço na varanda e ficava por um longo tempo fumando seu cachimbo, e tal como a própria fumaça baforada por ele, que ficava pairando sobre o ar de forma solta e preguiçosa, assim também era seus pensamentos e reflexões, que Gardênia nunca soubera quais eram. Seu pai sempre fora um homem taciturno e ensimesmado, contudo sempre muito carinhoso e atencioso para com ela. Ao mesmo tempo que era um pai bastante amável e sempre fiel naquilo que tange as funções de um progenitor, por outro lado, para com os outros demais, era um ser sombrio e desconfiado de tudo e de todos.

Gardênia, após servir o jantar e juntamente com seu pai comer, mesmo estando sem fome, para não demonstrar nenhum tipo de sentimentalidades fora do comum, tratou logo de organizar a cozinha, que deveria pernoitar limpa e organizada. Assim que findou seus afazeres, sentou-se também na varanda com uma costura no colo, e disfarçadamente enquanto fingia que cosia o tecido, vez por outra perdia o olhar ao longe na direção do rio, onde possivelmente estava o acampamento da tropa de Emanoel. A direção do rio por capricho do destino era a mesma do pôr do sol, que naquela tarde fora bastante melancólico, entre nuvens ralas, deixando faixas de vários tons diferentes, mesclando entre si, amarelo, laranja e vermelho acobreado. O crepúsculo rapidamente se desfez dando lugar a um céu parcialmente nublado, anunciando mais chuvas pela noite adentro, contudo, naquele momento, a parte do céu que estava parcialmente limpa apresentava várias estrelas que cintilavam ao longe, dando companhia a uma tímida lua nova, que se mostrava vez ou outra entre as nuvens soltas aqui e ali. Essa mesma lua também pairava sobre a direção do rio. Assim que a lua se despediu e foi iluminar outras regiões na direção do poente, Gardênia após pedir a benção a seu pai e também sua permissão, foi logo se recolher em seus aposentos. Antes de se deitar ainda abriu a janela de seu quarto, que dava para a direção contraria da varanda e o que viu deixou-a ainda mais melancólica. Se do lado do poente o céu estava parcialmente limpo e até mesmo estrelado, do lado do oriente a visão era aterradora. Escuras e pesadas nuvens se levantavam ameaçadoras, vez por outra iluminadas por terríveis relâmpagos que anunciavam uma forte tempestade que certamente não tardaria a cair sobre eles outra vez.

Apoiada sobre os cotovelos no umbral de sua janela, ficou bastante tempo observando o negrume da noite, e aquela noite em si, pareceu ser uma noite muito diferente e angustiante. Gardênia, de repente, começou a tremer todo o corpo, como se padecesse de uma febre terrível. Aquele estremecimento estranho não era do vento frio que soprava da direção da chuva que já se aproximava, muito menos por estar ela com trajes menores que sempre usava para dormir, mas de um sinistro frio que lhe vinha do fundo de sua alma. Um tremor cheio de maus presságios do triste e anunciado destino que se aproximava a violentos e apressados passos do desavisado boiadeiro. Naquele momento, ali na solidão de seu quarto, Gardênia em misto de ódio por tudo e pleno desespero, teve uma profunda vontade de chorar, de se apartar de tudo e de todos e de ir embora para muito longe dali, onde ninguém a conhecesse, nem muito menos sua história. Envolta a esses pensamentos torturantes na escuridão de sua alcova, após apagar o lume que parcamente iluminava o ambiente, após deitar-se em sua cama, logo adormeceu pesadamente…

Texto publicado na 3ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datada de março de 2024. → Ler edição completa

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