Assunto: Revisitação às Sombras do Passado
Querida Dra. Joana,
Espero que esta mensagem a encontre bem e revigorada. Como solicitado, venho compartilhar minhas reflexões após nossa última conversa, na qual a senhora sugeriu que me conectasse com minha criança interior. É um exercício desafiador, mas que me levou a revisitar um capítulo peculiar de minha infância.
Ao fechar os olhos, vi-me novamente de frente a igreja, a fachada de tijolos avermelhados, com três portas de madeiras, a do meio tem a imagem de Santa Cecilia em relevo, logo acima três vitrais na mesma direção que as portas, sua fachada tem quatro colunas retangulares e as duas do meio vão até o alto. Elevando meus olhos admiro a torre do centro que tem uma janela redonda, mais adiante, o campanário com um sino, do qual só me recordo de conseguir ouvir de perto ao meio-dia; olhando mais além tem uma pirâmide pontuda que termina com uma cruz, a igreja fica no bairro onde cresci conhecido como o mais quente do Rio de Janeiro. Ao lado daquela igreja tem uma praça e, sob o calor infernal e sufocante do bairro, era para mim um oásis de esperança que ecoou em minha memória. Naquelas tardes intermináveis, a praça tornava-se meu refúgio e, a igreja, meu castelo de segredos. Minha mente infantil criava um mundo onde Drácula, senhor das trevas, era meu salvador. Cada descida no escorregador, aquecido pelo sol, eu vislumbrava Drácula como meu guardião com suas asas escuras, alguém capaz de me proteger das aflições da minha infância complicada, pois sempre tive amor pelos cantos inquietos e escuros da minha imaginação, amor esse que eu não conseguia compartilhar com todas as outras crianças, por algumas delas não compreenderem que eu me via distante do comum. A igreja, imponente e majestosa, era o palco onde as promessas de Drácula ecoavam em coros celestiais.
Adentrar a igreja era como entrar num santuário de magnificência. No seu interior, altos arcos que se estendem ao teto, a ala central é espaçosa, ao andar mais um pouco eu posso ver o altar com uma cruz de madeira no centro com o Cristo morto, a direita dele São Sebastião, a esquerda Santa Cecilia, acima um vitral com o sagrado coração de Jesus que filtra a luz do sol. O cheiro bem suave, terroso e amadeirado que dava à igreja uma aura misteriosa, fazia-me imaginar se aquele não seria o cheiro do próprio Drácula. As sombras tremulavam, o coro preenchia o espaço e, em minha mente infantil, Drácula habitava as sombras dançantes entre os bancos. Essas memórias, mesmo após o peso dos anos, permanecem como se gravadas em pedra.
Chegando à juventude, os ecos da infância me acompanharam. Unia-me aos jovens alternativos na praça à noite, onde as sombras se entrelaçavam com risos, segredos sussurrados e vinhos baratos. Porém, mesmo estando entre eles ainda me sentia distante do mundo deles. Alguns, desrespeitosos, profanavam o lugar que para mim era sagrado. Eu, sempre fiel ao meu imaginário salvador, alertava aos meus companheiros que mesmo que não compartilhassem da minha veneração pelo local, ao menos o respeitassem, pois na minha mente a igreja era o refúgio do meu salvador e eu não permitiria que desonrassem. Os corredores da igreja, mesmo ao longo da adolescência, continuaram a me acolher. As sombras ainda dançavam, o coro ecoava, o cheiro mesmo que leve ainda era persistente e a presença de Drácula, mesmo que de forma sutil, na minha mente permanecia.
Hoje, na idade adulta, senti-me compelida a voltar à igreja. A vida adulta trouxe consigo dores e desafios, como você bem sabe, estou perdida nos corredores labirínticos da minha própria mente e as sutilezas das interações sociais entre os adultos fazem eu me perder em um mar de confusão que me levam a querer me refugiar no isolamento, então mais uma vez, busquei naquele santuário a promessa de alívio. E ao entrar, a grandiosidade do local envolveu-me como nos dias de infância, mas algo mudou. A sensação de que Drácula não apenas residia ali, mas dentro de mim, tornou-se inegável. E sem perceber, pronunciei as palavras: “Agora não mais eu vivo, mas Drácula vive em mim.” Foi como se eu tivesse feito um pacto com as sombras do passado, aceitando que o verdadeiro poder para enfrentar as dores da vida reside na compreensão do que vive dentro de mim, e agora eu sentia de forma real que meu salvador não apenas vive, mas vive em mim.
Espero que estas palavras possam fornecer uma compreensão mais profunda sobre o que ocorre dentro da minha mente, e que com esse relato, você possa me guiar nessa jornada de autodescoberta. Agradeço pelo seu tempo.
Com respeito e gratidão,
Vânia R. Campos
Valesca nasceu no Rio de Janeiro (RJ), cursa Ciências Biológicas, encontra-se no último período. Tem paixão por ciências, subcultura gótica, livros, seres sobrenaturais, ficção científica, cemitérios, igrejas e morcegos, ela também é voluntária em um projeto de divulgação científica…
Leia mais desta autora:
Finalmente comecei a ter boas noites de sono; fazia tempo que eu não dormia bem. Os chás que tomei com Ameritt…
Na minha maldição de viver muitas vidas, ainda tenho a vã esperança de encontrar, além dela, todas as minhas almas amigas…
Quando o lockdown começou, muitos falavam sobre o fim dos tempos; como negar isso? Eu via apenas o nada lá fora, apenas fragmentos de uma…
Observo da janela o vazio lá fora; tudo está abandonado, assim como eu aqui dentro. O silêncio é preenchido apenas pelo sussurro do vento…
Samuel sempre foi um entusiasta da tecnologia. Desde pequeno, ele tinha um fascínio por tudo que conectava humanos…
Tia-avó Antônia era considerada "a tia legal”; adorava crianças, animais, coisas estranhas. Morou por muito tempo com a tia Vitória, irmã mais velha…
Perdida na confusão dos meus pensamentos, me encontro prostrada nas ruínas da minha própria existência. Em um receptáculo onde os raios…
O cemitério daquela pequena cidade era um lugar de solidão. Todas as noites, ele era envolto em névoa, como se houvesse um manto translúcido cobrindo…
O jardim estava envolto em uma tranquilidade quase palpável, o ar estava fresco e carregado do aroma que as flores exalavam. A mulher, que a cada dia trazia...
Você pode me ouvir, | Chamando seu nome na escuridão? | Pode ouvir meus passos, | Ecoando nas paredes, | Enquanto corro em sua direção?...
Você me disse que eu teria um final feliz | Que haveria flores sobre mim | Que sobre à terra eu iria descansada permanecer | E que você não se esqueceria...
Sempre considerei minha existência entrelaçada ao tecido do universo, mais firme do que qualquer mortal ou imortal poderia imaginar…
31 de dezembro? — Antes que começasse a me ensinar algo, a criança de cabelos escuros veio até mim com um tecido de…
31 de dezembro? - Um tremular doloroso e frio me consumia, a criatura continuou lá me acalentando e esperando paciente…
Na penumbra da noite eterna, um jardim agora floresce no Sheol. O jardim…
Diário de Rute Fasano. 25 de dezembro — Acredito que você tenha perguntas — Ela fixou seu olhar no meu…
Estou há dez dias sem sair do quarto, são muitas as sensações…
A história dos vampiros remonta a tempos muito antigos, tão antigos que é difícil determinar sua origem precisa. No entanto, sua associação com os…
Na penumbra de um jardim oculto, úmido e sombrio, onde não existe tempo, onde todas as coisas sempre estão perto de findar, porém nunca se extinguem…
Plácido é o jardim onde posso me deitar | E simplesmente descansar | Alimentar as árvores com meu corpo, | Fazendo parte delas e elas de mim…
Diário de Rute Fasano. 12 de dezembro - Depois daquele encontro com Drácula…
No altar o odor pútrido paira no ar, | Nessa igreja de cadáveres esquecidos, | Seu jardim sagrado é o cemitério, | Onde os mortos estão escondidos…
Escrevo essas palavras sabendo que você nunca as lerá, | Mesmo assim mergulho em minha alma com ansiedade | Nesta noite turbulenta que agita a minha mente…
4 de dezembro — Ainda não tomei coragem para socializar com outros membros do Castelo, fico com receio de…
Minha querida A.: Penso em você constantemente, e isso tem me afastado de Deus, pois pensar em você é pecar…
21 de outubro — Envolvida na análise de vários artigos científicos sobre os processos biológicos da morte e sua…
Em um casarão antigo, e um tanto conservado, morava um solitário cientista obcecado em criar a noiva perfeita, ele se…
Espero que esta mensagem a encontre bem e revigorada. Como solicitado, venho compartilhar…
Condenei-me a viver entre paredes de concreto e pedra fria, quando minha mente queria fugir para as florestas, admirar a altura das árvores…