Fogo Santo na Igreja

“Porque o nosso Deus é um fogo consumidor.” Hebreus 12:29

3 de abril

Minha querida A.:

Penso em você constantemente, e isso tem me afastado de Deus, pois pensar em você é pecar contra ele. Tenho feito as peregrinações que eu disse a você que eu faria. Cada cidade que vou sempre tento alugar um local modesto perto de igrejas. Tenho feito bom uso do dinheiro que você me deu, além de alimentação, papeis e tinta, doações para os necessitados. Sei que você me alertou para usar esse dinheiro com sabedoria, mas alguns hábitos são mais fortes. Numa dessas peregrinações me instalei numa pequena cidade em busca de perdão, mas minha antiga natureza me impulsiona a frequentar as missas noturnas aos domingos e buscar perdão nos confessionários de madeira polida. Mesmo sendo uma criatura contrária à natureza, você sabe que ainda carrego os dogmas e rituais da fé católica. Desde a primeira missa que frequentei naquela pequena igreja pude perceber o caráter duvidoso do padre Marcos, cujas más intenções ele escondia por trás de uma fachada de humildade. Ao ter minha presença nas missas e no confessionário, uma mórbida curiosidade e desejo sobre mim, despertou nele. Fui em todos os dias possíveis da quaresma e o via me olhar com intenso interesse enquanto falava de jejum, arrependimento e penitência, naqueles dias de reflexão e respeito a paixão, a morte e ressurreição de nosso Cristo. Eu sentia o pecado latente nele por baixo daquelas vestes púrpuras. Observava seus olhares furtivos em minha direção enquanto lia a palavra, ou das vezes que eu participava da santa ceia e ele se deleitava ao me oferecer o corpo e o sangue de Cristo.

Me confessei com ele diversas vezes e o assunto sempre era você, e isso o cobria de curiosidade e ele me enchia de perguntas. Contei a ele como você é diferente de mim. Ama a liberdade e a natureza e acredita que a sua natureza é uma benção de entidades da floresta de onde veio. Disse que me apaixonei por você quando a vi há muitos anos em uma de suas visitas ao convento, numa das suas excursões, e sabia que estava pecando contra Deus só por admirá-la à distância. Falei da nossa primeira conversa, que descobri o quanto seu humor poderia ser profano, e mesmo escandalizada com algumas de suas palavras eu percebi que estava me afeiçoando de maneira proibida por uma criatura pecadora. Você recitou de cor 1 Coríntios 13, e fazendo eu me banhar em lágrimas e assim me apaixonar, você percebeu isso e quis compartilhar comigo a sua liberdade. Eu aceitei e logo após isso me arrependi, e você seguiu o seu caminho me prometendo que voltaria quando eu estivesse pronta. Depois disso não pude continuar fazendo parte das irmãs, pois elas perceberiam logo que eu estava afundada em pecado, e que as deixei com aperto no peito de quem deixa os membros favoritos de sua família. Segui minha peregrinação de expiação dos pecados. Me perdoe minha amada confessar essas coisas a ele. Não revelei mais do que deveria. De qualquer forma não faria diferença.

Eu tenho conhecimento da minha beleza, porém sempre me percebi com certa estranheza, mas usando as suas palavras, essa minha aparência suave, olhos doces, lábios rosados e a face mestiça com maçãs do rosto avermelhadas como se estivesse ruborizada o tempo inteiro, esse ar de inocência que te atraiu, também atraiu ele. Percebi o desejo do padre e isso me encheu de repulsa. Para mim um homem que escolheu amar a Cristo sobre todas as coisas cobiçar uma pessoa, seja ela mulher ou homem, e na pior das hipóteses crianças, é uma heresia imperdoável, ainda mais desejando a mim, uma criatura condenada por Deus! Se ele fosse mesmo um escolhido de Deus, já teria percebido que minha presença é maligna. Decidi confrontá-lo. No final da missa entreguei a ele um bilhete com essas mesmas palavras:

“Posso lhe contar com mais detalhes que ela fez comigo. Me encontre na igreja à meia-noite. — L.”

Então numa noite quase sem lua, marquei um encontro na igreja com Padre Marcos. Sobre a luz fraca das velas e o sutil odor de incenso me ajoelhei no genuflexório com meu terço em mãos e rezei. Pedi a Deus que minha impressão sobre o padre não estivesse correta e que ele não aparecesse ao encontro vendo naquele bilhete uma afronta a fé dele. Porém, mesmo atrasado, ele apareceu, tocou no meu ombro enquanto eu estava prostrada em oração e, quando olhei sua face, eu vi aquele sorriso repulsivo e herético de desejo. Impulsiva pulei sobre ele e o mordi, não havia planejado aquilo, eu juro, mas deixei minha natureza sombria tomar o controle da situação. Puxei seus cabelos para trás para ter um acesso melhor ao seu pescoço e mais uma vez cravei meus dentes, a ferida aberta bem grande, e o sangue saía como um fluxo intenso tingindo tudo ao redor, suguei e lambi todo aquele sangue. Mas minha natureza sombria não estava satisfeita apenas com aquilo. Olhei seu rosto em agonia, ele estava a ponto de perder os sentidos, sorri para ele e disse:

— Eu sou a sua salvação e, ainda que você morra, você viverá.

Repetindo o ritual que você havia realizado comigo, mordi meu braço com força e arranquei um pedaço da minha carne:

— Esta é minha carne. — Coloquei em sua boca e tive que usar dos dedos para conseguir fazer descer pela sua garganta, tapei sua boca com a minha mão e o fiz engolir. Quando vi a carne descer pela sua laringe, mordi novamente o braço para abrir mais a ferida e verter mais sangue:

— Esse é o meu sangue, para o perdão dos seus pecados.

Depois desse ritual, arranquei a grande cruz do altar, pedindo a Deus perdão, mas sem conseguir controlar meus atos, levei até ele e com a ajuda dos tecidos púrpuros que havia no púlpito e que cobriam as imagens dos santos, amarrei suas mãos e cintura na cruz, a base dela sobre o púlpito para que ficasse inclinada e invertida, ele não era digno de ser crucificado como Cristo, me afastei para olhar a minha obra com a companhia dos santos que agora não estavam mais cobertos. A cena era perfeita para a expiação de pecados. Abri as portas da igreja, pois o dia logo ia nascer. Os primeiros raios de sol já atravessavam os vitrais coloridos, queimavam aos poucos a pele do padre, seu grito ecoava pelas paredes sagradas da igreja, eram música para os meus ouvidos. Um odor de carne queimada se misturava ao cheiro sutil do incenso da igreja. Os gritos chamaram a atenção dos moradores da cidade que correram para a igreja e ficaram alarmados quando se depararam com a terrível cena.

O padre envolto em chamas, preso à cruz como um sacrifício profano de expiação de pecados. Enquanto isso eu me escondia no confessionário, observei com deleite a justiça sendo feita, enquanto pedia perdão a Deus por estar pecando contra a minha fé novamente. Eu juro, não era minha intenção fazer isso, pois de Deus é a vingança e a justiça, não minha. Depois de um tempo algumas coisas da igreja começaram a pegar fogo, aproveitei a algazarra para me esconder nos fundos até que fosse seguro sair. Fui para o quarto que eu tinha alugado, me lavei, fiz as malas e parti. A sociedade cuidou desse caso, estou surpresa de que os jornais o trataram como um suicídio, mesmo assim esse ato teve consequências. Soube através de um membro que você partiu para uma viagem de pesquisa de grande relevância. Deus é testemunha do quanto eu admiro seu trabalho e que eu não a incomodaria se não fosse algo de extrema importância. Rezo para que essa carta chegue a você em segurança onde quer que você esteja e que você possa interceder por mim em meu julgamento. 

Com amor L.

P.S. Você sempre está nas minhas orações.

Texto publicado na 3ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datada de março de 2024. → Ler edição completa

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