Sangue Materno

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” — João 8,32

Talvez Jesus esteve certo quando disse que a verdade liberta. Mas depende muito de que verdade seja esta, pois Nietzsche dizia que a verdade era subjetiva. Napoleão foi um pouco mais além ao dizer que a verdade é apenas uma mentira contada várias vezes. Aquilo que diz respeito sobre a verdade da minha vida, se outra pessoa me contasse, eu duvidaria na hora. Para ser bem sincero, em muitas ocasiões me pergunto se realmente tudo que presenciei com meus próprios olhos realmente aconteceu. No entanto, sempre que me olho no espelho, aquilo que vejo, ou melhor, o que não vejo, acaba por me convencer que a verdade sobre minha vida não conseguiu me libertar, – muito pelo contrário – pois hoje sou mais prisioneiro do que qualquer criminoso um dia possa ter sido. Passo os dias fugindo e as noites me escondendo...

Até onde me lembro de minha infância, eu sempre fui um garoto muito introspectivo e insociável ao extremo. Talvez pela minha estranha aparência. Não que eu fosse um monstro, –não naquela época – mas, eu era bastante diferente. Olhos azuis acinzentados, cabelos alaranjados da cor das mais ardentes labaredas, orelhas pontudas e uma pele branca como neve, com algumas sardas no rosto. No entanto, o que mais assustava as outras crianças da minha idade – e em certas ocasiões até mesmo os adultos – era minha inteligência aguçada. Além, é claro, do fato de que de forma alguma eu poderia receber qualquer pessoa que fosse em nossa casa.

Minha mãe havia proibido expressamente qualquer tipo de visitas. Até onde eu sabia sobre sua vida, dizia ela que era garçonete, numa boate que ficava há alguns quilômetros de nossa cidade. Trabalhava quase a noite toda e dormia durante o dia, – ou pelo menos ficava trancada em seu quarto. Não tenho nenhuma lembrança de ter visto minha mãe em nenhuma ocasião durante o dia. Ela sempre saía depois do pôr do sol e retornava para casa antes do amanhecer.

Sempre que tinha algum tipo de evento na escola durante o dia, ela jamais comparecia, mas se fosse a noite estava presente quase sempre. Seu quarto era um território proibido, se mantendo trancado todo o tempo. Se fosse durante o dia, ela estaria repousando e incomodá-la estava fora de conjecturas; à noite, quando ela saía, ela o deixava trancado. Como uma criança, eu sempre tivera uma enorme curiosidade em saber o que havia naquela alcova, mas jamais ousara desafiar uma norma estabelecida por minha mãe.

De certa forma, minha mãe era bastante ausente em minha vida, mas se preocupava muito com meu bem-estar. Nossa geladeira se mantinha sempre cheia e nunca tive que reclamar sobre um tênis rasgado ou uma roupa que tivesse velha demais. Em questão de bens materiais, nunca me faltara nada. E quando, certa vez, fui motivo de piada para meus colegas que caçoaram de mim dizendo que além do fato de meu pai ter me abandonado, minha mãe também não se importava comigo, ela se fez presente da melhor maneira possível. Esse fato se deu numa festa de noite de Halloween. Era um baile de máscaras promovido pela escola. A maioria dos pais e das mães de meus colegas estavam presentes. Para surpresa de todos, por volta das dez horas da noite, minha apareceu na festa causando certo alvoroço. Pois, estava ela realmente esplendorosa.

Eu mesmo, que era seu próprio filho, quase não a reconheci vestida daquele jeito. Todas as lembranças que eu tinha de minha mãe até então, era de uma mulher chegando do trabalho, cansada ao extremo, e ávida por se recolher aos seus aposentos para um longo repouso, ou então, ela saindo apressada com seu uniforme de garçonete, sempre de cabelos presos e nenhuma maquiagem, exceto um simples e pálido batom nos lábios. Naquela noite pude vislumbrar a verdadeira face de minha mãe e como sua beleza era inebriante.

Era ela uma mulher alta, de corpo bem-feito, com belos seios rijos e um quadril largo. Seus belos olhos eram brilhantes e de um castanho claro como a cor do mais puro mel. Sua boca de lábios carnudos estava delineada por um batom, de um vermelho vivo e brilhante. Quando falava, além de expelir um refrescante hálito de menta, deixava à mostra dentes perfeitos e brancos como o mais alvo marfim. Seu sorriso discreto, mesmo sendo um tanto quanto enigmático, era atraente e sedutor. Para completar o conjunto daquela magnífica obra da natureza, tinha ela uma vasta cabeleira de uma cor negra e brilhante, como uma noite sem luar. Os cachos de seus cabelos estavam revoltos como as ondas de um mar bravio. Ao contemplar todos os ínfimos detalhes daquela magnífica beldade, parada ali no meio do salão, quase todos os presentes ficaram basbaques e sem palavras, como se um terrível feitiço tivesse paralisado a todos aqueles que a contemplavam.

Por onde ela passava ficara a marca de um inebriante perfume, era um doce e marcante odor de rosas que lembrava uma fresca manhã de primavera. Enquanto ela suavemente caminhava até onde eu estava, quase todos que a viam ficavam meio que hipnotizados, acompanhando seus movimentos que mais pareciam precisos passos de uma dança ritualística, como se pairasse sobre o chão sem ao menos tocá-lo. De acordo que, ao se virar de um lado para o outro, o tecido de seu vestido bailava no ar como se fosse uma pluma, solta ao vento. Era um comprido vestido negro de belo talhe e de corte fino, feito sobre medida, que lhe associava perfeitamente ao seu corpo, como se fosse, na verdade, uma segunda pele que cobria seu belo corpo de curvas perfeitas.

Meus colegas ficaram estupefatos quando ela me tirou para dançar e começou a bailar comigo pelo salão. Até aquele dia, – ou melhor aquela noite – eu sempre fora motivo de chacota entre meus colegas e acho que até de alguns professores, mas depois daquela apresentação apoteótica de minha mãe naquele meio social, minha vida mudaria de forma bastante substancial. Meus colegas quiseram se tornar meus amigos e meus professores começaram a me tratar de forma bastante diferente. Alguns até mesmo me recomendando lembranças a minha mãe. Aquela noite foi a primeira e última vez que eu e minha mãe fomos vistos em público juntos...

Alguns anos se passaram e logo me tornei um homem adulto. Após ter terminado meus anos de escola, pouco antes de matricular na faculdade onde eu pretendia cursar belas artes, decidi fazer uma visita surpresa no trabalho de minha mãe, naquela noite que eu imaginava ser seu aniversário. Como eu já era maior de idade, não haveria problemas em frequentar um ambiente para adultos. Imaginei, em minha reles inocência, que minha mãe poderia gostar da surpresa. No entanto, no final, o surpreendido foi eu mesmo.

Certamente aquele não era o melhor lugar do mundo. Contudo, também não se poderia dizer que era o pior antro de perdição já existente. A parca iluminação elétrica, proveniente de duas simples luminárias dispostas nas paredes laterais, era um tanto quanto insuficiente, quase ao ponto de uma penumbra completa. A semiescuridão do ambiente nem mesmo era notada por aqueles que ali estavam, pois quase todos os frequentadores de botequins, em sua grande maioria, optam pela escuridão. Sabe-se que em momentos de tristeza e solidão, muitos preferem as trevas, para tentarem se esconder de seus próprios problemas.

Na silenciosa penumbra de um bar, um indivíduo qualquer pode, sob a sombra do anonimato, tentar se esconder de qualquer problema que lhe assole ou de qualquer pessoa que o persiga. Só não poderá, jamais, esconder-se de si mesmo. Na sufocante atmosfera onde os odores de bebida e perfumes baratos se misturam com a constante fumaça de tabaco pairando ad eternum no ar, sempre há alguém disposto a narrar alguma história, se porventura houver algum ouvinte interessado. Algumas dessas histórias podem ser verdadeiras, outras nem tanto. De certo modo, poder compartilhar algo, não importa se seja verdadeiro ou não – mesmo que seja para desconhecidos – é uma tentativa desesperada de aliviar um peso na consciência.

Era uma noite como outra qualquer, sem muitas novidades, o movimento estava amainado devido ao tempo. Enquanto na rua estava até um pouco frio, devido a chuva fina que caía constante, dentro do bar estava quente e abafado, devido as janelas estarem todas fechadas. Parece que os clientes eram os mesmos de sempre e tudo parecia estar concorrendo para mais uma sorumbática noite como outra qualquer. No ambiente reinava um silêncio quase tumular, sendo interrompido, vez por outra, pelo som de bolas de bilhar, o barulho do carteado e pelo som de copos sendo reabastecidos. As canções que se alternavam num velho rádio no alto de uma prateleira eram quase inaudíveis como se fosse um fúnebre fundo musical.

Toda aquela paz fora interrompida pela minha chegada, pois assim que atravessei os umbrais daquele ambiente logo me encaminhei para o balcão e logo me dirigi à bela garçonete que naquele momento estava de costas para a porta e não me viu quando entrei.

– Boa noite, minha amada Rainha! – Disse entregando-lhe um buque de rosas vermelhas e uma caixa de bombons finos que eu comprara com meu próprio dinheiro.

Minha mãe ficou bastante lisonjeada com o presente, mas ao mesmo tempo um tanto incomodada com minha presença ali naquele ambiente. Ela jamais imaginara que algum dia eu pudesse estar ali. Sem me perguntar o que eu queria beber, abriu uma garrafa de refresco e o colocou na minha frente me servindo um copo em seguida. Naquele momento me senti um tanto quanto ofendido, pois aquele ambiente era uma boate, com belas garotas e gente adulta, fumando e bebendo. Eu era o único tomando um simples refrigerante. No entanto, eu jamais ousara questionar minha mãe em qualquer coisa que fosse, e não seria naquela noite – supostamente sendo o seu aniversário – que eu o faria. Tomei aquele refresco e já estava me encaminhando para a saída quando o pior aconteceu.

A noite tinha tudo para transcorrer tranquilamente até a chegada de um estranho valentão ávido por uma confusão. Antes de qualquer coisa, já entrou no bar falando palavras de baixo calão num tom bastante alto e muito desagradável. Ao passar próximo à mesa de bilhar, esbarrou num dos jogadores atrapalhando a jogada, o que fez com que uma discussão se iniciasse, mas logo fora amainada quando o valentão mostrou o cabo de uma brilhante pistola. Ao sentar-se, deu um forte soco no balcão que quase derrubou a garrafa do refresco que minha mãe me servira, pensei comigo que aquilo não terminaria bem. Quando minha mãe, muito prestativamente, veio lhe servir, ele logo lhe mostrou o seu lado mais abjeto após colocar a arma sobre o balcão e se dirigir a ela em seguida de forma bastante desrespeitosa:

– Belezoca quero uma bebida e uma beijoca.

– Boa noite senhor. Qual bebida poderei lhe servir? – Disse ela muito educadamente.

– Daquelas que se bebe! Sua piranha. E para sua informação, Senhor está no céu.

– Peço perdão senhor, mas são normas da casa o tratamento respeitoso que damos a todos os nossos distintos clientes. Contudo se me disser o seu nome terei imenso prazer em chamá-lo da forma que preferir. Insisto em perguntar-lhe qual é o tipo de bebida que deseja? – Disse ela mais uma vez, num tom bastante sereno sem deixar se abalar pela indelicadeza do cliente.

– Quando eu lhe disser o meu nome terá mais cuidado na forma como fala comigo. Pensei em tomar uma cerveja, mas posso beber qualquer coisa que você me sugerir. – Respondeu ele.

Quando ela foi lhe servir, delicada e com muito bom jeito, ele a segurou pelo braço e a arrastou para próximo de si tentando beijá-la à força. Quando ela tentou recusar já se viu na mira da arma que ele apontava entre seus seios, com a séria intenção de atirar se fosse necessário. Como que por um passe de mágica, vi minha mãe saltar pelo balcão e dar a volta por trás daquele indecoroso cliente e em questão de segundos tomar-lhe a arama de sua mão. Um silêncio se fez por completo naquele instante como se o próprio tempo tivesse parado. Todos ficaram bastante atônitos com o que poderia vir a acontecer naquele tranquilo bar. 

Num ímpeto de selvageria, o estúpido cavalheiro que havia adentrado aquele ambiente para perturbar a paz ali existente, tentou se desvencilhar de minha mãe, mas a força com que ela o manietava parecia ser de dez homens. O próprio valentão não acreditava no que estava lhe acontecendo, pois por mais que insistisse em se desvencilhar do abraço de minha mãe, soltar-se dos braços dela parecia algo impossível. Naquele momento, tive a estranha impressão de ter visto várias pessoas se aproximando de todos os lados. No entanto, o semblante daquelas pessoas havia mudado bastante. Seus olhos estavam vermelhos como duas chamas incandescentes e suas bocas estavam com uma aparência terrivelmente famintas com enormes dentes despontados por todos os lados, como se fossem feras selvagens.

Como em toda minha vida jamais havia presenciado uma cena como aquela, fiquei atônito e sem reação, mas de alguma forma consegui forças para sair correndo quando vi minha mãe se transformando numa besta horrível e se lançado sobre o pescoço daquele infeliz. Rapidamente muitas coisas sobre minha mãe se tornaram claras para mim...

Descobri da pior maneira possível quem – ou que – minha mãe realmente era...

Texto publicado na 7ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de julho de 2024. → Ler edição completa

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