O Sobrado Do Meu Avô
A casa do meu avô não possuía nada em sua aparência que tendenciasse quaisquer amedrontamentos da minha parte ou da parte de qualquer indivíduo. Era um sobrado bem bonito, no que diz respeito ao seu esqueleto, porque, por dentro, tinha quase nada; a casa não estava terminada tal como o planejado, faltava as mobílias sob medida, faltava o gesso nas paredes pintadas de branco. A casa era bem clara, tudo meio minimalista. A porta do meu quarto, por exemplo, só foi colocada após umas duas semanas em que eu estava morando lá. Uma porta comum de madeira leve. Com este cenário, eu não imaginava que vivenciaria situações de terror durante minha estadia, a qual durou bastante, visto que morei na residência durante quase toda a minha graduação.
Tais momentos terríficos, no entanto, não foram extremos — talvez, se o tivessem sido, teriam criado menos traumas. Parece-me que situações de horror que confundem nossa mente e perturbam nossos sentidos de maneira tênue têm um impacto gigantesco em nossa vida, mais do que ver o próprio demônio em pessoa. E assim foi com a casa de meu avô. Era um sobrado grande e, por vezes, eu ficava sozinha em seu interior, dado que meu avô trabalhava de madrugada junto com meu tio — eles mudavam de horário a cada temporada, no entanto, a maioria das vezes estavam trabalhando nas madrugadas. Na época em que me mudei eu estava prestes a completar dezoito anos e por lá vivi até os vinte e um. Como mencionei, as situações bizarras não foram descomunais; contarei as mais importantes apenas para que você compreenda a tensão que vivi em certas situações, algo que não se repetiu quando me mudei para minha atual residência.
Ao chegar no sobrado, eu ainda possuía uma dificuldade que desenvolvi na infância, tratava-se da dificuldade de dormir de costas para a porta do quarto. Isso acontecia porque, entre meus seis a dez anos de idade, eu sentia continuamente uma “presença” atrás de mim quando eu passava pelo corredor da casa da minha avó — a qual morei quase toda a minha infância e adolescência. Isso se transformou nesse temor de adormecer com as costas desprotegidas e, ao contrário do que eu imaginei, a sensação piorou quando me mudei para a casa do meu avô. Para contextualizar melhor, esse sobrado ficava no interior de São Paulo e era do meu avô por parte de pai, enquanto minha casa na infância era de minha avó por parte de mãe.
Não considerei esse receio uma problemática do local, mas não pude deixar de perceber que havia se acentuado. Mesmo com a porta trancada, era extremamente angustiante adormecer de costas para ela, aquela “presença” era insuportável. Como eu já era mais adulta do que criança, acabei me condicionando a não sentir aquilo, desviava a atenção, dormia com travesseiros ao redor e acreditava profundamente que se tratava de uma fantasia da minha cabeça. No entanto, houvera outras situações perturbadoras, uma delas foi sentir a presença na sala de estar enquanto eu usava o computador principal da casa. Eu estava sozinha e conversava com um amigo pelo aplicativo de mensagens online quando percebi que alguma coisa estava estranha naquela noite. Eu lembro que o escrevi: “Estou sentindo um tipo de presença estranha atrás de mim”. O computador ficava em um móvel encostado na parede da sala e, atrás de quem o utilizava, ficava a porta de entrada da casa e a cozinha que não possuía porta. Bem como o lavabo do pequeno corredor e a porta do quarto de hóspedes — que na época, meu avô que usava.
Eu olhava para trás e nada via. Não havia ninguém além de mim. Estava tudo aceso, todas as luzes; e as portas estavam trancadas — todas as portas. Além disso, eu mantinha a televisão ligada, para fazer algum som e me dar a sensação de companhia, uma vez que a casa era profundamente silenciosa. Mesmo assim, aquela bizarra presença, naquela noite, foi aterradora. Tentei, mais uma vez, acreditar que era coisa da minha cabeça, mesmo sabendo que a tal “presença” só era perceptível quando eu me deitava na cama de costas para a porta do quarto ou quando eu passava no corredor da casa da minha avó, eu nunca a havia sentido assim, enquanto estava em um cômodo comum. Lembro que meu amigo me respondera: “Pega o sal” e eu dei risada, embora ele parecesse falar sério. Depois entendi o poder do sal para afastar maus espíritos, segundo algumas religiões esotéricas. Mas, como já mencionei, eu tentava não acreditar no que eu sentia, eu tentava com bastante afinco. Mesmo assim, naquela noite, deixei o sal por perto.
Outra vivência estranha fora de um sonho perturbador que nunca esqueci. Sempre fui muito sonhadora, isto é, até hoje tenho dificuldades de dormir por hiperestimulação da minha mente; tenho contínuos sonhos lúcidos com dezenas de histórias longas e personagens quais parecem completamente independentes de mim, como se fossem mesmo filmes passando pela minha cabeça. Não era diferente na época. No entanto, por alguma razão, de todos os milhares de sonhos e pesadelos, aquele sonho em específico, ficou marcado para mim. Nele, eu saía do meu quarto e tudo estava bem escuro; descia, então, as escadas devagar e, quando chegava ao último degrau, com a visão perfeita da entrada do sobrado, do arco da cozinha e de parte da sala de estar; eu via uma criatura grotesca com cabeça de boi e olhos vermelhos; olhando fixamente para mim. Estava em duas patas, quando, para um animal, deveria estar em quarto. Era gigantesca e, sinceramente, só de me lembrar já me dá um profundo desconforto. Alguns dizem que este símbolo, o boi, poderia ser um alerta de situações difíceis a serem enfrentadas no futuro, como um aviso do inconsciente. Eu não sou supersticiosa, também não sou religiosa; mesmo assim, levando em consideração tudo o que vivi naquela época, até que faz sentido esse significado.
O sobrado possuía um sótão, subíamos até ele por uma escada comum de alumínio, aquelas clássicas escadas de construção ou de trabalhos elétricos. Não possuía nenhuma barreira, era um buraco quadrado no teto do quarto do meu tio e você podia subir por essa escada que ficava ali. Meu tio usava o sótão com frequência para jogar RPG. O problema é que aquele cômodo ficou sem porta por longos meses e aquele maldito buraco escuro no teto do quarto dele me amedrontava. Por isso eu mantinha a luz acesa, de todos os aposentos; e todas as portas que existiam se mantinham fechadas — quando eu estava sozinha na casa. Esse buraco no teto era perturbador; diversas vezes sonhei que algo mórbido saía daquela escuridão do sótão — algo que eu não via, mas sentia; e eu evitava subir lá. Talvez você questione ser, tudo isso, fantasia de uma mente criativa e, bem, se hoje sou escritora de terror, decerto que tenho uma mente criativa; mas essas situações que vivenciei, tenho certeza, foram culpadas de minha inclinação para esse tipo de escrita sombria.
Com o passar dos meses e dos anos, meu quarto era o único cômodo em que eu não me sentia mal. A sensação foi aumentando de forma absurda, então eu passava quase todo o tempo fechada no meu quarto e evitava ao máximo todos os outros cômodos da casa, em especial à noite. Era um incômodo espiritual, diferente de um medo qualquer, mesmo com as luzes acesas, mesmo com outras pessoas presentes. Depois de um tempo outras pessoas vieram morar na casa, aí deixou de ser mal-assombrada e passou a ser mal-frequentada rsrsr. Brincadeiras à parte, eu nunca esqueci nada disso e me pergunto até hoje o que significava tudo aquilo e porque só eu parecia atormentada por tais sensações bizarras. Sei que pode não parecer tão terrível, porém, para mim, era sufocante e até hoje, sempre que sonho com a casa, é um pesadelo. Hoje mesmo, só estou escrevendo isso porque tive um. Eu estava gravando um curta-metragem, eu parecia morar na residência. Tudo estava muito escuro e eu gravava, falava com a câmera. A casa estava diferente, mas era ela, era o mesmo sobrado.
Todavia, ao descer as escadas, eu retornava para o mesmo lugar da casa em que eu estava. Era sem fim. Como um espaço liminar. Eu descia e estava sempre naquele pequeno hall entre o quarto que era meu, o que era do meu tio e o que se tornou o quarto do meu avô. Então, no sonho, no quarto do meu tio havia, digamos, uma pessoa esquisita, com olhos fundos, uma feição macabra como de um psicopata. E ele chegava cada vez mais perto de mim. Essa pessoa tem nome e face reais, ela existe, mas não a mencionarei aqui por ser, afinal, um relato real da minha experiência e, portanto, essa pessoa pode facilmente ler o que escrevo e se identificar com as situações narradas. Por hora apenas posso dizer que o indivíduo era tão bizarro quanto no sonho que tive e ele estava sempre por perto, parecia um abutre — como sempre pareceu, só que pior; então, além das paranormais sensações da casa, eu ainda tinha que lidar com um tipo de stalker impertinente que tinha acesso à casa e, sinceramente, era fácil ter acesso àquele sobrado, porque na época nem a porta da frente era trancada — passou a ser trancada comigo. Estou feliz por hoje não viver mais lá e me apego às boas lembranças para que essas coisas ruins não sobressaiam. Pelo menos, tenho histórias para contar.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…