O Ocaso da Existência de um Pecador em Preces à São Miguel

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

À Morte, sacrifico tais últimas palavras, derramando-as na lamúria dos lábios que já não mais murmuram velhos dizeres. O que resta-me, à exceção da despedida em sílabas mudas, das sentenças silenciosas e dos discursos incapazes de alcançar mesmo aqueles que habitam a necrópole de espíritos? Último, só e derradeiro suspiro, mesmo tal penúria a Morte usurpa-me, entregando-me às sombras daqueles que já não mais vivem. Trêmula, irrequieta caligrafia que mancha-se pelas rubras lágrimas de minha finada vida, redija minha condenação à morada do mal, ao passo em que estes dedos trêmulos que bruxuleiam a linguagem dos vivos em escarlate tinta entregam-se ao ofício fatal. Eis-me já sepultado, o mero esqueleto do que já foi um homem. Eis-me neste recinto, um cadáver herético, ausente.

E, ainda que encontre-me morto, envenenado em meu gélido sangue, padeço ainda entre os vivos, entregando-me às trevas em um corpo corrupto; triste, soturna é a febre desta carcaça que sou eu. Qual é a natureza de minha angústia, se não a enfermidade latente do cessar de minha existência? Doce, intoxicada morte, por que constringe-me à miséria? Por que não entrega-me, finalmente, àquele que navega por entre o rio das almas, onde sua balsa viaja com destino ao último adeus? Por que, por meu próprio e terrível infortúnio, reduz-me ao vago, temoroso martírio? Ah, oculta Morte, conte-me, bendiga-me com a razão para tal tormenta, tal tempestuoso sofrer? Se nem mesmo as sacras escrituras podem conceder-me mais a benção da vida, anseio, enfim, pelo calar de meu âmago, por meu infausto fim! Não obstante, para este crápula pagão, resta somente a morte enquanto tortura, enquanto um vagaroso pesar que passar-se-á por tantas noites até que a última gota deste sangue maldito chova perante o abismo, o horrível averno.

Fúnebre, melancólico e pálido é o crepúsculo. É o cinzento anoitecer dos mortos a acolher este tirano em sua residência. O entardecer lúgubre respira fracamente, em murmúrios tétricos de um cancioneiro cinza, apartando-se em afresco tão esquálido; a este herege, o poente perante seu falecimento é letárgico. Branco é o véu que vela meu leito de morte e, no entanto, tão cadavérico é também o santo céu na ocasião de minha partida. Por entre o ermo castelo a colapsar junto àquele que porta sua hereditariedade, a névoa peregrina em tons lívidos; as cinzas nuvens de neblina cegam mesmo aos anjos quando em seu encontro com as cores negras do anoitecer que arrebata. Velhas, arcaicas pedras de uma fortaleza que antes abrigara a austeridade, neste presente acolhem ao desafortunado maldito que as possui. O breu da última noite alcança-me, ocultando todo e qualquer resquício de vida que quiçá, apenas por um milagre do santíssimo, ainda resiste através do balcão da torre de minha fortificação. Por todo o forte, há apenas a ruína; a maldição do fim perece em meu castelo. O vento respira em lentos sopros contra minha face rasgada pela terrível expressão da desgraça. Solitário, amparando-me no arco gótico da sacada por onde o horizonte sinistro atravessa, contemplo, em penosos ares, o desfecho adverso que os céus atribuíram-me como penúria.

De que um errante é digno? Cousa alguma, senão este epílogo teatral agourento que sufoca-me. O que, além de uma tragédia que banha tudo com miséria? É na obscuridade, em meio ao absoluto blecaute, que minha figura remanesce, com vivências não mais. Vilão, tirânico soberbo, sou eu, que não mais hei de viver em plena ambição e poder, pois tais doces sentidos, com toda sua malícia, suscitam todas as angústias de meu drama. Por minha ganância mundana, corrompi-me e, por minhas barbáries, a divina providência há intervindo, para que este diabo desprezível pudesse purgar-se por suas atrocidades. Minha tragédia é apenas uma devida penitência ao homem cristão. 

Os adversos fatos que conduziram-me até este terrível presente constroem-se como uma narrativa. Por séculos, aqueles de meu sangue dedicaram-se às conquistas. Por uma década, os sucessos foram-me incontáveis; ainda que proveniente de terras distantes, além de onde nossas águas marítimas alcançam, por todo o Reino das Astúrias, meu nome fez-se ouvido e reconhecido. Entretanto, toda a vitória apresenta-se a um custo; a infelicidade daquele que é arruinado em batalha. Mesmo o mais devoto cavaleiro da Santíssima Maria, iluminado e protegido por suas bênçãos, não está hábil a conduzir uma vida composta de triunfos. E, ante à minha iminente derrota, apenas reduzi-me à aceitação, acomodando-me com a certeza do fim. De fato, as más notícias cruzam as montanhas e costas com impressionante velocidade; o assalto ao castelo foi-me inevitável e, débil e com um exército reduzido a um mínimo número, assisti à minha queda perante um inimigo imortal; o orgulho que assassina impiedosamente os homens presos à vaidade. Terríveis, deploráveis noites de sangue e batalha, uma guerra perdida em meu próprio domínio. Todavia, mortal algum poderia ferir-me tão impetuosamente quanto a própria noção de minha desgraça que prevaleceu na mente e, disposto a não ceder à soberba, concedi-me, com maestral arrogância, a vanglória de ser vitimado por ser algum, se não minhas próprias mãos. Ignorante diante da morte, a misericórdia dilacerou-me as vísceras, entregando-me a um destino fatal; o punhal que atravessou incontáveis oponentes, por fim, destruiu seu possessor. 

Àqueles que cometem incessantemente o mal, a Providência reserva-lhes o castigo da recíproca, e quiçá eu, conforme a profunda tenebra asfixia todo vestígio de vago brilho embranquecido, encontre-me com minha última penitência…

Mas, com o desfalecer deste coração emudecido, o congelar deste sangue maldito, e o enrijecer destes ossos feridos, o negro vazio do purgatório não faz-se sentido e, perante o estranhamento de minhas emoções, uma cândida estrela manifesta-se diante de minhas pálpebras cerradas. Cálida, plácida, é a brisa em que o tempo desfaz-se, conforme este reduzido sol em forma de luz arma-se em um fulgor cada vez mais claro. O vento desvela-se sinistramente afetuoso, ainda que em tão tardio horário e, mesmo em minha pele fria, um pouco de vida ainda poderia ser sentida diante de tal calor. Não obstante, mesmo as brasas do mármore infernal não impediriam o suscitar destes longos arrepios que cruzam toda a extensão de meu corpo imóvel. Por que mesmo a respiração já findada ainda ofega em ânsia? Por que tal tremor perante o desconhecido, quando já não há mais vida alguma? E, em semelhança às grotescas faíscas que cortam o céu de veraneio durante as tormentas chuvosas, o relampaguear cintilante da excêntrica claridade arrebata-me. A umbrosa escuridão converte-se em alvo esplendor, e as trevas já não mais abito.

Harmoniosa, serena e ainda assim misteriosa, é a sombra que dança com seu caminhar entre os corredores da fortaleza em ruínas. Em calmaria, silenciosos passos, como cisnes que banham-se nas águas dos lagos, mal fazem-se ouvidos. Com um pincelar sutil de um afresco desbotado, a nébula do amanhecer desvela-me a verdade, revelando-me em fascínio. Diante de meu cadáver, a excêntrica aparição emudece-me. Onde encontram-se todas as palavras deste bom idioma? Mesmo que as possuísse com o dom de um poeta, ainda estaria inapto a responder a tal dilema, pois o cancioneiro de nenhum trovador confidenciaria com precisão sequer uma parte da estranha magnificência do espectro. Suave é a composição de seus traços, puros são os brancos tecidos de sua túnica, abençoada é a sua presença; na figura de rapaz, é um jovem Narciso grego enviado como mensageiro do Olimpo. Imaculado fantasma, angelical assombração de meus sonhos… é a visita divina da qual esta alma condenável não é merecedora.  

ANJO. E, por fim, a morte a ti abraça, nobre cavaleiro. Neste reino de mortais, viveste como um monarca — embalsamado em infinitas alegrias terrenas efêmeras, acorrentado na prisão da luxúria material, desconhecedor perante inclinações que não fossem benéficas para ti e suas posses — expandindo seu poderio como o solene propósito de sua existência. Por quantos dias e noites abdicaste de sua humanidade para que a glória fosse-lhe companheira? Por teu contentamento mundano, tantos morreram, muitos destes em tuas próprias mãos degradadas pelo sangue daqueles que já partiram. Mas, da tua vida já não mais pode desfrutar; estás morto, como aqueles que antecederam-te. Qual foi o valor da tua ambição, senão a tua existência? E, com que intuito lutaste tanto? Se de teus lábios, jamais viram orações desabrocharem, se tuas mãos nunca uniram-se em preces para o bem, se tua riqueza nunca fez-se uma oferenda? Agora, que tudo já não mais importa-te, o que levas tu para o além vida, meu caro lorde? É ofício de teu coração reconhecer a miséria a qual está reduzido. É papel da tua alma, com o sentimento da verdade, redimir-se. Quando o amanhã nascer, tua boa-fé poderá libertar-te.

E, a branca aurora acalma-se, devolvendo-nos o vazio da escuridão. O coração em partida já não mais palpita; restam-nos apenas as memórias de um corpo extinto. A pálida emoção etérea regressa ao seu lar por entre o Olimpo. Solitária, remanesce a alma de tons negros que, tão quieta a refletir, enterra-se em sua sepultura por todo o sempre. 

Texto publicado na 7ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de julho de 2024. → Ler edição completa

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