O cadáver de um coração

MidjourneyAI

Fechei a porta a procura de concentrar-me em meu próprio luto, pois tortura-me pensar a respeito do que ocorre após o findar da vida humana. Temia a morte, porém nunca me atentei na existência de uma outra forma de morrer. Por este motivo ocultei meus sentimentos aconchegando-me por detrás das estantes, abrigado entre a vasta literatura oferecida por nossa coleção particular. Contornei as lombadas a procura de um clássico qualquer, um que ouvi falar, mas jamais pus os olhos, ou desejava ler desde sempre, porém perdi o encanto.

Há muito tempo desenvolvi aversão à leitura, o desespero me tomava no momento em que colocava os olhos sobre as páginas, e logo meu coração saltava, sustentando uma pavorosa confusão mental tomada de medo e desprezo pelo processo cognitivo básico de decodificação. As mãos pouco obedeciam ao meu desejo de tocar as páginas, e tão logo a contração involuntária de meu estômago empurrava todo o meu conteúdo gástrico boca a fora; ler me adoecia. Torturava-me dessa forma, ainda que soubesse sobre a importância de meu afastamento, embora ler tenha feito parte de minha história e um dos maiores prazeres da vida.

Após minutos de indecisão, afastado do triste velório que ocorria no andar superior e acompanhado pelo coro musical composto por vozes trêmulas e femininas, afundei os dedos em páginas amareladas do romance ‘’O cadáver de um coração’’, redigido por um magnífico autor espanhol, de prática escrita sombria e estranhamente doce e delicada, chamado Benite Carrilho. Benite iniciou o primeiro parágrafo de sua obra valorizando pensamentos pessimistas e saudosos e apontando centenas dos mais delicados detalhes acerca do corpo humano, fazendo de nossa estrutura interna e externa a mais bela das composições naturais do criador.

Ao passar os olhos sobre as páginas, senti a costumeira queimação ocular interromper meu deleitoso momento particular, assim como o palpitar do coração no interior da cavidade toráxica, meu corpo relatava o indício da rejeição pela decodificação das palavras, porém, lutei contra o findar de meu princípio vital, sugando o ar de volta aos pulmões e o expelindo em seguida.

Nas doces e sombrias páginas do romance conheci Adélia, cujas formas eram descritas como joviais e singulares, uma vez que seus jovens olhos castanhos igualavam-se a grandes esferas brilhantes e saltadas, de pálpebras largas e pestanas alongadas. Sua fisionomia, apesar de primeiramente arrancar deleite, era traçada por pequenos órgãos da face miúdos e estreitos, tão estreitos que os mais chegados contavam sobre como ao nascer assemelhava-se a um primata recém-nascido, por carregar olhos enormes e assustados, próximos aos lábios e ao nariz.

De tão pequena, Adélia cresceu atormentada pela beleza jovial, a qual jamais sofria mudanças, fazendo dela alvo de comentários e troça pelo vilarejo espanhol onde residia. Seus órgãos internos eram mesmo pequenos, assim foi constatado após uma investigação profana em sua morte. Instantaneamente procurei apanhar o romance e escondê-lo em meus aposentos, onde lia com fascínio todas as linhas transcritas como um relato de um telespectador curioso e próximo.

Passados os dois primeiros dias de leitura meu corpo retornou aos indícios da ojeriza habitual, tal como meus olhos cansados e em chamas cerravam ao passo em que uma dor latejante se apossava de minha cabeça, palpitando uma veia grossa em minha têmpora, foram esses os primeiros indícios da rejeição, porém prossegui movido pelo interesse em investigar a vida de Adélia e suas excentricidades, parte de mim desejava acariciá-la em momentos de incompreensão e rejeição de parentes e amigos.

Dias se passaram em minha debilidade emocional e vitalidade comprometida, de modo que já não levantava de meu leito, pouco falava aos mais próximos e dores se espalhavam por todo meu corpo, por vezes acreditei deixar de ser minha própria pessoa, e um pavor excruciante surgia da incompreensão diante de meu estado. Bastava deixá-la de lado, devolver Adélia as prateleiras empoeiradas, esquecê-la para sempre, todavia não podia afastá-la, acompanhar sua dor trazia-me a esperança de que o compadecimento se tornaria suficiente e assim a leitura já não afetaria minha saúde, porém, afundei em desgraça com o passar dos capítulos.

Adélia fora rechaçada ao desabrochar prematuramente, logo o broto mamário evidenciava mudanças biológicas e fisiológicas, dessa forma e à vista de tais mudanças, homens maduros apreciavam sua imagem e apontavam com lascívia parte do que a deixava embaraçada. A jovem sofreu consequências do amadurecimento com a demasiada proteção dos guardiões, ao mesmo tempo em que desprezada era vista como tola e indigna de fala.

Detalhes de seu corpo e mente foram dissecados pelo autor de modo que pude odiá-lo pela exposição desnecessária e intrigante, a jovem era vendida em uma obra, aparentemente ficcional, como um relógio de algibeira comercializado por um ambulante em todos os cantos do império. Quando me aprofundo em tais pensamentos a vejo aliciada e apalpada, aberta e controlada como um piano a ser avaliado e tocado, avariado perdendo parte da utilidade por um enxame de cupins.

Quando mulher, o esposo a aprisionou, pois longe da vista de outros não despertaria o deleite e podia se guardar somente para ele, como uma boneca de porcelana intocada, pois mesmo em sua defloração ainda mantinha a beleza da juventude. O tempo não passava, era uma mulher madura em um corpo de moça.

“Linda, mas se linda, como há de ser desprezada? Esperta, mas se esperta, como há de ser ludibriada?”

Gritei padecendo em desgosto, uma desgraça apossada de minha pobre alma, eu não resistia à leitura. Todo meu corpo sofria com a teimosia, e por consequência o sumo suco da vida saltava de minha garganta acompanhado do revirar das entranhas. Eu desfalecia, sentia o fim conforme a obra finalizava.

Quando li as últimas palavras redigidas pelo autor, o qual finalizava descrevendo o fim de uma vida longa e lamentável, fui atordoado por uma síncope repentina. Reclinado em meu próprio sangue senti o sumo emporcalhar minha face ao passo em que perdia a consciência. O fim de uma vida, e o cadáver de um coração aprisionado havia me consumido à exaustão. Sei apenas que despertei após o corrido, porém não era mais o mesmo.

Conto publicado na 1ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2024. → Ler edição completa

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