Infortúnio

Criado para o Castelo Drácula com Midjourney

HEREDITÁRIO — Parte I - GARDÊNIA — Capítulo III

Emanoel, se sentindo desconfortável e até mesmo assustado, após deixá-los para trás seguiu seu caminho em direção ao rio onde estava montado o acampamento. A tropa, juntamente com a boiada que estava sendo tocada, aguardavam já de forma impaciente a chuva dar uma trégua e as águas baixarem pelo menos um pouco para fazerem a travessia e logo seguirem em frente. Desde o momento que deixara Gardênia na desagradável companhia de seu sombrio pai, um sentimento completamente sinistro tomara conta de todo o seu ser. Uma desconfortável ansiedade sem motivos aparentes e uma incontrolável irascibilidade por tudo que via ao seu redor. Contudo, o pior de tudo era uma sombria sensação de estar sendo observado, ou até mesmo vigiado o tempo todo, por alguém ou alguma coisa. Sua mula se acalmara por completo, na verdade de uma forma até mesmo muito estranha, agindo como se fosse autômata. Aquilo tudo estava deixando-o inquieto, primeiro um animal até então dócil e tranquilo, havia se mostrado arredio e violento, demonstrando estar assustado com coisa alguma aparente, pelo menos assim ele pensava, pois nada de incomum havia sido visto por ele, a não ser o pai de Gardênia, apenas um homem negro alto de cartola na cabeça vestido com um traje comum de cores simples. E segundo porque, após o pai de Gardênia ter simplesmente lhe acariciado a face, estava demonstrando um estranho comportamento, parecendo estar indiferente a tudo ao seu redor.

Ao chegar ao acampamento, algo bastante estranho o incomodou, o cão que pertencia ao cozinheiro e que acompanhava aquela tropa desde filhote sempre ajudando na lida com o gado, acostumado a todos os peões desde sempre, estranhou o boiadeiro e o recebeu todo arrepiado latindo ferozmente e com um comportamento muito arredio, como se Emanoel fosse alguém estranho ou algum animal muito perigoso. O cozinheiro teve que ralhar firme para que o cão se acalmasse, o que de fato não aconteceu por completo, pois mesmo estando de longe, – de forma alguma ele se aproximava, nem do boiadeiro muito menos de sua mula – o cão todo arrepiado ficava sempre olhando na direção do boiadeiro, como se estivesse prestes a atacá-lo a qualquer momento. Como aquele entardecer estava muito agradável e o tempo estava um pouco firme com a chuva tendo estiado, Emanoel logo fora convidado pelos companheiros a se unirem a eles numa animada mesa de carteado, armada de forma improvisada debaixo de uma grande barraca que servia de cozinha e refeitório, tudo ao mesmo tempo. Mesmo como todo o mau humor destilado pelo cozinheiro, que professava uma religião que era contra todo e qualquer tipo de jogatina, o velho capataz e líder da tropa, autorizara aquela diversão, desde que não envolvesse nenhum tipo de apostas. Quando o cozinheiro tentou protestar, quanto aquele incomodo em seu local de trabalho improvisado, logo o capataz o convencera a ceder aquele local após servir o jantar.

– Essa espera prolongada às margens do rio acaba por inquietar até mesmo os corações mais tolerantes. Além do mais, um peão ocioso se torna um indivíduo até mesmo perigoso. Deixe-os se divertirem um pouco para ocuparem o tempo. Acredito que, em dois ou três dias, poderemos logo atravessar o rio e seguir nossa viagem.

O cozinheiro, com as entranhas ardendo num ódio profundo ao olhar na direção da tempestade que se avizinhava na direção da nascente, pensou consigo mesmo: “Além de autoritário para com todos, agora ficou caduco de vez! Com toda essa chuvarada ficaremos aqui acampados até criarmos lodo nos pés”. Mal sabia aquele jovem cozinheiro que, o tempo na vida de um homem não traz somente rugas em seu rosto e cabelos brancos, mas também uma notória sabedoria. Conhecimento adquirido através de longo tempo de minuciosa observação, tanto de fenômenos naturais, bem como do comportamento das pessoas em seu dia a dia. 

Mesmo com toda a relutância daquele religioso mestre cuca, logo a jogatina se iniciara. Emanoel, por sua vez, era um exímio jogador de cartas. Sua intimidade com os naipes do baralho era tão incrível ao ponto de até mesmo ser invejado por seus companheiros. O jogo em si era o truco, e como estar em parceria com Emanoel era vitoria garantida, houve até certo desentendimento entre os companheiros para saber quem seria seu parceiro. Como o capataz estava distante, confabularam entre si que o jogo deveria se realizar por meio de apostas a valer, em dinheiro vivo. No início, o jogo e as apostas se mostraram equilibradas, contudo, um sopro de azar fez com que, pela primeira vez, Emanoel e seu parceiro perdessem um montante de dinheiro superior a um mês de ordenado de cada um. Esse fato causou o término da jogatina com muita confusão e ofensas de ambas as partes, chegando ao ponto de sérias ameaças serem proferidas. O velho capataz, que naquele momento já estava recolhido em sua barraca que ficava um pouco afastada, fora chamado pelo cozinheiro para intervir na discussão que já estava bastante acalorada, tanto pelo jogo em si, quanto pelo efeito da cachaça que havia subido para a cabeça dos contendadores.

O velho e sábio capataz, que por sua vez também era avesso a qualquer tipo de jogatina, principalmente quando envolvesse dinheiro, assim que se aproximou da peonada que estava se digladiando verbalmente, quase já, chegando às vias de fato, logo deu a discussão por encerrada, inclusive com sérias promessas de demissão a todos que o desobedecessem novamente com apostas em bens ou dinheiro. Disse por fim. 

– É por essas e outras razões que há entre nós aqueles que repugnam esses divertimentos. Se eu ouvir qualquer outro comentário de uma estupidez como essa, até mesmo, somente para diversão a jogatina será proibida de vez em minha tropa. Mesmo contra minha vontade, permito essa indulgência a vocês, a fim de matar o tempo ocioso e de forma ingrata me retribuem com uma patuscada dessas.

Todos, sem exceção, abaixaram suas cabeças e ninguém ousou dizer mais nenhuma palavra. Como naquele exato momento começara a chover forte novamente, logo deram o jogo por encerrado e cada um se recolheu em sua respectiva barraca. Aqueles que ganharam, foram dormir bastante satisfeitos; os que perderam, além do prejuízo em dinheiro, também tiveram seu ego ferido, principalmente Emanoel, pois a derrota para ele era uma novidade bastante desagradável. Entretanto, de todos, o que ficou mais contente foi o cozinheiro que obteve sua barraca de volta, tranquila e no mais absoluto silêncio, onde ele pôde se deitar em sua rede e dormir sossegadamente enquanto a chuva caía de forma constante e violenta. Ali, deitado em sua rede, observando a chuva que caía de fora de sua barraca, o cozinheiro na profundidade de seu fundamentalismo religioso, ficou a imaginar que aquela chuva poderia se comparar a ira de Deus perante a iniquidade dos homens.

– Uma chuva como essa açoita sem piedade os homens que ousam enfrentá-la de frente. Tal como aqui agora, nas cidades por onde ela passa, o vento que traz consigo sopra sempre violento, assobiando de forma assustadora entre as árvores e os beirais dos telhados, derrubando tudo à sua frente e amedrontando mulheres e crianças pequenas... Envolto a esses pensamentos, logo adormeceu profundamente, trazendo a si a certeza soberba de ser um servo fiel e reto perante os olhos de Deus.

A tempestade daquela noite durou umas três horas ininterruptas, contudo, quando cessou, foi por completo. Na manhã seguinte o céu estava limpo e claro de um azul belíssimo, o sol estava radiante e brilhava como nunca, confirmando por suas previsões, o tempo estava firmando e dava mostras de um veranico momentâneo, sabendo disso, logo o capataz dera ordem aos peões que toda a boiada deveria ser passada em revista, se porventura alguma rês estivesse faltando ao rebanho, logo deveria ser encontrada viva ou morta. O rebanho deveria ser conferido de forma minuciosa, afinal, eles eram responsáveis por toda aquela boiada que deveria chegar ao seu destino com o mínimo de prejuízo possível, para isso eles estavam sendo muito bem remunerados.

Emanoel, obedecendo as ordens, logo foi selar sua mula e dar início à missão recebida, contudo, ao se aproximar do local onde sua mula sempre ficava, teve um desagradável dissabor ao verificar que havia algo de errado com o animal que se encontrava deitado com o corpo todo enrijecido, inclusive sua mandíbula estava cerrada. Emanoel tentou de todas as formas movê-la, mas a mula mantinha-se completamente inerte. Um dos peões, que era tão velho quanto o próprio capataz, fora chamado. Esse peão era uma espécie de curandeiro do grupo, acostumado a curar feridas e sarar moléstias tanto de peões, quanto de animais da tropa. Assim que foi requisitado, logo veio em socorro do pobre animal que, pelo olhar distante e sem brilho, dava mostras de estar se despedindo de sua vida de estrada. Por mais que se examinasse aquele animal, nenhum diagnóstico pôde ser estabelecido. Pois nada de anormal fora identificado, nem mesmo uma única ferida fora encontrada. Geralmente, quando não se encontra uma certeza para determinado assunto, surgem incontáveis conjecturas que logo eram descartadas por uma evidência ou outra. Até que, dentre a peonada, que já haviam encerrado seus estoques de opiniões, ouviu-se a voz do cozinheiro que disse de forma involuntária e distraída.

– Parece que foi algo encomendado, se eu não fosse o cristão fiel que sou, poderia até acreditar que foi feitiço. Gente ruim nesse mundo é o que não falta. Como dizem as Sagradas Escrituras, já estamos vivendo o fim dos tempos. É chegado a hora de nos arrependermos dos nossos pecados. 

O capataz daquela tropa se chamava Francisco Taveira, mas se apresentava pelo apelido de Chico fumaça, que ficou sendo conhecido por todos desde os tempos que era peão de rodeio e tivera grande êxito e fama em toda região por onde vivia. Chico fumaça tinha uma destreza ímpar no trato com animais de montaria. Firme como uma rocha no lombo do animal e leve como fumaça pairando no ar. Em sua juventude era um jovem magro como uma vara de pesca, seu físico franzino fazia conjunto com o sorriso sempre agudo e fácil, parecia estar o tempo todo contente com tudo ao seu redor. Não havia tristeza na vida do jovem Chico Fumaça, contudo a vida não é apenas de belas manhãs de primavera, há também as escuras noites de inverno. E como é natural na vida daqueles que têm o privilégio de envelhecer, Chico Fumaça que já passara pelas outras estações em sua vida, agora enfrentava o inverno. Embora não tivesse mais de sessenta anos completos, parecia vinte anos mais velho e já caminhando a passos largos na direção da cidade do descanso eterno. Estava cada vez mais calvo, de pele amarelada e demonstrando uma fraqueza plena até mesmo ao piscar os olhos que pareciam estar sempre febris devido a vermelhidão constante. Era difícil discernir se seus olhos eram daquela cor avermelhada devido aos goles de cachaça emborcados sempre que possível ou pela ardente e constante fumaça de seu cigarro de palha, continuamente pendurado num dos cantos da boca fina e desprovida de qualquer traço de involuntariedade. Muito diferente daquilo que fora um dia na juventude, nos últimos tempos Chico Fumaça parecia estar sempre cansado, com a respiração arfante a qualquer esforço. Era até doloroso para quem o conhecera outrora, ver aquela triste figura tentando a todo custo se demonstrar forte e impetuoso.

Os anos que carregava nas costas e as duras marcas de trabalho nas mãos o derrubara sem misericórdia alguma. Mesmo assim sua presença era firme e de uma seriedade inquestionável. Temido por alguns e respeitado por todos. Como sempre fora um peão estradeiro, já havia passado por aquela região outras diversas vezes. Conhecia grande parte dos moradores mais antigos que por ali sempre viveram. Inclusive conhecia muito bem a Pai Thomas. Percebendo a triste desolação de seu boiadeiro mais querido, por perder seu animal de trabalho, – que na verdade, também era de estimação, pois aquele moribundo animal pertencia a Emanoel desde que nascera. Aquele belo animal fora lhe doado ainda filhote, recém-nascido, pois ao nascer se demonstrou raquítico e adoentado; o dono, imaginando que o pobre animal padecesse de alguma moléstia e que talvez não sobrevivesse, e se por acaso assim o conseguisse, jamais seria um animal de estrada, quando muito talvez uma mula de carroça, decidiu, então, que o melhor a fazer era sacrificar o pobre animal, evitando assim uma vida de sofrimento. Como ele tinha que cuidar dos outros animais, não lhe sobraria tempo para se dedicar a um animal doente, afinal aquele era seu ganha-pão, de alguma coisa um homem tem de viver e, no seu caso, em particular precisava criar animais fortes e saudáveis para fornecer aos tropeiros assim que esses o precisassem. Emanoel num gesto de profunda piedade adotou o pequeno animalzinho e, com muito zelo e carinho, logo aquela mula se convalesceu de qualquer tipo de moléstia que porventura pudesse tê-la uma dia a acometido e logo se tornaria um animal esplendidamente belo e bastante robusto. Emanoel dera-lhe o nome de “menina” e nos últimos seis anos de trabalho era essa mula sua fiel companheira de estrada. Chico Fumaça trazendo consigo uma vasta experiência, e como presenciara a perda de inúmeros outros animais, durante anos em sua vida de peão estradeiro, ao ver a mula naquele estado disse de forma resoluta.

– Seu eu não estiver muito enganado em minha lembranças, e se ele ainda estiver vivo, pois a ultima vez que o vi, ele já estava bem chegado à idade, vive por essas bandas um velho benzedor conhecido pelo nome de Pai Thomas, que segundo dizem os desocupados, tem parte com o coisa ruim e quando lhe apetece, consegue levantar qualquer animal ou até mesmo gente com suas orações e beberagens. Só não sei se você ainda conseguirá encontrá-lo por essas bandas. Apenas posso garantir que esse preto velho é poderoso.

Um estranho arrepio tomou conta de todo o corpo de Emanoel e ele logo quis saber mais informações sobre esse tal de Pai Thomas. De alguma forma, algo dentro de si lhe dizia que esse benzedor, – que talvez realmente tivesse parte com o coisa ruim – fosse também o pai de Gardênia. Quando o velho capataz lhe relatara tudo aquilo que ele sabia sobre Pai Thomas, através dos burburinhos do populacho sobre seus estranhos poderes e os encantamentos que ele fazia, um frio intenso desceu violentamente pela sua espinha e seu estômago se embrulhou de imediato ao se lembrar do estranho e sinistro sorriso que Pai Thomas lhe transmitira por último ao se despedirem na tarde anterior. De alguma forma aquele estranho sorriso trazia em si sinais de uma sinistra covardia velada naqueles traços faciais. Aquele medo se intensificou ainda mais quando o cozinheiro, que outrora havia sido um tanto quanto libertino e frequentado lugares de procedência duvidosa, antes de sua conversão, dissera que também conhecia Pai Thomas por nome e por seus feitos que precediam sua presença. Sem saber do fatídico idílio entre Emanoel e a filha do citado feiticeiro, disse com inocentes palavras.

– Dizem que esse velho mago tem uma única filha concebida já em sua maturidade, e que é a criatura mais bela que já pisou nessa terra. Uma mulher misteriosamente encantadora. Morena de pele clara, com olhos azuis cintilantes e longos cabelos cacheados negros como uma noite sem luar. Mesmo com toda essa beleza, nenhum homem inteligente ousa se aproximar dela, temendo o pai que ela tem. Confesso, na verdade, que eu mesmo não conheço esse velho pessoalmente. Contudo o que já ouvi dizer por aí – de pessoas que não jogam conversa fora –, é que basta um único olhar de seu velho pai para fazer um homem barbado borrar as próprias calças. Sua bela filha também não tive a oportunidade de comprovar com meus próprios olhos, tudo aquilo que dito sobre ela. No entanto, verdade seja dita, há certa unanimidade sobre sua incomparável beleza que enfeitiça tanto homens, quanto mulheres. O que sei, de fato, é que seu nome é o mesmo de uma bela flor. E que até mesmo sua semelhança e fragrância a uma gardênia não é menos verdadeira.

O capataz disse logo em seguida que, respeitando os devidos exageros por parte do cozinheiro, o que diziam de Pai Thomas era parte verdade, e que realmente a beleza da jovem Gardênia era algo incomum. Isso ele mesmo poderia confirmar, pois a conhecia pessoalmente. Tanto ela bem como seu próprio pai, que em outra ocasião há tempos idos pôde comprovar de seus estranhos dons de cura. Por fim, disse a Emanoel que arriasse outro animal qualquer e que chamasse um companheiro para irem em busca do velho mago. E se assim o encontrassem, que solicitassem em seu nome, que ele logo viesse em socorro daquele pobre animal.

Emanoel naquele momento se encontrava entre a cruz e a espada. De um lado, não gostaria de perder sua companheira de tantos anos de estrada. Por outro lado, de forma alguma, e nem por nada desse mundo gostaria de reencontrar com o pai de Gardênia. Pois que a morte de sua mula pudesse se mostrar dolorosa para ele, enfrentar novamente o sombrio olhar do pai de Gardênia estava totalmente fora de questão. No fundo de sua alma, mesmo com toda a beleza e encanto que Gardênia pudesse ter em si, nem mesmo, com ela gostaria de se reencontrar outra vez. Desde o momento em que se separam na tarde anterior e cada seguiu o seu caminho, um grande arrependimento tomou conta de todo o seu ser, – logo ele, que tinha fama de homem mulherengo, e por onde passava sempre deixava um rastro de saudade e corações partidos, muita das vezes, até mesmo roubando a pureza de jovens inocentes ainda no frescor da juventude. Após ter se deitado com aquela encantadora mulher e ter satisfeito toda sua voraz volúpia, pela primeira vez, sentia certo remorso pelo seu ato, mesmo já sendo ela uma mulher feita com bem mais de vinte anos e pelo ato em si ter sido mutuamente desejado por ambos, ele não a forçara a nada, a bem da verdade, fora ela quem se jogara voluntariamente em seus braços.

Após várias opiniões sobre o real estado da moribunda mula, e se sentindo bastante oprimido pela situação em que se encontrava, Emanoel decidiu que o destino de sua nula estava selado e para acabar logo com o sofrimento do agonizante animal resolveu por sacrificá-la. Com essa torturante resolução, pedira a arma ao capataz, – para evitar possíveis contendas e algum indesejável incidente, o capataz não permitia armas em sua tropa, exceto a dele mesmo. Mané Fumaça, mesmo com o coração partido buscara em sua barraca o revólver de cano curto de calibre 38 e o entregara já carregado a Emanoel, que com um único tiro colocou um fim no sofrimento de sua amada “Menina”. Antes de dar seu último suspiro, sua mula ainda lhe direcionara um último olhar de súplica. Emanoel ficou mais angustiado ainda, por não saber o significado daquele lânguido olhar. Talvez fosse em agradecimento pelo tempo que compartilharam juntos e por ter sido ele quem lhe dera o golpe de misericórdia, ou quem sabe até mesmo de surpresa e espanto em saber que seu fiel companheiro estava lhe tirando a vida sem nenhum pudor. Emanoel nem de longe imaginava que aquele olhar de lástima era por ele, pois segundo dizem; “... todo ser vivo ao se deparar com a morte, também se encontra com a verdade...”. E naquela hora final, sua fiel companheira que havia presenciado o desagradável encontro dele com Pai Thomas, sabia do amargo cálice que ele teria de beber logo em breve. O certo é que Emanoel jamais conseguiria esquecer aquele olhar, e pelo restante de seus dias aquilo lhe seria um doloroso tormento.

O velho capataz, sentindo a angústia de seu companheiro, se aproximou de Emanoel e com a mão descansada em seu ombro disse de forma reconfortante:

– A vida é uma longa e tortuosa estrada, quase sempre, companheiros vão ficando pelo caminho, sejam eles homens ou animais, cada qual deve cumprir a sua sina sobre essa terra. Nada é para sempre e ninguém que caminha por essa terra é eterno.

Emanoel, com as palavras entaladas em sua garganta e os olhas rasos d’água, com muito esforço conseguiu reunir forças e com muita dificuldade conseguiu dizer:

– Ela não era um homem e nem mesmo um simples animal qualquer, ela era a minha “Menina”...

O restante daquele dia teve um sabor amargo para Emanoel, não fora somente a perda irreparável de sua mula que lhe oprimia o peito. A amargura que sentia era de tal forma opressora, como se ele tivesse se banhado no sangue de crianças inocentes. Até aquele dia, sempre que se deitava com uma mulher independente de quem fosse – jovem, velha, solteira ou até mesmo casada – sempre se vangloriava perante seus companheiros, como se aquilo fosse uma grande vantagem, poder abusar de forma leviana dos sentimentos de alguém. Porém, no caso de Gardênia, muito pelo contrário do que sempre fora, após saber a verdade de quem se tratava e também saber sobre quem era seu pai, fez com que ele se tornasse um homem vigilante com suas palavras e, de certo modo, até mesmo solitário naquele momento, pois sabia ele que aquele assunto em particular jamais poderia ser confidenciado a quem quer que fosse.

Naquele mesmo dia, Emanoel não quis almoçar e passou a tarde toda quieto e calado, deitado em sua rede acampado em sua barraca. Por ordem do capataz, sua mula fora jogada numa vala e coberta com terra numa espécie de enterro simbólico, também fora ordenado aos companheiros que deixassem Emanoel padecer seu luto sossegado. No final da tarde, quando as sombras da noite já estavam ocupando o lugar dos últimos lampejos de luz do dia, a brisa transformava-se num vento cálido e leve ali naquela margem de rio. Quando o jantar foi servido, o capataz de forma até meio ríspida, ordenou a Emanoel que se alimentasse, pois logo estaria na estrada novamente e de forma alguma permitiria ter um peão doente na comitiva. 

A comida simples era o famoso arroz de carreteiro, que consiste numa miscelânea de ingredientes disponíveis, cozidos todos numa mesma panela. A aparência não era das melhores, mas o sabor em si, era algo majestoso. O cozinheiro tinha as mãos abençoadas para o tempero e todos, sem exceção, muito apreciavam sua comida. Além de ter o dom para a culinária, esse mesmo cozinheiro era muito asseado e cuidadoso com sua improvisada cozinha, que na maioria das vezes era armada às pressas debaixo de uma barraca rústica. Para evitar qualquer tipo de acidente com a comida, mantinha continuamente um lenço sempre amarrado na cabeça, mesmo esta sendo raspada a cada quinze dias. Os alimentos eram guardados em potes sempre bem tampados e suas vasilhas eram muito limpas e brilhantes. Contudo, mesmo com todo esse zelo, naquela fatídica noite, foi justamente Emanoel, quando já estava terminando o seu jantar, quem encontrou um enorme fio de cabelo enrolado na comida. Além de bastante desagradável, o fato em si trazia consigo um intrigante mistério, pois aquele fio de cabelo era comprido, e ninguém usava cabelos grandes, todos os tinham os cabelos cortados sempre muito curtos, tosados pelo menos uma vez por mês pelo próprio cozinheiro que também fazia às vezes de barbeiro. 

Emanoel, bastante irritado com todas auguras daquele dia, logo foi se recolher sem dar boa noite a ninguém. De certo modo a má sorte tinha assumido o lugar de sua mula e agora estava sendo sua fiel e inseparável companheira. Havia naquele acampamento umas doze pequenas barracas, contando com a sua e da barraca um pouco maior que era usada como cozinha e refeitório. E foi justamente na sua barraca, – e em nenhuma outra – que de uma forma extraordinária, houve um ataque de formigas bem no meio da noite, quando todos já dormiam a sono pesado. Emanoel acordou com inúmeras formigas passeando por cima dele na rede e quando por fim conseguiu acender um fósforo, pode perceber que sua barraca estava infestada de formigas por todos os lados. Não havia sido picado nenhuma vez, mas a enorme quantidade de formigas fora o suficiente para assustá-lo a acordar todo o acampamento. O capataz fora o primeiro a vir em seu socorro, – pois tinha o sono leve – e assim que se inteirou do que estava havendo, logo também pôde identificar a espécie a qual as formigas pertenciam e disse em seguida:

– Não devemos nos alarmar, são formigas correição, estão apenas de passagem por aqui de mudança em busca de um novo ninho. Já estão todas indo embora.

Emanoel já estava se impacientando com toda aquela maré de azar e chegou a comentar, num pequeno gracejo, para tentar demonstrar tranquilidade.

– Do jeito que as coisas estão vou precisar mesmo me benzer. É muito azar para um homem só.

O cozinheiro sempre muito envolvido com questões místicas e sem plausíveis explicações, havia notado certa inquietude por parte de seu cão desde que Emanoel retornara de seu passeio na tarde do domingo e de rosto franzido e com muita seriedade dissera em resposta ao gracejo do boiadeiro.

– Talvez não seja apenas azar que esteja te rondando Emanoel! Pode ser que haja algo mais, talvez alguma força sombria esteja te perseguindo em cobrança a alguma divida que você tenha contraído ultimamente. Já ouvi dizer que certas dívidas se transformam em maldiçoes e que se não forem quebradas com muito jejum e fervorosas orações podem perseguir um homem até a beira da sepultura.

– Bobagens! Nada e nem ninguém anda na minha garupa se eu não permitir. Até mesmo minha própria sombra sofre para acompanhar um peão como eu. Não acredito nessas besteiras e, mesmo se acreditasse, não tenho medo de nada disso! Respondeu o boiadeiro ainda em tom de gracejo.

– Há uma grande diferença entre ter medo e ter cautela perante aquilo que nos é desconhecido. Disse o cozinheiro já se dirigindo à sua barraca.

Assim que as formigas se foram, tudo voltou ao normal, mesmo com o susto e o desconforto de acordar no meio da noite com todo aquele alvoroço, muito rapidamente todos voltaram a dormir. Menos Emanoel que ainda ficou bastante tempo com os pensamentos a torturá-lo e a sensação de estar sendo observado o tempo todo. A certa altura, teve a leve impressão de ouvir vozes estranhas próximas à sua barraca como se algumas mulheres estivessem discutindo, depois ouvira – ou tivera a impressão de estar ouvindo – uma criança chorando doridamente. Contudo fez um esforço enorme e, talvez depois de quase duas horas em busca do sono, conseguiu adormecer novamente. Estava dormindo a sono alto quando a corda que prendia sua rede se partiu e o jogou ao chão, mais uma vez acordou assustado com as costas ardendo em dor pela queda. Ao se levantar do chão percebeu que a aurora já despontava no horizonte e o dia já estava bem claro. Com o barulho de sua queda o capataz também se levantou e logo foi em busca de água para se lavar. Em menos de meia hora, todo o acampamento já havia despertado e um delicioso aroma de café pairava no ar. 

O sol logo subiu aos céus e trouxe luz e calor, e uma reconfortante sensação de estiagem tomou conta de tudo. Era por volta das dez horas da manhã quando o cheiro de comida já tomava conta do lugar, quando uma inesperada visita se fez presente no acampamento. Era Nhô Tunico acompanhado de seu filho Daniel, a quem Emanoel logo dera noticias que os conhecera na sua visita de domingo e sabia de quem se tratava. Nhô Tunico viera até o acampamento em busca de uma colocação para Daniel como peão junto àquela comitiva, insistindo perante o capataz, dizendo-lhe que o filho lhe atormentava a alma com a ideia de ser um peão estradeiro. Assim que chegaram ao acampamento, trazendo algumas prendas como agrado, foram logo recebidos com muita cortesia e hospitalidade por todos, mas principalmente por Emanoel em resposta a toda a gentileza com que fora tratado quando, em visita, estivera em sua casa. Após os votos de cortesia, logo a proposta foi apresentada ao velho capataz que quase de imediato recusou empregar o jovem ao grupo, alegando que a tropa já estava completa e a viagem até o Pantanal era longa e cheia de desafios para um peão ainda imberbe. Contudo, acabou mudando de ideia quando Emanoel interveio em favor do rapaz, pedindo ao capataz que desse uma chance ao rapaz, pelo menos até o restante da viagem, e se por acaso ele não servisse para a lida na estrada, seria devolvido ao pai na viagem de volta. Chico Fumaça, que já estava incomodado com o acabrunhamento de Emanoel por causa da perda de sua mula, decidira lhe conceder aquela indulgência. Daniel que já estava de posse de seus poucos pertences de viagem, assim que se despediu de seu pai, por ali mesmo foi ficando para já se ambientar logo com a rotina da comitiva. Emanoel assumiu o cargo de tutor de Daniel e logo o arrastou para junto de si, compartilhando inclusive sua barraca com ele.

Três dias se passaram sem cair nenhuma gota de chuva e logo as águas do rio minguaram ao ponto de uma travessia segura. Percebendo que a travessia era possível, logo o capataz dera a ordem, e a tropa com toda a boiada logo atravessaram o rio sem nenhum tipo de incidente. Daniel, que já estava bastante ambientado ao grupo, seguiu viagem rumo a uma terra conhecida por ele somente através de estórias de viajantes.

O retorno de Daniel para sua casa se deu quase cinco meses depois desse acontecimentos. O mesmo rapaz, que uma vez influenciado pelas encantadoras estórias que Emanoel alegremente havia contado naquele domingo em sua casa às vésperas de sua partida – dentre tantas outras de outros viajantes –, retornara para casa como o filho pródigo, arrependido e decepcionado por tudo o que presenciara na sua curta experiência como peão estradeiro. A vida na estrada se demonstrara para ele triste e desolada, todo o encanto se resumiu tão somente às estórias que ele mesmo pode comprovar que nem todas eram verdadeiras, apenas floreadas ao extremo para serem mais apetecíveis a quem estivesse ouvindo. No primeiro domingo após seu retorno para casa, uma visita se fez presente. Era a bela Gardênia, que por algum motivo, como se fosse possível, estava mais bela ainda. Todos perceberam que havia algo diferente nela, contudo ninguém quis comentar sobre o assunto. Gardênia estava ávida por noticias de Emanoel, mas por discrição e recato, não podia perguntar por ele e teve que lutar com sua angustiante curiosidade. Sua ansiedade logo se dissipou, Daniel como se desconfiasse de algo, decidiu por fim relatar o triste e lamentável fim do boiadeiro Emanoel, o famoso e intrépido Mané Faísca. Essa mesma história já havia sido relatada à sua família anteriormente, contudo quis ele contá-la a Gardênia em seus pormenores, como uma forma de justificativa ao seu retorno para casa e de sua precoce desistência da encantadora vida de peão estradeiro. Daniel nada sabia do idílio que ocorrera entre Emanoel e Gardênia na tarde daquele domingo logo após os dois terem saído de sua casa seguindo juntos pela estrada a fora, – muito menos, que ela carregava um filho dele em seu ventre – por isso não se absteve em contar a história como realmente acontecera, sem se preocupar em omitir nenhum detalhe. Olhando pela janela ao longe, como se quisesse ver algo bem distante, principiou...

– Alguns dias depois que atravessamos o rio e seguimos viagem, Emanoel sofreu um grave acidente e morreu no dia seguinte, ou melhor, foi morto. Antes de atravessarmos o rio, na verdade, antes mesmo que eu estivesse junto ao grupo, àquela mula que ele estava montado quando veio até nossa casa caiu doente com algum mal irremediável e teve que ser sacrificada. Para continuar a viagem, ele se viu obrigado a se utilizar de uma outra montaria. Dentre todos os animais disponíveis na tropa, – sabe lá Deus o motivo – ele escolheu o animal mais arredio que havia na comitiva. Palito era um burro velho, mas ainda muito ágil e robusto, e como quase ninguém ousava montá-lo, estava gordo e descansado. Emanoel, que era um peão destemido, sempre acostumado a domesticar os mais bravios dos animais decidiu que domaria aquele burro e dali para frente, seria ele a sua montaria principal. A escolha se deu por Palito e Menina serem crias da mesma égua, apenas em épocas diferentes, Palito era uns três anos mais velho do que Menina, mas muito parecido com ela em seu aspecto físico e totalmente diferente em seu psicológico. Palito era o tipo de criatura indomável.

Emanoel, como era acostumado a lidar com animais brutos, com suas esporas e um firme chicote, logo conseguiu se manter firme sobre o lombo do velho Palito, mesmo com violenta relutância do velho burro. Todas as manhãs era uma luta titânica para acalmar os ânimos daquele arredio muar que havia terminantemente declarado guerra a qualquer tipo de trabalho duro. Contudo, certa manhã, o burro se mostrou tranquilo e calmo, demonstrando ser a criatura mais dócil da tropa. Alguns dos peões até estranharam aquele comportamento, rendendo alguns elogios ao seu domador. Um deles chegou a dizer: “– Mané Faísca é realmente um peão sem comparação, traz na palma da mão o animal que ele quiser, seja de duas ou quatro patas, ele sempre o doma do jeito que quer”. Lembro-me que Emanoel deu uma piscadela e respondeu com um gracejo; “– são ossos do oficio –”. Realmente o elogio não era exagero por parte de nossos companheiros, eu tive o privilégio de presenciar sua perícia sobre uma montaria. Ele sentava-se na sela como se ali mesmo tivesse nascido; alto esguio e muito gracioso. Todos nós selamos nossas respectivas montarias e seguimos viagem, menos de duas horas de cavalgada depois, sem nenhum motivo aparente, o burro que Emanoel estava montado se assustou com algo à sua frente e começou a pular descontrolado de um lado para outro, num arremedo de ódio e violência como se tivesse algo monstruoso sobre seu lombo, e ele desesperadamente quisesse a todo custo se livrar de tão funesta carga.

Toda aquela cena foi aterrorizante, eu nunca havia presenciado algo como aquilo antes, parecia que aquele animal carregava o próprio diabo no lombo. Emanoel até que tentou de todas as formas acalmar o animal e se manter sobre ele, mas mesmo com toda a sua perícia e todo o esforço do mundo, não foram suficientes para conter a fúria do animal, que se mostrava enlouquecido até, e em dado momento daquela peleja, Emanoel foi violentamente lançado ao chão. Alguns companheiros começaram a rir, outros gritaram, mas logo se contiveram e logo vieram em seu socorro, após perceberem que Emanoel não se movia, nem mesmo para se afastar do burro que ainda dava pinotes e escoiceava tudo ao redor, como se ainda estivesse sendo montado por algo ou alguém e após mais alguns violentos pinotes saiu em disparada e não foi mais visto, como se estivesse correndo de algo terrível que só ele estava vendo. Toda aquela querela com o burro selou de vez o destino do famoso Mané Faísca, pois mesmo estando eles atravessando um prado de capim bastante espesso e macio, ele tivera o azar de cair sobre um seixo, que partira sua coluna. Quando o levantamos, ele já estava completamente inerte, era possível ouvir ossos partidos rangerem em contato uns com os outros. Ele estava desfalecido, mas ainda estava vivo, seu pulso estava fraco mas respirava com dificuldades. 

Por ordem do capataz, – que se mostrara bastante abalado com tudo aquilo – um acampamento fora rapidamente erguido ali próximo ao acidente debaixo das sombras de um enorme jatobazeiro. Emanoel fora colocado deitado numa cama improvisada com capim e coberta com o pelego, que pertencia ao capataz – o pelego do infeliz boiadeiro se fora junto como burro palito, que saiu em disparada sem destino certo e ainda não havia sido encontrado. Dois de nossos companheiros foram encaminhados a buscarem ajuda, voltaram já ao cair da noite com uma senhorinha benzedeira que morava a uns vinte quilômetros de onde estávamos. Aquela rude e simples senhora era o mais próximo de um médico que havia num raio de umas cem léguas. No entanto, aquela busca por socorro se mostrou infrutífera, pois assim que a benzedeira conferiu seus ferimentos, apenas confirmou aquilo que todos já imaginavam, Emanoel não sobreviveria por muito mais tempo e se porventura sobrevivesse, passaria o resto de seus dias preso a uma cama. Mesmo em completa agonia de morte, ele ainda conseguiu abrir seus olhos por umas duas ou três vezes. O capataz que esteve sempre presente ao seu lado naqueles angustiosos momentos, pode perceber que a alegre esperança que sempre emanava de seus olhos a cada início de viagem, havia se desfeito por completo, deixando-o com um olhar ao mesmo tempo sem brilho e desolado. Era a mesma expressão de um homem examinando o cadafalso onde logo seria enforcado.

O final da tarde daquele dia foi triste e melancólico a todos. Depois de vários dias de estio e sol forte, o céu mais uma vez se cobriu todo e dava mostras que a chuva retornaria, contudo foi algo que não aconteceu naquele dia. Já no finalzinho do dia, mesmo com um vento frio e constante, o sol resolveu se fazer presente numa pequena faixa de céu limpo no horizonte. A luz derramada obliquamente por aquele prado, onde nos encontrávamos naquele momento ganhara a cor de sangue na violenta descida de um sol poente. A desolação era completa entre todos nós. A gentil senhora, assim que determinou seu diagnóstico sobre o moribundo, dizendo que nada poderia ser feito por ele, logo foi acompanhada de volta a sua casa por um dos peões. Um simples repasto fora preparado pelo cozinheiro, mas quase ninguém comeu. Vez por outra o capataz tentava inutilmente servir água na boca de Emanoel. Chico Fumaça solicitou que uma fogueira fosse acesa próxima a barraca onde ela velava por seu peão mais querido, que jazia ali deitado na mais completa inércia. A maioria dos peões ficaram até bem tarde próximos à fogueira, contudo um por um logo foram se recolher como puderam. A noite se mostrou longa e bastante friorenta, Chico Fumaça foi o único que ficou o tempo todo ao lado de Emanoel, fumando seu velho cachimbo e vez por outra suspirando alto, demonstrando estar vivendo um terrível dilema.

No misterioso silêncio da noite uma dolorosa resolução fora tomada por aquele velho capataz que se esquecera por completo o que era: o terror; a alegria; a dor; a tristeza; ou até mesmo o que era o amor... Nada mais tinha significado para ele naquele momento, tudo era a mesma coisa. Pessoas como aquele velho peão de estrada não sentem mais muito de coisa alguma, já viveram tempo suficiente nesse purgatório que alguns teimosamente chamam de vida, que para alguns como ele mesmo, torna-se uma infindável provação. Talvez de todas as falhas humanas que um homem pode cometer, a pior delas é a piedade. Contudo, naquele momento inglório era a única coisa a se fazer. E pouco antes do desabrochar de uma nova manhã, quando todos ainda dormiam, um único tiro se fez ouvir naquele friorento prado. Todos acordaram assustados, mas logo entendera que aquele disparo era um ato de misericórdia, executado por alguém dotado de sabedoria e muita coragem, atendendo a um possível desejo de um amigo em momento de total desespero e da mais completa agonia. 

Quando a peonada começou a se reunir, onde o velho capataz velava por Emanoel, e percebendo o que havia sucedido, ninguém ousara dizer uma única palavra naquele momento. Chico Fumaça ainda de arma em punho, com os olhos lacrimejantes e com a voz carregada pela emoção e pelo remorso disse:

– Jamais me critiquem de forma leviana e acusatória. Ninguém deve me julgar pelo que acabei de fazer. Às vezes nessa vida somos obrigados a fazer certas coisas que são consideradas um crime para os homens e uma vergonha perante as Leis de Deus. Todos os homens carregam o homicídio em seu coração. E há algumas mortes que são necessárias para alívio de determinados sofrimentos. Tenham plena certeza, que há coisas nessa vida, bem piores que a morte...

Ninguém ousou dizer uma única palavra sequer. Emanoel recebeu todas as possíveis e improvisadas honrarias. Até mesmo um breve velório. Seu corpo foi enterrado aos pés daquele enorme jatobazeiro e uma rústica cruz confeccionada às pressas pelo cozinheiro fora fincada na cabeceira da sepultura. Foi também o próprio cozinheiro que de posse de sua inseparável Bíblia, se encarregou das improvisadas exéquias. Várias flores foram colocadas sobre a tumba e assim que a cerimônia foi encerrada Chico Fumaça colocou o laço do boiadeiro sobre a pequena cruz que tinha apenas seu nome escrito de forma improvisada: Emanoel Batista.

Naquele dia, a tropa ficou desprovida de dois peões. Emanoel que se fora para sempre para aquele lugar onde o sono é eterno, mas desprovido de sonhos, onde os olhos nunca mais enxergam a luz do sol. O negro Tiziu que era cunhado de Emanoel e ficara bastante abalado com tudo aquilo, fora incumbido da missão de retornar para a cidade de onde vieram a fim de notificar sua irmã Lourdinha, e agora viúva de Emanoel de seu falecimento. Emanoel era casado com uma sobrinha da esposa de Chico Fumaça e tinha três filhos com ela. A verdade era que Lourdinha, a esposa de Emanoel, perdera seu amado esposo e agora era uma viúva ainda jovem e bonita, – talvez viesse a se casar novamente –. Seus filhos haviam perdido o pai e ficaram órfãos, – logo cresceriam e teriam suas próprias famílias –, mas o que ninguém sabia era que Chico Fumaça havia perdido seu único e legitimo filho. Depois desta triste manhã, logo fora dado a ordem para seguirmos em frente o mais rápido possível, e assim o fizemos. Chegamos ao nosso destino dois meses depois e retornamos logo. Alguns ficaram para trás, lá mesmo na fazenda onde era nosso destino final, outros foram se dispersando pelo caminho de volta, pois antes mesmo de entregamos a boiada, o velho capataz já havia comunicado a todos que aquela seria a sua ultima viagem como boiadeiro. Assim que pagasse a cada um o valor combinado, estariam todos dispensados e livres para seguirem suas vidas como melhor lhes aprouvesse. Aquela tropa de tantos anos juntos, se desfizera como espumas ao vento e hoje só resta as estórias como essa que estou lhes contando.

Quando Gardênia soube da morte de Emanoel teve um mal estar, que a deixou quase sem ar, mas conseguiu a muito custo se conter e disfarçar suas emoções. Contudo ao se lembrar que ele era casado e mesmo assim abusou de sua confiança ela se recompôs ainda mais rápido. Chegou mesmo a cultivar certo ódio dentro de si, quando Daniel relatara também o que os peões comentavam sobre Mané Faísca quando o capataz estava longe. Alguns elogiavam sua destreza como peão e sua simpatia como companheiro de estrada, outros comentavam da infelicidade da jovem viúva e dos pequenos filhos órfãos agora deixados ao Deus dará. Um deles chegou a mencionar o fato de que o único defeito dele era não ter medo de nada, dizendo que: “... um homem que não conhece o medo carrega em sim um mal terrível, pois todos os homens devem conhecer o medo e tentar evitar certas coisas. Já ouvi dizer, não me lembro onde nem quando, mas se alguém olhar muito tempo para a escuridão hora ou outra as trevas acaba olhando de volta.” Certa vez, o cozinheiro que não era nada discreto e tinha certa antipatia pela preferência dispensada pelo capataz ao boiadeiro dissera por fim:

– Os filhos de Lourdinha pelo menos sabiam quem era o pai deles e tiveram o privilégio de algum contato com ele, mesmo que por vez ou outra ele estivesse distante por muito tempo. O pior são os outros filhos que Emanoel foi semeando pelas estradas por onde passou durante os últimos anos. Talvez alguns, – acredito eu – que ele mesmo, nunca nem o soube. Não é segredo para nenhum de nós, que o conhecia mais intimamente que Mané Faísca era um sujeito muito fogoso possuidor de um espírito inquieto e até onde se sabe jamais dispensou um rabo de saia, independente se era feia, bonita, casada ou solteira.

Daniel também relatou que foi a última vez que o nome de Emanoel fora citado entre a tropa, pois ao ouvir seus companheiros, de certo modo difamado a memória de seu falecido filho, o capataz parecendo estar profundamente ofendido principalmente com as palavras do cozinheiro e disse de forma firme e resoluta: 

– Acredito eu, com certeza plena, que temos muito mais o que fazer além de ficar nos preocupando com a vida alheia. Deixemos os mortos descansarem em paz e cuidemos de nossos devidos problemas, enquanto ainda estamos vivos, para que outrora, também não sejamos nós, motivos de falatórios sem aproveito, quando porventura já tivermos partido dessa vida.

Naquele dia Gardênia não quis aguardar pelo almoço, alegando não estar se sentindo muito bem, – fato esse que era verdadeiro, pois quando sentiu o cheiro da comida de Tia Jandira, seu estômago embrulhou-se por completo –. E mesmo com insistência de todos decidiu resolutamente voltar para sua casa. Antes de sair ainda perguntou a Daniel o que realmente o havia feito desistir da vida de tropeiro. O que Daniel respondeu com muita boa vontade.

– Além de tudo aquilo que presenciei com meus próprios olhos, o que foi determinante para minha decisão, foram as palavras do capataz proferidas perante a improvisada sepultura de Emanoel, que fora enterrado como um qualquer longe daqueles que o amavam e próximo a lugar nenhum.

– Um boiadeiro de estrada jamais deveria se casar e muito menos ter filhos, sendo que sua casa era uma estrada e a tropa sua verdadeira família. A esposa de um boiadeiro era uma viúva e seus filhos já eram órfãos de marido e pai ainda vivo. Um peão boiadeiro era como a poeira solta no ar...

Gardênia voltou para sua casa desconsolada, se sentindo a pessoa mais ultrajada dessa terra, pois trazia consigo no ventre o resultado da única tarde que passara na companhia daquele amável e sedutor boiadeiro que no resumir dos fatos se demonstrara ser um verdadeiro cafajeste, que nem mesmo a morte, que torna todas as pessoas em seres dignos e louváveis, conseguiu redimir lhe dar melhor apresentação. Até mesmo sua memória estava maculada. Caminhando sozinha pela mesma estrada que um dia, há não muito tempo atrás esteve ao lado de Emanoel, sentia-se a pior das criaturas, pois de certo modo trazia consigo a amargura da culpa por tudo aquilo. Naquele final de manhã, o sol estava castigando e queimava a pele. Sem chuvas há mais de dois meses, uma poeira fina da cor de sangue subia pela estrada quando o vento soprava enchendo os pulmões e ardendo os olhos. Gardênia de repente não soube distinguir se chorava pela poeira em seus olhos ou pelo sofrimento e angústia em seu coração e foi enfrentando todas aquelas sentimentalidades que chegou em casa com a decisão de relatar toda história que envolvia o boiadeiro a seu pai. Pai Thomas poderia parecer ser estranho e sombrio aos olhares alheios, mas era a única pessoa nesse mundo que, independente de qualquer coisa, sempre a protegera e em todas as ocasiões era seu dedicado e fiel companheiro.

Ao entrar em casa, seu pai a aguardava na sala, e logo percebeu que ela havia chorado muito. Sem nada dizer, deixou que ela lhe confidenciasse tudo que havia acontecido a ela e qual era sua real situação. Quando ele viu que ela havia desabafado o suficiente, Pai Thomas, após um longo e doloroso suspiro disse por fim.

– Minha querida filha, a quem tenho me dedicado tanto por todos esses anos, na verdade eu sempre soube de tudo, de alguma forma eu não sabia quando e nem onde tudo havia se passado, mas agora que você me disse que tudo ocorrera dentro daquela antiga capela, as coisas ficaram claras e somente agora consigo entender tudo. A respeito do boiadeiro, não se queixe mais, você nada teve haver com a morte dele, foi tudo obra do acaso, como você mesma me relatou foi um trágico acidente. Sobre a criança que carrega em seu ventre, eu também já sabia então também não se preocupe quanto a isso. Se consegui criar você sozinho, – quero que saibas que tenho bastante orgulho na bela e digna mulher em que você se transformou –, criar mais uma criança não será de todo impossível, ainda mais com sua ajuda e tenho a plena certeza que será uma ótima mãe, bem como és uma filha maravilhosa. A única coisa que lhe peço de todo o coração é que não ouse tentar me esconder mais nada novamente. Acredito que já ficou claro pra você, que nada fica oculto a mim por muito tempo. E quando a mentira ou uma inocente omissão parte de você é algo que muito me entristece, pois você é minha protegida. Gardênia, minha filha, você jamais deverá se esquecer que sou seu pai e só tenho você nesse mundo até agora, eu sempre estarei ao seu lado, haja o que houver, te protegendo e te dando apoio e conforto sempre que precisar...

Essa é a origem do único filho de Gardênia. Filho esse que era criado com todo zelo e dedicação possível. O fato de tão bela e recatada mulher se encontrar sozinha e sem marido, por parte, era também escolha dela mesma, após sofrer essas duas grandes decepções nos braços de dois homens que ao final não se mostraram tão diferentes um do outro na sua concepção. O primeiro se aproveitara de sua fraqueza física e o segundo de seus sentimentos. Desde a desilusão sofrida com o falecido boiadeiro Emanoel e principalmente depois do nascimento de seu filho, a própria Gardênia, sem nenhuma interferência de seu pai, decidira por ela mesma, se fechar completamente para o amor carnal, e que nenhum outro homem jamais a teria nos braços outra vez. Gardênia precisou sofrer duas grandes decepções para entender, pelo menos em partes, o porquê da vida solitária e acética de seu pai, que a todo custo se mantinha afastado de tudo e de todos. Desde que sua mãe morrera, seu pai jamais atravessara o umbral da porta de quem quer fosse por livre espontânea vontade a não ser para praticar aquilo que ele fazia de melhor. Tentar ajudar os outros nas questões espirituais.

Texto publicado na 4ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de abril de 2024. → Ler edição completa

Leia mais deste autor:

Anterior
Anterior

Sonnet d'Après la Mort 

Próximo
Próximo

VII