A Guirlanda

Foto de Erwan Hesry

É de facto verdade que o conhecimento é muito mais cego do que a inocência.
— Bram Stoker

Por motivos dos mais diversos, existem pessoas que trazem em sua bagagem de vida, traumas que lhe acompanham até o túmulo ou quem sabe por toda a eternidade, — se essa porventura vir a existir para nossa insignificante existência — causando-lhe diversos dissabores, não somente a si próprios, mas as vezes até em prejuízo de outrem. A inverossímil história de Oscar Caetano poderia ter todos os ingredientes para ser um enredo de superação e exemplo a ser seguido. Contudo, nem todas as histórias têm um final feliz, nem mesmo com todas as forças do universo agindo a favor, pois entre os seres humanos, mesmo que o infinito — aquele que rege o destino de tudo e de todos sem exceção — assim o deseje, nada pode acontecer e nem ser feito de forma que contraponha o Livre-arbítrio de uma pessoa. Mesmo que a história de cada um já esteja escrita, mesmo antes de seu nascimento, são suas escolhas, feitas durante sua trajetória terrena, que irão concluir as consequências finais de sua vida. A vida, a bem da verdade, é uma grande lavoura onde tudo que é plantado e mais dia menos dia deverá ser colhido. Assim sendo, o resultado de uma plantação ruim consiste numa colheita um tanto quanto não muito satisfatória.

Oscar, em muitas ocasiões de sua trágica existência, se viu obrigado a fazer escolhas que nem todos poderiam considerar como sendo corretas. É certo que, em diversas ocasiões, a situação não permitiria outra escolha que trouxesse um resultado satisfatório e imediato, em muitas ocasiões o individuo é movido pelo desespero e termina por se enveredar por caminhos incertos. Numa vida cheia de privações e decepções diversas, Oscar não era do tipo de pessoa que tinha grandes esperanças na possibilidade de um amanhã melhor, levando em consideração a existência de um ontem não muito agradável. Seguia sua vida de forma intempestiva e sem muitas expectativas, pois não acreditava em muita coisa a não ser nele mesmo e em satisfazer seus desejos a qualquer custo, inclusive em detrimento daqueles que por infelicidade do destino se encontravam na posição de sua esposa e filho. O pequeno Gilson era quem mais penava perante a devassidão e inconsequência daquele que deveria por obrigação moral ser seu maior exemplo. Nem sempre o pecado dos pais recai sobre os filhos. O certo é que a divida adquirida aqui também deve ser quitada.

Gilson era um jovem de origem simples e humilde, filho de pais sem muitas posses, teve uma infância muito pobre, cheia de privações e muitas humilhações. Numa casa humilde, desprovida de quase tudo onde até mesmo a comida era muito escassa, a palavrapresentesignificava apenaso agora, e não algo que vinha embrulhado em papel brilhante com um laço colorido. Aniversário era uma simples data que servia para contar os anos vividos; a Páscoa era o domingo posterior ao final de semana onde as ruas ficavam enfeitadas com ramos de palmeiras e o Natal não era nada mais que uma época onde pessoas bem situadas enfeitavam suas casas com luzes coloridas e, numa determinada noite muito especial, havia festas com muita comida e bebidas variadas, servidas aos convivas que às vezes vinham até de lugares distantes.

As dificuldades de uma vida sejam elas: decepções, frustrações ou até mesmo privações daquilo que lhe é indispensável à sobrevivência até podem ser compreendidas por um adulto senhor de suas capacidades mentais e emocionais, mas conseguir convencer uma criança que alguns poucos escolhidos podem usufruir de certos privilégios enquanto uma grande maioria apenas se restringe à simples oportunidade de sonhar com dias melhores não é uma tarefa fácil. Uma criança, independente da classe social que ela pertença, é um pequeno ser carregado de sonhos e fantasias. São singelos seres movidos pela magia do faz de conta. Se brincar é a sua única responsabilidade, sonhar é uma prática constante e sem fim. Gilson, mesmo sendo uma criança muito pobre, ainda assim com todas as privações possíveis que um ser pode suportar, conseguiu a oportunidade de se matricular numa escolinha de uma igreja Batista, que sua mãe vez por outra, frequentava quando o cansaço e a exaustão lhe permitiam.

Essa escola, como fazia parte de uma congregação cristã, tentava fazer jus aquilo que pregava em suas celebrações, no final de cada ano, sorteava bolsas de estudos para crianças carentes numa carismática forma de praticar o amor ao próximo, principalmente para aqueles que eram mais necessitados. Não se sabe se Gilson poderia se considerar um sortudo, pois sua vida no ambiente escolar era tão deprimente e humilhante como em qualquer outro lugar. Seu uniforme — já bastante surrado — não era tão bom quanto o de seus colegas; seus materiais eram incompletos e insuficientes — sempre havendo a necessidade de pegar algo emprestado — e por fim, como ele não se alimentava adequadamente em casa, assim que o lanche era servido, ele comia avidamente, fato que gerava piadas e gracejos por parte de seus colegas, que chegaram ao ponto de o apelidarem de ferrugem. Quando eles retornaram das férias do meio do ano, a professora solicitou que fosse feita uma redação com o odioso titulo: “O que você fez nas suas férias?” Mas o pior de tudo era os dias festivos, onde seus colegas disputavam entre si quem havia ganhado o melhor presente. Foi justamente na escola, próximo ao final do ano que Gilson ouviu pela primeira vez sobre as festas de fim de ano e tudo aquilo que envolve o espírito natalino e o verdadeiro sentido do Natal.

Sua professora — Tia Letícia — propôs a eles que todos fizessem uma guirlanda para ser colocada na porta de suas respectivas casas para que todos pudessem dar boas-vindas ao espírito do Natal em seus lares. Nessa mesma aula, Tia Letícia lhes explicou sobre o sentido do Natal, o que representava cada símbolo natalino e como não poderia ser diferente, citou-lhes sobre a importância dos presentes e a figura do Papai Noel, propondo que todos eles também escrevessem uma pequena carta para o bom velhinho mencionando o que gostariam de ganhar de presente de Natal. A aula foi esplêndida! Todos os alunos adoraram, principalmente quando Tia Letícia contou-lhes a história de São Nicolau — o bondoso e endinheirado senhor, que já no final de sua vida, distribuía presentes para crianças carentes de sua comunidade e lugarejos próximos — que após sua morte se tornara na lendária figura do Papai Noel e continuando seu ato de bondade passara a dar presentes de Natal a crianças do mundo todo, desde que essas tivessem sido comportadas e obedientes durante o ano.

Aquele dia foi um dia extraordinário para Gilson, talvez o dia mais feliz de sua vida até então. Durante o decorrer da aula — o último dia letivo do ano — influenciado pelo alegre ambiente festivo, completamente envolvido por toda aquela história de Natal, presentes, espírito natalino etc. e tal, por um breve momento chegou até mesmo esquecer-se de sua vida sofrida, e a triste realidade em que se encontrava sua deplorável existência. Contudo, como tudo em sua vida estava reduzido a um mundo de privações e necessidades, o breve momento de euforia logo se desfez assim que chegou em casa e se deparou com sua verdadeira realidade. Tia Letícia havia dito a eles que a cartinha para o Papai Noel deveria ser colocada sobre a lareira — para quem a tivesse em casa — ou aos pés da árvore de Natal e em último caso se assim fosse necessário, até mesmo na janela. A guirlanda deveria ser fixada na porta de entrada da casa para que todos pudessem ver. A jovem professora em sua doce inocência recomendara aos alunos para que pedissem auxílio a seus pais para prenderem suas guirlandas de forma segura, sem correr algum risco de se ferirem. Tia Letícia apenas não sabia que o pai de Gilson era o tipo de individuo singular, totalmente desprovido de qualquer sensibilidade ou algum sentimento nobre que o valha.

Oscar era o tipo de homem frustrado com vida e sua deprimente situação financeira, o que o tornava um sujeito sombrio e taciturno ao extremo. Passava a maioria do tempo embriagado e quando muito raramente trabalhava — na função de carpinteiro — o pouco que ganhava era gasto com bebidas e tabaco para seu velho cachimbo, eternamente pendurado num dos cantos da boca. Era já bastante velho na aparência e estava muito mais para avô do jovem Gilson do que para pai. Aos 54 anos casara-se com sua própria sobrinha órfã de pai e mãe, que ficara aos seus cuidados quando seus pais morreram quando ela tinha apenas 5 anos. Assim que ela tomou corpo de mulher antes mesmo de completar 13 anos, Oscar logo a tomou por esposa alegando que jamais deixaria sua amada sobrinha nas garras de um homem qualquer. Os dois primeiros filhos daquele incestuoso casal não vingaram, morrendo antes de completarem um ano de vida. Entretanto, Gilson o terceiro filho teimava em resistir a todas as agruras que a vida pudesse lhe oferecer. Em seu ultimo aniversário — no mês de julho — completara 7 anos. Mesmo com um corpo franzino de faces com semblante doentio era um menino bastante forte e resistente demonstrando esbanjar saúde e disposição e naquele dia em especial estava euforicamente feliz.

Assim que chegou em casa, pulando de contentamento pelas diversas novidades que aprendera na escola sobre o Natal e todas as maravilhas que envolvem esse abençoado evento, logo foi em busca de sua mãe para lhe relatar sobre os pormenores de seu dia na escola e mostrar-lhe sua bela guirlanda. Contudo, para sua decepção, sua mãe — como já era de costume — não estava em casa. Havia saído para trabalhar na limpeza da casa de alguma senhora distinta, que vez por outra, lhe contratava como faxineira. Isabel era uma mulher jovem, na idade de 26 anos ainda, mas já de aparência cansada e envelhecida pelas tristezas e decepções que a vida sempre lhe oferecera. Com um corpo também franzino — como seu próprio filho — com as faces chupadas, olhos fundos e um cabelo mal cuidado tinha a aparência de uma mulher bem mais velha. Desprovida de qualquer tipo de carinho e afeto desde que perdera seus pais, assim que se viu sob a tutela de seu tio, logo teve de esquecer qualquer coisa que se referisse a infância e fantasia, sem mais delongas logo se viu obrigada a assumir todas as responsabilidades dos afazeres da casa. Como a casa de seu tio não era muito grande e as tarefas domésticas não eram muitas, como lhe sobrava muito tempo ocioso, muito rapidamente seu tio entendeu que ela também poderia se ocupar em pequenas tarefas em casas alheias e assim ganhar algum trocado — que sem demora lhe era confiscado sem remors

Belinha — como era mais conhecida — logo se tornara uma faxineira bastante requisitada, pois trabalhava muito exigindo pouco. Assim sendo, todos os dias estava ocupada na casa de alguém prestando algum trabalho doméstico. Oscar, que mesmo ainda na juventude cheio de vigor e disposição nunca fora muito adepto ao trabalho, logo estava vivendo as expensas do parco ordenado que a sobrinha recebia. Assim que a tomou por esposa, como ela vivia debaixo de seu teto, se viu no direito de viver sendo sustentado pelo árduo trabalho de sua esposa que dava o melhor de si, dia após dia. Enquanto Belinha se matava no trabalho, derramando seu sagrado suor na limpeza de casas de grã-finos, Oscar por sua vez, quando não estava em casa de cama — de ressaca — alegando mal-estar, que se tornara uma constante nos últimos tempos, estava perambulando pelas ruas — de bar em bar — segundo ele em busca de algum trabalho que somente ele não conseguia encontrar jamais.

Quando Gilson entrou em casa muito eufórico gritando pela mãe — que estava ausente — sem receber nenhuma resposta, imaginando que naquela hora talvez seu pai não estivesse em casa, continuou com toda sua algazarra pela a casa adentro, mas para sua surpresa e infelicidade, todo aquele barulho acabou por acordar seu pai, que naquele infeliz momento estava tirando um cochilo vespertino no então denominado: “sono da beleza”. Oscar que, naquele dia, ainda não havia comido nada, mas já havia visto o fundo de uma garrafa, fato esse que já lhe alterara o juízo — que não era muito bom estando sóbrio — se levantara meio que assustado, meio que irritado e sem muitas palavras, logo recepcionara o filho com tabefes e safanões. Quando o menino ainda eufórico tentou argumentar sobre o motivo de toda aquela alegria, logo fora interrompido com mais uma demonstração de afeto que lhe deixara a orelha quente e o ouvido zumbindo. Esse último tapa fora sucedido por uma reprimenda sobrecarregada de lição de moral e diretrizes que deveriam ser seguidas perante uma pessoa mais velha. O sermão fora enfeitado com mais algumas ameaças, beliscões e diversas ofensas direcionadas à sua mãe que segundo Oscar, era a única culpada pelo menino não ter bons modos.

Muito decepcionado com aquela desprezível conduta de seu pai — um velho bêbado desprovido de qualquer forma de escrúpulos — Gilson se evadiu para o fundo do quintal para lamuriar as mágoas e momentaneamente lavar os olhos de dentro para fora. Refeito de mais um momento de tristeza e decepção, logo tratou de cuidar de suas obrigações. Tarefas essas que se não fossem feitas por ele, além de poder receber mais uma surra de seu pai e outra odiosa reprimenda, — que era pior do que as surras, pois sempre havia ofensas dispensadas a sua pobre mãe — sabia ele que, mesmo retornando exausta para casa, sua mãe teria que executar sem falta. Seu pai que também era tio de sua mãe, uma vez que, fora ele mesmo quem a educara, se sentia no direito de vez por outra, por qualquer motivo que fosse, bastava ele entender que fosse necessário, aplicava um corretivo nela também. Para evitar tais lastimáveis acontecimentos, tudo era feito de forma que seu pai não fosse contrariado em nada.

Assim que terminou todas as suas tarefas, influenciado pela ociosidade e pela ansiedade de agradar sua mãe, decidiu ele mesmo, sem nenhum auxilio fixar sua guirlanda na porta. Em sua ingenuidade e inocência, quisera ele fazer uma surpresa para sua querida mãe. Utilizando-se do martelo de seu pai — ferramenta de trabalho, do outrora competente e caprichoso carpinteiro Oscar — após subir num pequeno banquinho, iniciara o processo de fixar um prego na porta. Na primeira martelada conseguira a incrível façanha de quase arrancar uma de suas unhas numa forte pancada que errara o alvo e acertara em cheio um de seus dedos. Após alguns pinotes e sacudidelas na mão, sugou o sangue que brotara da unha e assim que a dor se aliviou um pouco, recomeçou sua hercúlea empreitada novamente. Quando já estava pegando o jeito de utilizar aquela pesada ferramenta, sem esfolar o restante dos dedos, estando o prego já quase todo fixado, seu pai mais uma vez se levantara devido a toda aquele bate-bate e assim que viu o filho com uma de suas sagradas ferramentas na mão foi tomado de um ódio incontrolável e sem remorso algum deu um tapa descomunal no peito do menino, que pelo susto em ver o pai naquele estado e já estando meio desequilibrado sobre o banquinho, com o sopapo que levara, caíra de costas jogando o martelo para alto. Essa enorme ferramenta fez um circulo no ar e ao cair acertara o menino em cheio no meio da testa. Oscar guiado pelo ódio fez a guirlanda em mil pedaços — destruindo por completo um sagrado símbolo natalino –. Antes de socorrer o filho, ainda quis lhe dar alguns safanões pela desobediência de ter pegado uma de suas ferramentas para brincar. Mas, ao perceber que o filho não se movia e que um fio de sangue já começava escorrer pelo ouvido da criança ficou momentaneamente atordoado e logo entrou num ensandecido desespero, imaginando que o filho estivesse morto. Rapidamente pegou a criança nos braços e saiu pela porta afora em busca de socorro. O diretor da escola — que também era pastor da igreja que Belinha frequentava — estando subindo a rua naquele exato momento foi quem lhe prestou os primeiros socorros levando pai e filho para o hospital.

Gilson dera entrada no pronto socorro com traumatismo craniano crônico. Oscar ainda meio embriagado com um insuportável bafo de cachaça misturado com tabaco, contou uma estória que a ninguém conseguira convencer. Alegou que estava deitado com um terrível mal estar e uma enxaqueca insuportável, quando ouvira o estrondoso barulho do filho caindo. Logo pode perceber que o menino estava tentando pregar alguma coisa na porta da sala utilizando-se de um pesado martelo e que certamente se desequilibrara do banquinho ao qual estava subido, quando acertara uma pancada no dedo. Na queda, possivelmente o martelo acertara sua cabeça. Assim que Belinha chegou ao pronto socorro sabendo que o filho estava em estado gravíssimo, mas ainda vivo, decidiu que o melhor a fazer era acreditar na historia de Oscar — mesmo sabendo no fundo de sua alma, que era uma mentira deslavada — pois sabia ela que qualquer coisa que dissesse naquele momento que pudesse desabonar seu marido e tio, certamente teria sérias consequências posteriores.

Naquela mesma noite, assim que fora informada pelo diretor daquele triste infortúnio, Tia Letícia ao chegar ao hospital a fim de visitar o pobre e infeliz Gilson que estava em coma profundo, contara a sua inconsolável mãe tudo o que havia ocorrido na escola naquele dia e como o menino estava feliz com toda história sobre o Natal e todos os outros pormenores, inclusive sobre a confecção da guirlanda que deveria ser afixada na porta de entrada da casa. Disse ainda como se sentia culpada por tudo aquilo. Belinha lhe confortara com palavras de afeto, tentando convencê-la que tudo fora um trágico acidente e que ela não era culpada de coisa alguma, pois em seu íntimo ela sabia realmente quem era o verdadeiro responsável pelo seu amado filho se encontrar naquela lastimável situação.

Por treze dias Gilson caminhou pelo vale da sombra da morte. Os médicos já não tinham mais esperanças e esperavam o fim do pobre menino a qualquer momento. Belinha era somente lágrimas e desespero, pois amava o filho mais que tudo nessa vida. Mesmo tendo de trabalhar durante os dias, passava todas as noites velando pelo menino em seu leito de morte. Oscar em nada mudara sua rotina, e quando em momento de desespero Belinha quis questionar algo sobre o acontecido foi violentamente reprimida com palavras ofensivas e alguns safanões. De forma ríspida — como lhe era de costume — culpara a pobre mãe pelo acontecido, alegando ser ela negligente com a educação do menino. Culpou também a inocente professora, por ficar inventando histórias sem sentido para as crianças. Belinha que já não estava mais suportando toda aquela situação, mesmo temendo a reação de seu tio, com uma voz carregada de dor dissera quase em sussurro:

– Ele é apenas uma criança cheio de sonhos e fantasias e nunca fez mal a ninguém.

Num ímpeto de uma terrível ira e num total descontrole emocional, recebendo aquelas palavras como algum tipo de desconfiança perante sua conduta sobre o acidente com o menino, aplicou em Belinha um violento corretivo e mais um de seus odiosos sermões sobre o funcionamento do mundo e a dura realidade que a vida nos impõe a cada dia. Belinha nada mais dissera sobre aquele assunto e seguira sua vida na esperança que seu filho pudesse se restabelecer e voltar logo para casa. Já na véspera de Natal, estando ela prostrada no leito do menino acariciando suas mirradas mãozinhas banhadas pelas lágrimas que caiam de seus olhos sem cessar, olhando para o crucifixo sobre a cabeceira da cama rogou a Cristo essas simples e dolorosas palavras:

– Senhor, sei que não sou digna de te pedir nada, mas não o peço por mim, mas rogo pelo meu filho amado. Também sei que o aniversário é seu e És Tu que deveria ganhar um presente, mas por tudo que é mais sagrado imploro por tua misericórdia e peço que coloque um fim em todo esse sofrimento. Se não puderes devolver meu filhinho que o leve Contigo para um lugar melhor.

Envolta nesse ambiente de dor e sofrimento, Belinha adormeceu prostrada aos pés daquele triste leito. Num sonho — talvez uma visão — teve a impressão de ter visto um vulto branco sobre o leito do menino. Pouco antes da meia noite acordou com o som de uma risada muito alegre vindo de algum lugar sobre a janela e ao levantar ser rosto viu que Gilson acariciava-lhe a face. Milagrosamente o menino se restabelecera por completo e já no dia seguinte — dia de Natal — os dois puderam retornar para casa como se nada tivesse acontecido. Caminhado de mãos dadas numa alegria incontida como se fossem as duas pessoas mais felizes do mundo logo entram em casa para se depararem com uma cena lamentável. Já na entrada da humilde sala — que se encontrava na mais completa desordem, como se uma terrível luta ali tivesse sido travada — encontraram o corpo de Oscar caído morto com os olhos estatelados de pavor. O mesmo martelo que causara o acidente no pobre Gilson estava fincado em sua testa e em seu peito havia profundos rasgos que deixavam os ossos de suas costelas à mostra. Marcas terríveis, que pareciam terem sido feitas por uma fera selvagem. Oscar segurava nas mãos uma pequeno pedaço de papel, que Gilson logo reconhecera como sendo sua cartinha para o Papel Noel. Na carta estava escrito com letras tímidas e tremidas:

Querido Papai Noel, na verdade não sei nem o que devo pedir, pois já tenho tudo que alguém possa sonhar na vida. Sou um menino muito abençoado, pois tenho o melhor dos presentes que alguém pode ter o amor de minha mãe. Mas se eu puder pedir um presente para outra pessoa, peço que se puderes, alivie os sofrimentos de minha pobre mãe e permita que ela possa viver em paz.

Conto publicado na 1ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2024. → Ler edição completa

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