A Casa Torta
Certo lugar, ao sul do país, numa destas regiões chamadas serras (abrigo de pequenas cidades e população reduzida), foi palco, não há muito tempo, de uma inquietante descoberta que, se não causara certo rebuliço nos jornais, ganhou considerável destaque entre os nichos interessados — continuando, muito provavelmente, sendo discutida nos fóruns mais recônditos da internet.
O acesso a essas informações — que certamente devem arregalar os olhos de quem as obtém — eu alcancei de forma quase involuntária, certa vez em que varava a madrugada em claro, em busca de entretenimento. Minha primeira sensação (lembrando agora daquela experiência inaudita) foi a de estar diante de uma mera ficção urbana, de um relato possivelmente retirado, com requintes de criação regional, de algum filme estrangeiro… Para minha surpresa, a leitura de tais informações, naquela vigília, me transformou em um investigador tão inquieto dos acontecimentos que não sosseguei enquanto não desvendasse mais a fundo a veracidade ou não daquela história.
Encontrei mais detalhes sobre o caso ao conseguir comunicação direta, via bate-papo, com uma das supostas testemunhas que estiveram no local, perto da descoberta… Por conta disso, para não expor nenhuma das partes envolvidas e evitar problemas legais, esse interlocutor me pediu total privacidade no testemunho descrito, me proporcionando, em contrapartida, a oportunidade de conhecer por completo (ou até onde ele sabia) a mais "aterradora" verdade da ocasião — considerando-me, inclusive, uma garantia de que a história vivenciada por ele teria a quem chegar...
***
M... tinha chegado à cidade como um turista, assim como muitos brasileiros que visitam aquela região em determinadas épocas do ano. Como naquele mês estava para acontecer um famoso festival que marca o nome da cidade, ele me disse ter unido o útil ao agradável e feito um esforço para conseguir meios de se sustentar até o final das celebrações. Tirando de onde podia os recursos para tal empreitada, pedindo aqui e ali para alguns parentes, em poucas horas se viu apto a não se preocupar mais em como iria dividir a despesa entre o turismo e os futuros gastos para presenciar o festival, tendo apenas de planejar, então, seus próximos passos no passeio.
Numa das andanças pela cidade, completamente rendido aos atrativos e ruas que lembravam uma paisagem europeia, M... dizia ter se enveredado para longe do centro, pois, à medida que caminhava (e convencido de que a segurança vista ali era das mais propícias à atividade), diminuía a presença de outros pedestres, limitando-se a ver apenas moradores em suas janelas ou pequenos comércios abertos, com pouca ou nenhuma clientela.
Dando uma olhada para o final das ruas onde se encontrava, na esperança de ver uma novidade que valesse ou não uma aproximação maior, M... descartava ou adicionava mais um passo em direção aos recantos da cidade, sentindo-se alguém disposto e convidado a desvendar o que quer que fosse sob o clima agradável do dia igualmente aprazível.
Gastando assim os créditos de um abençoado turista, sem se preocupar com o dia seguinte (estava de férias), foi então que houve uma virada nos rumos aparentemente imperturbáveis da viagem. Contornando uma imensa casa, do autêntico estilo “enxaimel”, bastante visto na região, M... prendeu o olhar numa estrutura que destoava de tudo o que ele havia presenciado desde a chegada.
Visivelmente inclinada, com o teto formando um ângulo quase colaborativo com a árvore vizinha ao empreendimento, avistava-se uma residência ou galpão, também construído no estilo tradicional. De onde estava, parado e surpreso com a observação incomum, M... diz ter esquecido até mesmo de fotografar a imagem, tamanha a estranheza do que se exibia naquela direção. Não tendo como ignorar o absurdo que seus olhos viam — até então maravilhados com toda a organização e asseio da cidade —, tudo o que ele fez foi avançar até lá para saber se alguém ou algo explicava o porquê da assimetria...
Para sua surpresa, segundo ele me disse, uma viatura policial cruzou seu caminho quando estava prestes a se dirigir diretamente para aquela estranha arquitetura. Vendo sair de dentro do carro um policial completamente equipado, M... afirmou ter sentido até medo, erguendo os braços como forma de comprovar sua inocência e dando a entender, em seguida, que era apenas um turista de passagem pelas ruas daquela região.
Disposto a ouvi-lo e exibindo nada mais que a preocupação natural da profissão, o policial tratou apenas de perguntar seu nome e saber as intenções de M... por aquelas ruas. Respondendo o óbvio, suas palavras, de acordo com o que me confessou, foram acompanhadas por um singelo aceno em direção àquela estranha casa, que o oficial logo tratou de observar. Perdendo alguns segundos para tentar compreender a peculiaríssima visão, os dois agora estavam absorvidos pela tortuosidade da casa, buscando alguma explicação plausível para o que se exibia diante deles naquela rua.
M... cogitou até sugerir ao policial que fossem os dois até lá para saber mais sobre a razão do fato; contudo, segundo suas palavras, o oficial parecia não acreditar que houvesse "nada demais", optando por indicar outro caminho ao visitante. Com um sorriso no rosto, o policial perguntou a M... se ele "não curtia cinema", pois naquela noite aconteceria a principal cerimônia a que concorriam muitos famosos, sugerindo que ele corresse para não perder um lugar para observar — "nem que fosse de longe".
E assim fez M..., dando as costas e partindo, sem deixar de dar outra olhada para aquela pequena, mas marcante paisagem que se alojara interrogativamente em sua cabeça.
Sabendo, pela boca do policial, da festa que estava para acontecer, M... disse ter simplesmente esquecido do ocorrido e partido numa carreira bastante apressada em direção ao centro da cidade. Em nosso bate-papo, lembrou ainda ter sentido a mesma calma e silêncio que havia ao chegar ali: poucas pessoas, pouco barulho naquelas ruas, menos até do que o presenciado horas antes. Quanto à casa, jurou não ter imaginado nada além de uma proposital construção, feita para atrair moradores locais ou turistas. O teto bastante inclinado, sugerindo um quase desmoronamento do material acima, possivelmente indicava, segundo ele, uma disposição particular de algum cômodo superior — agora fora do alcance de M... para ser visitado.
***
Na chegada ao centro, o esperado: fotógrafos, fãs, curiosos, seguranças e muita vitrine para aqueles que fariam da noite uma lembrança inesquecível. M..., se colocando entre os interessados pela novidade da aproximação com a gente famosa, mais do que realmente desejando pertencer a determinado público, deslumbrava-se com as luzes e o vozerio da noite. Por pouco, me disse ele, não enxergou um grupo de homens fardados, todos formando um círculo ao lado de viaturas enfileiradas.
M... se viu impelido a avançar até lá. Assim como, horas antes, havia sido impactado pela estranha imagem de uma construção “desabando”, agora, diante de um grupo de militares organizados, também era confrontado com um ímpeto de mistério a ser solucionado. Chegando perto de um dos oficiais que parecia disponível para um diálogo, M... tratou de confessar sua dúvida quanto à presença de tanta força policial ali, "certamente não necessária para um festival não tão numeroso"...
Descrença e susto. Pavor e fraqueza. Sorte e comoção… Com essas palavras, M... esboçou para mim uma tradução do que, para ele, era impossível de acreditar. Da fala econômica e incisiva do policial, como a de quem explica um acontecimento natural para uma pessoa menos experiente, ele diz ter ouvido a trágica ironia:
— Achamos uma casa repleta de corpos, todos colados na parede. Um maldito artista fez seu próprio troféu...
A cama estava sem o lençol. O espelho estava quebrado. Na cômoda havia poucos pertences: apenas um hábito limpo, algumas roupas íntimas…