Os Fantasmas na Tenebra de Minha Alma
A morte… sob a soturna treva que se sepulta no lúgubre ar, contemplo eu a morte.
Morrer, por fim, parece-me a resolução mais sensata para as funestas torturas que acometem meu miserável ser; sim, morreria, pois, somente entregando-me ao submundo, somente repousando no gélido de um mausoléu arcaico, poderia idealizar o recuperar de minha calmaria há muitas épocas dissipada por entre as nuvens da obscuridade que tudo consome. Como angustio, ansiando que a Morte roubasse-me o último suspiro de vida! À morte, rogo que me usurpe desta minha angústia, ainda que me encontre no mármore mais profundo do inferno!
Vós, cujos espíritos conservam a sanidade racional, não podeis compreender-me, sem embargo, ao tempo em que redijo meus infortúnios à negra tinta e à caligrafia de uma pena de corvo nesta memória amaldiçoada, concedo-me a lamúria de relatar-vos os fatos, as reminiscências ominosas que me fazem, no desafortunado presente, aspirar ao caráter putrefato de minha morte.
Minha alma, há tantos invernos, afligiu-se, atormentando-se por visões hórridas, as quais homem nenhum é apto a idealizar, se não pela ação do próprio Diabo. O mal, o pior dos males, rasteja por meu ser, como uma víbora, envenenando-me com imagens e sensações provindas das profundezas do abismo eterno de pecadores. O horror assombra-me, e, eu, a miserável eu, ambiciono somente por uma madrugada onde não mais os espíritos e demônios arruínem-me, em uma ocasião de crepúsculo em que possa, mesmo que em túmulo álgido e ausente de vida, descansar sem sofrer pelos murmúrios agonizantes que provém da eternidade perversa. Meus terrores não apresentam causa ou razão, há somente o caráter detestável, que, com seus aspectos tenebrosos, dilacera minha fleuma e distancia-me de uma boa mente sóbria; o que sou, nesta terrível contemporaneidade, é somente um reflexo esquelético do que um dia fora, um cadáver cujo sangue é ainda infernalmente cálido. Não, não só me sinto assombrada, como bem sei que, os infernos contemplados por meus negros olhos em todo o anoitecer em que a paz é-me arrebatada, apresentam-se como mais que os meros devaneios quiméricos de uma mente ardente em delírios.
Por efeito de meus próprios terrores, disponho de uma parca memória, gravemente tênue, que é incapaz de recordar-me mesmo de minhas mais estimadas lembranças, no entanto, em prol da coesão desta narrativa, empenho-me, apesar de meus sentidos debilitados, para lembrar-me de motivos e datas. Com um tom dúbio, ocultado pela névoa cinza de meus pensamentos, tenho a vaga recordação de enfraquecer-me por esta maldição de horror posteriormente ao abandonar de meu pretérito lar, em um outono de brisas uivantes em que empreendi uma longa viagem até a solitude das posses de minha estimada tia, a qual assisti até os derradeiros dias de sua enfermidade que, ao fim, em um anoitecer mudo como este, roubou-lhe a vida, levando-a ao seu sepulcro. Ulteriormente à tal fatalidade, que, com suficiência, já debilitava meus nervos, conservei-me nas dependências da arcaica residência que há gerações acolhe todos àqueles aos quais compartilho meu sangue; todos repousam no cemitério deste recinto e eu, esta débil herdeira, também enterrar-me-ei nesta terra maldita. E, nesta decisão mal refletida, reside minha dolorosa sina, que me condena a ser horrorizada pelo próprio anjo das trevas, para todo o sempre…
Nesta casa mal-aventurada, construída em meio à melancolia e infelicidade, há a solidão taciturna e somente esta; à parte de minha alma só, existem apenas os fantasmas, cuja intenção é arrastar-me até o mesmo inferno em que habitam. Por entre as galerias consumidas pela quietude sombria, vivo eu, contemplando minha tragédia que não há de ser contada pelas cores e nuances vívidos de um talentoso pintor, um homem de artes que desenharia meu drama na harmonia de um afresco. Nestes umbrais que bradam, na maré contrária às arfadas exorbitantes de um vento intenso, observo eu o horizonte sinistro que acolhe o exterior, questionando-me se mesmo na estranheza bucólica do mundo externo seria eu perturbada por estes espíritos agourentos que suporto em minha sombra. Todavia, mesmo no aquém da soledade de meu exílio turbulento, o medo oculta-se; em todo o desconhecido que se esconde nos vale de um verde pálido, na dura natureza intocável das colinas varridas pela brisa sazonal, nos ferozes lagos de águas turvas que abraçam os entornos da propriedade. Para além da fortaleza corroída por monstros, descansa a paisagem desolada, ausente de um só homem vivo, que, por certo, complementa-se às desgraças das ruínas desta casa.
Em minhas dependências pessoais, o terror constrói sua morada, morosamente, pois toda aflição é mais sentida quando a dor apresenta-se toda fiel noite; a maldade detém de sua própria sabedoria, não sem razão todo cálice de toxinas é melhor empregado como ferramenta de assassinato quando ministrado em pequenas doses, vós os sabeis melhor. E é neste mesmo leito, sufocada pela escuridão, que morro eu. O entardecer, o ocaso de tons cobres, que carrega o astro solar para o véu do horizonte, havia sido de grandes lamentações; quando as antigas pedras que erguem estes muros ainda acolhiam o cintilar diurno, tremia eu, ponderando sobre o que havia de passar-se quando a penumbra se fizesse minha só companhia. Meus dias têm passado-se em tais queixas silenciosas, que alimentam os pavores da psique fraca. Quando ainda há claridade, sinto-me em grande molesta, receando, mortalmente, o cair da noite, pois são nas sombras obscuras que os espíritos arrastam-se.
Inevitável, não obstante, é o regresso do escurecer. Destarte, recebo as agourentas novas do cenário noturno, com as mesmas desventuras que trucidam minhas vísceras como se fossem já um hábito. Em minha mortalha, onde zelo por minhas dores intensificadas perante meus presságios ruins, meus olhos veem-se incapazes de exercer o mero ato de fechar-se. Não há repouso para esta alma maldita, que não é apta a encontrar, no conforto de sua cama, o sossego da sonolência trazida pelas harpas divinas. Assim, desperta, não há empecilho para tudo que há de maligno visitar-me. Nesta insônia febril, suscitam-se, por minha consciência que se recusa a descansar, os piores delírios; padecimento, cólera, mágoa, ressentimento… Quando, por misericórdia de meus vilões, entrego-me aos braços de Morfeu, o maligno, também em sua própria hibernação, desadormece, aguardando-me para mais um período de terríveis visões.
Há apenas o escuro breu; diante de meu ser retraído, tudo é preto, pintado à escuridão que amedronta. Ainda que minhas pálpebras movam-se e busque eu, em vão, por uma fonte de luz, nada existe além de minhas entranhas e o vazio que sufoca. Em meu coração, sentimentos de ânsia intensificam-se, como uma febre irritante para os nervos, formigante para as mãos trêmulas e delirante para com o cérebro adoentado. Gélida, tal qual o inverno mais ferrenho nos alpes, suspiram minhas respirações entrecortadas, gravemente descompassadas, apressando-se e encurtando-se, fazendo do alçar e retrair de meus pulmões um ato quase taquicardíaco. Lágrimas carmesins derramam-se de meus lábios, que se oprimem até que o aroma de ferro propague-se no ar e a cor sanguínea manche toda a vida existente. Como presença constante de minha apreensão, tremores terríveis alastram-se por toda minha constituição, fazendo-me um esqueleto vacilante, incapaz de movimentar-se com clareza por seus críticos arrepios. De súbito, um pálido e bruxuleante cintilar contempla minha visão; o brilho que observo perante meus olhos fatigados é débil, tal qual minha própria saúde, impossibilitando-me de contemplar todo o quadro em meu derredor. Brevemente, experimento o perfume de brancos botões-de-ouro e dourados lírios, que me abraçam com seu frescor dos límpidos riachos de primavera. Por um minuto de hora, sinto-me diante da placidez calma, estudando o aroma de flores reconfortante e olvidando-me de quaisquer matérias terrenas. Entretanto, a paz que recai sobre meu ser mundano é, rapidamente, furtada pela personificação do desespero. Em meu cerne, uma cólica atroz grita, esbraveja, troveja desde meu coração até a última veia de sangue em meu corpo. O desconforto invade-me e logo arfo, ofegante em completa exasperação; os respiros de ar faltam-me, ao passo em que meus pulmões recobrem-me de algo que intoxica. Clamo, clamo aos céus e ao inferno para que me auxiliem, no entanto, nem mesmo a mais cândida prece salva-me. E, perante o desalento que me imerge, rendo-me ao meu último suspiro que me encaminha para as sombras…
Abruptamente, é já a madrugada maldita quando, por santo ou diabo, recobro meus sentidos e amanheço de meus tenebrosos sonhos ruins. No entanto, mesmo o recuperar de minhas boas respirações não faz-se suficiente para repor meus pobres nervos pois, com o temor de uma consciência acostumada a tais acontecimentos, a peça que encenar-se-á no anfiteatro do inferno é uma tragédia na qual esta atriz já não mais deseja atuar. Desgraçadamente, sem embargo, tal resolução não é-me concedida e, assim, sucumbo aos males de toda a madrugada. Então, em meu detestável derredor, o entendimento é apenas a penumbra, a escuridão; trevas e mais trevas ameaçam-me. Como sentir-se acolhida pelas sombras? É uma questão tola, que não dispõe de respostas sábias. Nos aposentos do inferno, a noite é sépia, de um ébano carvão como o sangue de um de seus diabólicos filhos. Entre a mudez das chamas ardentes do mármore e a infernal melodia da mudez que assassina, pouco há, além da escuridão. Somente a escuridão, e nada mais.
Lânguido vermelho, profundo preto da obscuridade, fantasmagórico branco de vultos. Inevitáveis, estes últimos torturam-me com as suas súbitas aparições. Aquelas malditas figuras tortuosas, desprovidas de contornos corretos, sobrevoam os entornos de meu leito como uma eterna maldição. Fantasmas de aspecto lívido perturbam-me, bailando em escárnio por cima de minha cabeça, tonteando-me com seus movimentos descoordenados e executados para causar-me tais enxaquecas. Esqueletos, grandes esqueletos desprovidos de órgãos, mas de cadavéricas bocas de dentições afiadas, que ferroam repetidamente, mastigando ossos e pedras ao pé de seus ouvidos já danificados. Suas largas bocas expõem suas horrendas línguas espectrais, fazendo graças e zombarias com a face de desgosto de meu ser infausto. Estas criaturas de Belzebus, pintam-se em um branco maldito, tal qual o cloro mais ácido, cloro este que anseio poder tragar, para que a morte liberte-me. Nesta dança da morte, rangem e remoem ossos, cantando em estridentes uivos transtornantes. E tais diabólicas figuras nunca apresentam-se sós, é uma certeza que minha mente debilitada adquiriu de experiências passadas. São estas somente a entrada para um horrendo prato principal.
E, em um ímpeto, manifesta-se o Diabo, o próprio Diabo! Por todas minhas maldições, sangram meus tímpanos, que se lastimam com a soada progressiva, arrastada, que cresce desde a entrada de meu quarto. Como passos estridentes, esta toada infernal rasteja, sempre mais alta e mais próxima. Para a minha miserável eu, resta somente encolher-me, aguardando, em prantos, que o perverso arruíne-me. Em meio ao vento que ameaça arrebatar-se contra os vitrais e persianas, o timbre de um arranhar surge, ferindo tal qual a lâmina de um punhal; é o dilacerar minucioso de algo, e temo eu, que este seja minha carcaça prestes a apodrecer em meio aos vermes da terra pútrida. Logo, o pesadelo de ruídos torna-se um espetáculo, rompendo em tragédias que me cegam. Por entre as nuances da completa penumbra, uma cena maldita gargalha perante meu drama; tardia, a aparição tenebrosa desloca-se, com o desgosto de um ente do submundo. Entre lágrimas de horror, contemplo as garras ausentes de um corpo, de uma matéria viva, que caminham nas sombras, somente nas sombras, deslizando sua entidade desgraçada nas paredes da extensão de todo o cômodo. Estas mãos, mãos de monstruosas garras afiadas, procuram por meu corpo, procuram por minhas lesões, procuram golpear-me. Navalhas, terríveis navalhas, suspendem-se sob meu crânio! Então, estas garras prendem-me!
Por meus demônios, hostilizo-me! Em meu desespero crescente, por alguma entidade sacra, sou capaz de desvencilhar-me, apressando-me a abandonar meus aposentos. Ausente do equilíbrio lógico para sequer dar-me conta de meus arredores, percorro, em meio ao escuro, os corredores negros, onde risadas diabólicas acompanham minha peregrinação rumo à morte. Torres em pedra, escadas em caracol, frestas em arcos, rosáceas, bustos em bronze, pinturas de um sangue amaldiçoado; abandono a tudo que existe no velho castelo para libertar-me. Quando aproximo-me do grande portal em abóbada cercado por duas torres, não há alívio em minha essência, apenas apresso-me, segura de não regressar, se não morta, ao mundo maldito que habita na fortaleza desta abadia ominosa. Posterior a mim, bem sei que o mal persegue-me, sedento por meu sangue infeliz.
Contudo, quando meus passos errantes traçam sua fuga sob a ponte arqueada de pedregulhos, congelo no instante, presa, por alguma razão, nas águas escuras abaixo de meus pés. Sob um véu azulado de neblina, o lago fita-me de volta e, de improviso, uma tempestade banha-me, como um dilúvio de memórias invadindo meus pensamentos soturnos. Minhas reflexões melancólicas, meus anseios tenebrosos, as flores, minhas vestes molhadas, minha face desbotada de vida… contemplando as águas, compreendo uma terrível resolução. Ante o abrigo das águas, meu reflexo é inexistente, minha imagem é desconhecida, meu ser não é presente neste plano; sempre estivera morta.
A cama estava sem o lençol. O espelho estava quebrado. Na cômoda havia poucos pertences: apenas um hábito limpo, algumas roupas íntimas…