Amorphallus

Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney

Amarílis beijou o adorado esposo, apanhou o toucado e partiu. Era dia de consulta marcada, o doutor Cravino examinaria a dor que vinha a incomodando há tempos, desde a infância para ser exata. Quando bebê, Amarílis quebrou a perna, imagine só um bebê com a pequena perna enfaixada, pois então, durante a vida, episódios como este ocorriam com espaços de seis anos, logo, aos quarenta, Amarílis era enfraquecida, torta e manca. Não fora por acaso que vivia quebrada, a mulher guardava um segredo, e este segredo a assombrava no sentido literal do vocábulo.

Ainda pequena, via fantasmas, embora os considerasse fantasmas, tinha ciência que caso fosse pedir proteção da mãe, a mesma os nomearia como demônios, pois era como acreditava, e a jovem Amarílis assustada o suficiente por ser assombrada por seres sobrenaturais, chamou-os pelo nome que sussurravam insistentemente antes de derrubá-la:

“Amorphalluss.’’

Os tais Amorphallus, eram medonhos em demasia para serem desprezados; eram esbranquiçados, de aparência cadavérica e translúcida, como envolvidos em um tecido de caimento enrugado e esticado, suas mãos, a maioria das vezes pousadas sobre o peito eram de aspecto humano, porém as extremidades eram avermelhadas em um tom rubro como se estivessem acabado de submergir de um lago sangrento, e de certa forma, por vezes pingavam o liquido avermelhado e viscoso o qual ao respingar sobre o chão transformava-se em pétalas de rosas, deixando um rastro por onde passavam.  Os olhos eram tristes e melancólicos, de aspecto leitoso e vazio, as bochechas ossudas constantemente tingiam-se de vermelho, como os de suas mãos, em círculos arredondados e simétricos.

Amarílis temia os Amorphallus, pois a perseguiam desde sempre, quanto mais madura, mais incomodada se sentia com o toque gelado de suas mãos a apalpá-la, torcerem seus mamilos, inserirem objetos pontiagudos em seus pés e mãos, e espetarem seu corpo com alfinetes. Quando não a tocavam, balbuciavam frases incompreensíveis, as quais compreendeu mais tarde, porém somente aos vinte cinco anos.

Por um tempo Amarílis fechou-se para a vida, pois não havia meios para disfarçar o incomodo, e ao ofender as criaturas invisíveis aos demais, ganhou o rótulo de louca, acuada e supersticiosa. Logo, já não a incomodava viver rodeada de Amorphallus inconvenientes, a mansidão a deixava mais bonita, disseram as criaturas uma certa vez, e rendida, aceitou a mansidão.

Mesmo solitária, à espera de uma condução colaborativa, era vista trajando mantos pesados sobre os ombros, bonnets enormes na cabeça, que a impedia de olhar para os lados e serviam com o propósito de esconder sua beleza, e por último saias enormes de cores sóbrias, para que as criaturas sobrenaturais não rastejassem por debaixo do tecido e enfiassem as longas unhas em sua carne. 

— Dói?

— Não.

Respondeu Amarílis, envergonhada pela quantidade de veias azuladas, as quais subiam por detrás de seus joelhos pálidos.

— Aqui?

— Não, porém sinto um estremecer no interior da perna e nos tornozelos.

— Hum...

A mulher mal finalizou sua resposta e um Amorphallus a encarou totalmente estático, porém, sentindo-se ignorado, o ser mal-intencionado abriu sua caixa toráxica de forma dramática a fim de apresentar o seu coração, muito parecido com o órgão humano, porém constituído de pétalas de rosas vermelhas. Doutor Cravino, alheio aos “problemas femininos’’ deixou o modesto leito em busca de uma compressa de gelo, a fim de aliviar a pressão do tornozelo de sua paciente.

— Onde sentes dor?

Questionou uma jovem no leito ao lado.

— Perna direita.

— Braço esquerdo.

— Desde menina...

— Desde bebê.

As duas damas se entreolharam em espanto, jamais tinham ouvido falar de uma situação como a delas, e logo em uníssono proferiram a razão de seus problemas:

— Amorphallus.

E com o simples pronunciar do nome, surgiram os seres de todas as partes, espalmando as mãos para cima e ascendendo a vela derretida que surgia de ambas as mãos sempre que as espalmavam. 

— Chamo-me Lacinta, trabalho como ama seca em um casarão de fazenda, e por lá apenas um Amorphallus surpreendeu-me. Singular até o monstrinho residente do casarão, porém nada desagradável comparado aos outros que vi até o momento.

— Sou passadeira, e chamo-me Amarílis – Respondeu Amarílis de forma amigável.

– Vejo Amorphallus por todos os lados, consigo os identificar mesmo escondidos.

— Gostam bastante de se esconder e de clamar piedade.

— Minha mãe jamais viu um.

— A minha também não.

— Porém, meu irmão....

— Como disse, Lacinta?

— Meu irmão enxerga Amorphallus.

— Céus! Imaginei que apenas mulheres os enxergavam...

— Creio que poucos homens o veem, porém de forma diferentes, no entanto igualmente arrepiantes e dramáticos. 

— O que os dele carregam no interior do peito?

— Um coração feito de penas de pássaros brancos e vermelhos. 

— Conte-me, a pior situação em que passou com um Amorphallus?

  Lacinta ponderou por um instante.

— Berraram ao meu ouvido, de modo que quase enlouqueci. Fizeram-me cometer fraude de assinatura e xingaram-me de nomes vulgares, acusaram-me injustamente e desapareceram por dias, deixando-me pensar que havia feito algo terrível e realmente merecia seus insultos. E os seus?

— Inferiorizaram algo que amava muito. 

— Tudo bem, não se aflija, quando casarmos desaparecerão para sempre, disse mam...

Lacinta interrompeu a frase deslizando os olhos amendoados para o círculo dourado ao redor do dedo de Amarílis.

— Não vão embora, não é mesmo?

 Exprimiu em preocupação.

— Jamais.

Texto publicado na 4ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datada de abril de 2024. → Ler edição completa

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