MidjourneyAI

Tomou-me o livro das mãos, ardil, com dor e fúria nos olhos.

 — Escute-me. Preciso de um ouvido. —  pediu, com tom de autoridade na voz.

Olhei para o meu livro, agora longe de mim, quase jogado em outra mesa por suas mãos esnobes. Direcionei o meu corpo para ele, ainda posicionada na cadeira. Nada proferi. Apenas o olhei, aguardando a sua voz e dando, assim, o meu ouvido para o seu tom.

 —  Sabes que tens os meus ouvidos para quando quiseres proferir as suas angústias.

 —  Uns cervos estão rondando este castelo. E o livro que você está lendo está os atraindo. Pare imediatamente. Eu tenho medo de cervos, você sabe. Você é a única que tem ciência desta minha fraqueza.

Sorrio, mas logo me contenho.

 —  Não se trata de fraqueza, senhor Lucius. É apenas um medo. O senhor tem um medo. Todos nós temos. E eu tenho um medo também.

 —  Qual o seu medo, Amma?

 —  Ser expulsa deste lugar e ter a sua confiança por mim perdida.

 —  Se continuar lendo aquele livro, isso vai acontecer.

 —  Esse era o meu outro medo. Mas aquele livro não fala sobre cervos e não tem nada que possa atraí-los.

 —  Mentirosa! —  grita, batendo forte as duas mãos sobre a mesa à minha frente.

Eu fecho os olhos e respiro fundo, amedrontada. Senhor Lucius me conhece. Me conhece totalmente, quase.

 —  Eu fui mentirosa. —  confesso. —  Mas eu não tenho esse tipo de caráter. Eu não lerei mais aquele livro. Não aqui no seu castelo. Posso lê-lo fora daqui. Na floresta, por exemplo, não posso?

 —  Na floresta? —  ele me rodeia, como se me analisasse. —  Quem é você, Amma? Quem? Não tem medos, nem receios grandiosos. Se comporta como se fosse um membro da minha família e não uma simples mucama.

 —  Eu sou aquela que o senhor viu atrás daquela cela, mal vestida, com olhar triste e...

− E educada, culta. Por isso a comprei.

 —  Mas o comércio de pessoas já foi proibido. Por que ainda me quer aqui neste castelo e me chama por esses apelidos? Por que não me dispensa, senhor Lucius?

 —  Você é mesmo muito atrevida e insolente! Eu me arrependi de ter lhe comprado. Deveria ter lhe devolvido para aquela gente, realmente. Mas dá dó de lhe privar de tudo o que você tem hoje.

Sorrio.

 —  O senhor se preocupa comigo. Parece bruto, mas apenas parece. Eu vou continuar minha leitura lá fora. - faço menção de levantar-me

 —  Espere! Eu não lhe dispensei .

 —  Sim, senhor Lucius, eu espero. Sabes que não me atrevo a retirar-me sem antes ser dispensada. - respondo fria, mas com feição serena.

 —  Desculpe-me. Eu devo estar mais exaltado hoje. Não deveria ter tratado você assim.

 —  Eu notei, senhor Lucius. Está desculpado. O que mais gostaria?

 —  Pegue o livro. —  ele aponta, agora mais calmo. —  Leia-o onde você quiser. Menos neste grandioso recinto. Aliás, aqui está.

Senhor Lucius posiciona o livro sobre a mesa, devolvendo-me. Não precisa eu entrar em discussão, nem exaltar-me para ter alguma razão. Aprendi a ser mais calma e resiliente. Com a minha paciência e subserviência eu consigo acalmá-lo da sua ira diária. Ele comprou-me para isso, na época em que ainda havia venda de seres humanos, cujos quais recebiam o título de escravos. Se ele não tivesse me comprado, ninguém mais me compraria. Aquele era o último momento, antes daquela atrocidade terminar. Vivemos em uma época muito difícil. A mulher é a mulher. E não sei se um dia eu estaria onde o Lucius está, não sei. Mas anseio tal realização em um futuro onde podemos ser e fazer as coisas naturalmente.

Dez anos antes:

 —  Pare de chorar. Eu não farei nada com você. Medusa, tire essa moçoila da minha frente. O choro dela é irritante e não quero sentir dor de cabeça hoje. Mostre-lhe um quarto e providencie vestimentas de qualidade para ela. Depois leve-a à sala de jantar. Ela precisa se alimentar o quanto antes. Onde está o Claus agora?

 —  Eu não sei, senhor. Mas ele saiu desde cedo e embrenhou-se nas matas.

O homem respira fundo, impaciente, e o meu choro começa a cessar, pela minha curiosidade sobre aquelas matas.

 —  Eu não sei o que tanto tem nessas matas para ele fazer isso! Mande outro servo ir buscá-lo por lá imediatamente. Quero que ele conheça a... Amma. —  tenta se recordar o nome, estalando os dedos próximo à sua fronte. — E saiba algumas coisas sobre a presença dela no meu castelo.

 —  Sim, senhor.

Eu fervo de raiva por aquele senhor esnobe. Dizer que o meu choro é irritante apenas me faz pensar que ele ignora a minha dor; ignora a humilhação de ser negociada, junto à outros seres humanos, como se eu fosse um objeto. Não fazer nada comigo é o mínimo que não deve acontecer. Quero dizer, não sei. Ele pode estar blefando e quando nenhum servo estiver por perto, eu serei o cardápio àquela mesa. Porque eles comem muita carne, e o sangue está bem presente aqui, eu vi. Aquela sala de jantar cheira a sangue. E se for preciso eu fugir por aquelas matas, eu irei, para não ser devorada, assim como um cervo totalmente aberto e sangrando, morto, próximo deste lugar.

Dias atuais:

 — Obrigada pela sua confiança, senhor Lucius. Eu não vou demorar. Estou no primeiro capítulo e só pretendo ler um por dia. Gosto de ler lentamente, assim como você saboreia o cálice de sangue que deita sobre a sua taça e desce a sua garganta abaixo.

 —  Cale-se! —  profere irascível.

 —  Eu estou apenas dizendo a verdade. O senhor bebe com uma satisfação incomparável. É sangue de cervo, não é? —  ele nada responde, mas olha para mim com ira. —  Talvez isso que os tenha atraído para os arredores deste castelo. O senhor os mata, devora a sua carne e depois bebe o seu sangue fresco. Beba mais sangue! O senhor tem a pele muito clara, senhor vampiro —  inconsequentemente o provoco.

 —  Já chega! Saia da minha frente imediatamente!

 —  Mas eu...

 —  Saia! Agora, Amma! — ele toca o encosto da cadeira firmemente.

 —  Sim, senhor Lucius. Com a sua licença.

Me retiro da biblioteca. Talvez, desta vez, eu tenha provocado a ira do senhor Lucius demais. Mas quero que ele saiba que sei muito bem quem ele é e o que tem feito.

Dirijo-me para fora do Castelo e sigo rumo às matas, com o livro em mãos. Encontro um grande cervo. Aproximo-me dele, sem receios e, de onde estou, visualizo o senhor Lucius olhando-me amedrontado da sua janela escura e encarando o cervo e eu. Lhe sorrio fria, irônica, próxima ao cervo, e abro o livro para continuar a leitura. Outros cervos se aproximam e o vampiro fecha a sua janela fortemente. Ouço um grito desesperado vindo dele —  o vento o traz. Certifico-me: Eu tinha medo do senhor Lucius. Agora ele é quem terá medo de mim.

Conto publicado na 1ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2024. → Ler edição completa

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Glícia Nathállia Campos

Nascida em um outono, na capital da Bahia, cresci em uma família que me proporcionou muito incentivo ao estudo e à cultura de qualidade. É por isso que sou uma pessoa que ama a leitura, o conhecimento, a escrita e outras áreas artísticas. Minha paixão pela arte faz aprofundar-me nela. Enfim, sou alguém com uma sensibilidade aflorada; aprendi a lidar com situações com muita humanidade, senso e responsabilidade. Sou livre de convenções e de preconceitos.

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