Amor de maldição

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Ela tinha a voz rouca, rasgada; quando falava, eu percebia em sua garganta o esforço que aquele gogó tinha para dar vazão ao som que parecia friccionar as cordas vocais. O resultado era aquele tom, aquele sonzinho meio que aveludado saindo de sua boca. Aquilo me lembrava das brincadeiras de infância, de quando eu transformava as pás do ventilador da empregada em microfone, o que me deixava com aquela voz metálica, de robô...

Entrei naquele cursinho sem saber o que me esperava. De início, era tudo uma surpresa, afinal, fazia tempo que eu não estudava, não abria um caderno. Naquele momento, tudo o que eu precisava era de conhecimento, elevar minhas capacidades para os vestibulares que se aproximavam. Eu estava disposta a estudar, a entrar numa faculdade, a ter um futuro em mente. Só não imaginava que começaria a amar...
Ela surgiu numa das matérias onde eu tinha as maiores dificuldades. Nunca gostei de ler, somente o necessário: revistas, jornais; eu lia o que tinha de mais banal, o mais corriqueiro; uma lida básica sobre a programação de tv e a previsão do tempo, alguma notícia policial, fofoca das celebridades... Literatura, nada... Machado de Assis, Clarice Lispector, Graciliano Ramos... eram nomes que eu só ouvira falar.

Quando ela começou a explicitar a importância daqueles autores, a dizer sobre o que eles tinham inovado, deixado para trás e começado a fazer, foi quando eu senti um choque, uma nova leva de sensações que eu nunca imaginei sentir. Se eu já havia amado alguém antes daquela maneira? creio que sim, mas há muito tempo. Aquilo tinha ocorrido com as mesmas proporções quando eu ainda estava no ensino fundamental, quando tinha recém deixado de ser uma criança, me preocupando já com roupas de marca e me decidindo pelos artistas favoritos. Gostava de um menino lá; não só eu, mas diversas colegas compartilhavam do mesmo gosto — até os meninos, que pareciam orbitar sempre ao redor do rapaz, meio que o amavam. Acabou que ele ficou com uma das apaixonadas por ele, uma alemã, que hoje em dia fiquei sabendo estar um horror de esquisita.

Enquanto passava aquele filme na minha cabeça, retornei ao estado de atenção que antes me proporcionara a reflexão. A professora me conquistava pela voz, cativava com seu doce modo de falar, de explicar a matéria. No ensino médio, nem perto chegavam de tal capacidade as professorinhas sonsas, que sabiam apenas copiar dos livros o conteúdo transmitido aos alunos — estes, então, achavam mais interessante bagunçar a sala ou ficar na deles escutando música nos fones de ouvido.

Ali, na frente da sala de aula do cursinho, se destacava um tipo diferente de professora, mais sabedora do assunto, mais culta, mais elegante. Detrás daqueles enormes aros dos óculos, eu observava uma profissional segura do que falava, preocupada em fisgar seus alunos pela transparência do discurso, sem rodeios, sem gaguejar. Era de outro mundo a professora de literatura daquele cursinho...

Alguns meses se passaram e as aulas foram se tornando mais e mais interessantes. Mergulhada no mundo dos livros, eu me via já prestes a poder me decidir sobre um futuro, sobre um rumo seguinte àquelas deliciosas horas passadas na pequena sala de aula. Enquanto copiava as coisas escritas no quadro branco, porém, eu compreendia receber estímulos não apenas dos esquemas organizados pelas canetas coloridas, das datas que me colocavam diante dos momentos-chave da literatura brasileira; enquanto eu transcrevia para as folhas do meu caderno o conteúdo exibido no quadro, eu escutava o som lírico e mágico fluindo lá da frente até meus ouvidos, que recebiam as angélicas vibrações acústicas da professora letrada e simpaticíssima, que falava e falava e falava, conquistando-me de maneira irreversível...

Minha intimidade com ela era do mesmo nível que o dos colegas: uma aproximação simplesmente comum, que bastava à solução de dúvidas e dicas de leitura. Numa dessas oportunidades, quando eu realmente precisei conversar a sós com ela para lhe avisar sobre uma futura falta minha nas aulas, foi quando tive um abalo bastante desagradável, um erro grosseiro da minha parte, um passo em falso da minha confiança que crescia e já não cabia em mim.

Sentada na classe dela, a professora percebeu minha aproximação, depois que todos os outros estudantes tinham ido embora. Cheguei ao seu lado, cumprimentei-a nervosamente e comecei a falar. Disse-lhe os motivos da minha ausência na aula seguinte, assuntos pessoais, um caso de saúde psíquica... Ela, calma e aberta ao diálogo, compreendeu no mesmo instante meu problema, passando a alongar o assunto até um ponto em que eu me esquecia do que falávamos. Respondendo-lhe de maneira automática, eu apenas concordava com suas proposições, acenando maquinalmente com minha cabeça a cada ideia ou exemplo de vida que ela me revelava. Em certo momento da conversa, já envolta pela aura animadora da professora, aliciada por uma força esmagadora imanente dela, eu me via, cegamente, de encontro ao ombro da mulher, jogando-me adormecidamente sobre o corpo imóvel e repousado da educadora... Num átimo, saída de uma viagem inebriante, numa fuga temporal incompreensível, eu retornava àquela realidade estudantil, sendo cutucada no pulso, no antebraço pelos dedos finos e delicados da professora.

Baixo minhas vistas e me deparo com o sorriso indeciso dela, um sorriso que me deixava contra a parede, obrigada a me explicar imediatamente...

Minha vontade era de sumir, consumir-me em pó e sair voando pela janela aberta da sala — janela que eu abria, às vezes, devido aos calores desconfortáveis que sentia de uma hora para outra —, que lá de fora recebia um vento refrescante e rumoroso da noite. Como explicar-me, encontrar palavras para traduzir os efeitos efusivos da voz conquistadora e enfeitiçada que dela vinha até meus tímpanos? Como eu iria me aprumar, retomar uma postura que já não se sustentava com forças naturais, e me manter séria ao confessar à professora o sortilégio que era escutar os ruídos quase imperceptíveis de sua voz rouca?

Fiz-me de desentendida e contornei a situação. Revelei a ela uma suposta queda de pressão, que vez ou outra me acometia nos momentos mais inoportunos, fazendo-me buscar apoio nos esteios mais próximos do corpo. Pedi a ela que não tomasse "conclusões precipitadas", fazendo de tudo para fazê-la acreditar naquele sintoma mentiroso. Fiquei segura da minha conduta ao ver a professora depositar seus materiais, suas canetas e celular dentro da bolsa, pedindo a seguir que eu lhe avisasse caso sentisse a necessidade de ir ao hospital.

De início, achei "gracioso" da parte dela oferecer assim, sem empecilhos, uma carona para me socorrer. Contudo, eu sabia que seria um logro, uma enganação da minha parte continuar com aquele jogo. Por mais que eu quisesse escalar aquele montante de chances que eu tinha de me aproximar ainda mais da professora, "coloquei meus pés no chão" e resolvi não fazer uso da boa vontade dela. Abrandei sua autêntica preocupação e me apresentei revigorada, passado o "susto" que antes me afligira.
Despedimo-nos uma da outra e saí da sala. Enquanto caminhava pelo longo corredor da escola, rumo à saída, eu sentia no peito um misto de ardor e esmorecimento, duas temperaturas que se misturavam e formavam um sentimento esquisito, caótico e — o que sobressaltava dentre minhas suposições — "verdadeiro", resultado de uma experiência vivenciada num ambiente de estudos, de discussões literárias...

Naquele dia em que faltei à aula do cursinho, me senti extremamente mal. Como se um buraco surgisse no meu âmago, meu organismo se agitava dum modo que eu não conseguia acompanhar. Não era dor, nem um desconforto passageiro; o mais próximo que eu chegava de concluir era que sofria de uma "falta", de um furto às minhas necessidades mais vitais.

A terapia que eu frequentava já não supria a realidade em que eu me via feliz, saudável, "normal". As palavras da doutora, "profissional", "especialista", entravam por um ouvido e saíam no outro. Eu já tinha me apercebido do poder da palavra: era tarde. As tentativas dela de me ludibriar, de me fazer ver meus "problemas" de uma outra forma, eram falhas. A professora de literatura do cursinho tinha me apresentado, de um modo muitíssimo superior, a virtude das palavras, a estética das boas letras, a medida intocável da poesia formal, a anarquia revolucionária do estilo livre... A psicologia, perto da literatura, era apenas uma sombra, incapaz de tomar o protagonismo da prosa humana, patrimônio "material" da humanidade.

Saí do consultório decidida a não mais voltar — que me cobrassem os custos necessários! O que eu precisava era ler, adicionar mais material à minha cultura, armazenar mais informação no meu histórico de leituras feitas. Eu chegaria em casa, onde vivia sozinha, herdeira de um casamento suicida, e faria uma maratona, um sarau literário comigo mesma. Tinha nas minhas prateleiras quase todos os romances indicados pela professora, dos mais basilares do academicismo brasileiro até os clássicos do Velho Continente.

Chegando em casa, estagnei diante daqueles novíssimos volumes que enfeitavam as paredes da sala, dos quartos, dos criados-mudos. Sobre o tapete oriental, volumoso e colorido, ornamento secular da residência, havia caixas de papelão, encomendas pagas, títulos esgotados no mercado editorial brasileiro, encontrados apenas em revendedores particulares — um labirinto de opções, horas e horas possíveis de se passar num universo criado por autores nacionais e internacionais, por cânones, por vanguardistas...

Subi ao meu quarto e optei por uma leitura em voga nas últimas aulas do cursinho. Uma coletânea de contos, tramas fantásticas e absurdas, escritas por um autor maldito e obscuro... coisas que a professora dizia nas aulas. Aquela seria a obra que me acompanharia em mais uma noite, passada sob a luz da lua que penetrava curiosa pelas janelas retangulares do solar...

Na semana seguinte, eu estava de volta ao cursinho. Sete dias longe da sala de aula, e eu havia me dado conta do efeito avassalador causado pelo acúmulo de histórias na minha cabeça; um zunido capcioso, sugestivo, sobrepunha agora as picuinhas cotidianas que eu estava acostumada a vivenciar. A simples observação dos raios do sol, a lamúria dos pombos, o barulho sussurrante das folhas que no jardim exterior caíam das árvores, que até pouco tempo me comunicavam alguma "poesia", agora eram transformados em meros significados, em raquíticos acontecimentos, muito aquéns de uma realização potencial; havia agora um verdadeiro motivo na vida, que eu cogitava ser plausível, real...

Não seria nenhuma grande loucura, uma atitude impensada... Poe, ao escrever seu conto, devia estar sob o efeito de alucinógenos, do ópio talvez. Eu estava alucinada, sabia disso. O sortilégio que me dominava era real, vinha da professora, do ar expelido pelos pulmões dela. Sua voz me conquistara desde o primeiro dia de aula, quando ela chegou na sala e se apresentou para a turma. A partir dali, nenhum domínio eu tinha sobre o futuro de nossa relação; fosse uma amizade, um namoro, uma simples relação alternativa entre duas mulheres, fato é que não seria um relacionamento normal. Havia desde aquele primeiro encontro um combustível a mais para a minha presença ali, entre gente desconhecida e em busca de uma vaga na universidade. Eu chegava apenas ao cume de um romantismo tardio, não vivenciado de maneira semelhante até àquela altura da minha vida.

Aproximando-me da escola, eu me descobria trêmula, bastante ansiosa para aquela chegada na sala de aula após uma semana longe das exposições, da classe, da voz aveludada da professora. O meu desejo era que as coisas ocorressem como eu fantasiava: uma recepção acalorada da educadora, um "como estás?" sincero, preocupado, naquele tom de voz ruidoso pelo qual eu amava ser "seduzida"...

Soubesse eu que a dura realidade ainda vigorava, que os acontecimentos lidos nos livros estavam longe dos destinos traçados pela efêmera e limitante existência efetiva, eu faltaria mais uma semana, abandonava de vez o cursinho, não mais iria ao encontro da professora...

Meus pêsames professora, foi uma infelicidade, uma grandessíssima pena eu ter visto a senhora naquela situação, quando eu cruzava a rua, prestes a adentrar no portão da escola. Você e seu namorado, seu marido, eu não sabia... Para mim você era única, singular, uma pessoa imaculada, sem traços de parentesco com ninguém, uma divindade na Terra. Eu, órfã e sozinha, sem amparos que me fizessem acreditar na solidariedade humana, depositava em você toda esperança de ainda me ver com alguém, preenchida de um amor que eu nunca tive... Uma lástima aquela visão...

Ainda mais cruel foi você ter me chamado, com seu irrecusável sorriso no rosto, a fim de me apresentar para aquele invasor, seu companheiro. O que você queria? que eu me abrisse toda para ele? que eu demonstrasse simpatia diante do ladrão de sonhos? Impossível. Eu estava arrasada, não conseguindo acreditar em tamanha desilusão.
Cumprimentei você e seu homenzinho e desviei para o corredor da morte, em direção à sala de aula, que jazia abandonada pela professora e sua pureza intocável.
Aquela foi a pior aula, a menos interessante, sem graça alguma. Você, absolutamente calma, parecendo não suspeitar da dor que eu sentia, continuava falando, sem interromper sua ladainha, nem por um minuto. Quando você finalmente parou, não foi para descansar, para beber um pouco d'água na sua garrafinha e revigorar o encanto da sua distinta voz: vi que você pegou o celular e pediu licença a todos, saindo porta afora a seguir... Aquilo irritou-me profundamente, foi o estopim!

Quando você retornou, com aquele seu costumeiro sorriso, eu já era outra, assumira uma insólita identidade. Mantive a pose, fazendo de conta que escutava e me interessava pela sua aula, ficando assim até o final, até onde minha paciência suportava. Podia-se dizer que minha feição exterior era completamente oposta à interior; corroída, deteriorada... insuportável era o peso que me atormentava naqueles minutos finais de aula.
Quando acabou aquele tormento, esperei que todos tivessem juntado seus pertences, me certificando de que não sobrasse nenhuma vivalma para testemunhar meus passos seguintes. Esperei você guardar suas coisas, apagar o quadro, fechar seu livro... Eu reorganizei a sala, coloquei as cadeiras no lugar, alinhei-as todas; deixei o ambiente limpo, para assim ele ser encontrado pela turma da manhã seguinte, como você sempre nos lembrava... Então me aproximei de ti.

Você nem suspeitava, estava segura, tranquila como nunca! Parecia feliz; sem sorrir, sem exclamação alguma, eu detectava essa felicidade, esse porto seguro existindo em algum lugar... um lugar distante dali, daquela sala. Nem meu olhar, que fuzilava seu rosto, sua boca, em busca de respostas para desmascarar a bruxaria oriunda de sua voz você era capaz de decifrar... Você realmente estava em outra...

Primeiramente, eu pensei em mentir, em te deixar preocupada como naquela vez em que quase desmaiei no seu colo, e pedir uma carona até a minha casa. Mas aí pensei de novo. Num instante, achei melhor nutrir sua curiosidade e dizer que havia lhe comprado um presente, uma "coleção de obras" que você não acreditaria quando visse; você me olhou interessada, dando créditos àquelas palavras... Eu torcia para que você não acreditasse.

Fomos juntas no seu carro, pela primeira vez. Você dirigia e me perguntava pelo nome das ruas, confirmando no seu GPS o endereço da minha casa. Mal habituada àquele bairro distante da periferia, sua cabeça não parava de se mexer, olhando a todo momento para os lados — creio que fascinada pela arquitetura das residências. Enfim, tínhamos chegado...

Desembarcamos do carro e caminhamos lado a lado até as proximidades da minha casa. Você continuava surpresa com a região onde que eu morava, elogiando a limpeza das ruas, estimando o silêncio "respeitoso" da vizinhança... Quando eu contornei o imenso cercado, acionando a abertura do portão, você perguntou: "chegamos?"... Sim, essa era a minha casa...

Com as luzes ligadas aqui dentro, você achou que tinha gente, perguntou se eu estava "acompanhada". Claro que não. Mas não te julgo, eu nunca lhe disse nada, nenhum detalhe sobre a minha vida... Você passou pela porta, esperei que se aproximasse da vasta prateleira com livros, e te golpeei...

Atingi sua nuca com o atiçador da lareira, esforçando-me com o mínimo da força necessária para fazê-la desmaiar. Você caiu dura, causando um estrondo no tapete da sala. Corri para o seu lado e logo me certifiquei do seu desmaio; você ainda respirava, fazia barulhos com a garganta, saía ar do seu nariz..., mas não abria os olhos...

Peguei as chaves da empregada, há muito esquecidas sobre a papelada dos advogados, e abri o pequeno compartimento embaixo da escadaria. Após, voltei para perto do seu corpo desacordado, assustadoramente imóvel, e agarrei seus calcanhares; tive de me esforçar para puxá-la até o pequeno quarto, depositando com extrema agonia e dó sua figura inerte sobre aquele colchão surrado...

O arrependimento, mesmo que tardio, não trará mais nada de volta, nem sua confiança, nem seu espectro simpático, que tanto me fez tentar contornar a desconfiança sobre este mundo, essa realidade ora estimulante — como a sua voz acalentadora —, ora insatisfatória...

Subi agora há pouco, ainda posso te ouvir, caso você desperte... Enquanto você dorme — espero que durma —, continuarei lendo A carne, de Júlio Ribeiro, livro que você me indicara. Estou amando... verbo perigoso esse... Espero ouvir novamente sua voz.

Texto publicado na Edição 10 - Aborom, do Castelo Drácula. Datado de outubro de 2024. → Ler edição completa

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