Hereditário

MidjouneyAI

Desde o princípio mais remoto da caminhada da humanidade por essa terra, o homem, esse magnífico ser pensante, utilizando-se de sua singular capacidade de raciocínio, sempre esteve envolto a invenções e mecanismos que quase todo o tempo lhe proporcionou satisfatórias vantagens sobre as inúmeras adversidades e percalços que poderia a vir enfrentar durante sua insignificante existência nessa aventura chamada vida. Principiando pelo controle do fogo, — que talvez tenha sido o primeiro e maior avanço para aquele ser ainda primitivo, que possivelmente, talvez por algum acidente da natureza ou para quem quer acreditar, um presente de Prometeu, de repente se viu com a satisfatória possibilidade de, com apenas uma simples fogueira, poder se aquecer em congelantes noites de inverno e, ao mesmo tempo, iluminar as tenebrosas noites sem luar nos fundos de uma caverna escura, mas principalmente cozer seus alimentos, os tornado mais palatáveis e mais digeríveis.

Passando pela descoberta ou quem sabe talvez a invenção da roda, — mecanismo esse que para muitos é considerado como a maior de todas as invenções, pois somente a partir da roda, a grande maioria das outras invenções se tornaram possíveis — até chegar ao domínio dos céus, após a invenção dos aviões — primeiro, simples aeroplanos que mais pareciam armadilhas voadoras, posteriormente os confiáveis aviões comerciais capazes de transportar dezenas de passageiros de uma lado ao outro do mundo em questão de horas, até a invenção de potentes jatos supersônicos com incríveis capacidade de deslocamento —. 

As descobertas e invenções desse inquietante ser pensante, na maioria das vezes, trouxe-lhe mais conforto e maior possibilidade de controlar e até mesmo alterar a natureza ao seu bel prazer.

A partir do surgimento das primeiras carroças — primeiro; puxadas por braços humanos, posteriormente por tração animal — barcos a vela e logo após a vapor, locomotivas, automóveis, seguidos por fim pelo intrépido avião, o homem conseguiu com seu incrível senso de inventividade vencer grandes distâncias em curto espaço de tempo, conseguindo chegar com suas engenhocas a lugares, antes até mesmo, inimagináveis. Contudo, bem como a própria evolução não é equânime a todos os seres vivos da mesma forma, nem todos as invenções servem a todos ao mesmo tempo. Enquanto em determinadas regiões, os meios de transporte já estão avançados ao ponto de enormes congestionamentos assolarem as ruas e avenidas dos grandes centros urbanos, por outro lado, em muitos lugares, ainda ermos e distantes, o translado de uma local para o outro qualquer, ainda é feito sobre o lombo de animais de carga, ou na maioria das vezes, sobre as próprias pernas. Nesses pitorescos lugares, onde o tempo passa muito lentamente e as novidades demoram bastante tempo a chegar, quando se faz necessário o transporte de alguma carga, essa obrigatoriamente é transportada por animais ou até mesmo nos próprios ombros das pessoas que habitam essas longínquas e esquecidas regiões.

Em muitas regiões dos mais profundos rincões do sertão, nem mesmo estradas existem, apenas tortuosos e improvisados caminhos, por onde se tocam boiadas. Sobre pequenos regatos ou até mesmo estreitos riachos, muitas das vezes não existem pontes, quando muito uma simples e traiçoeira pinguela que quase sempre é feita com rústicos e abaulados troncos de árvores que por uma tempestade um pouco mais violenta, caem sobre o veio d’água ou próximo as margens. Se, o rio é um pouco mais largo e muito caudaloso com fortes correntezas, a travessia deve ser feita em canoas. É sempre comum nesses caminhos cortados por largos rios, haver às margens desse mesmo rio a presença de um canoeiro, que morando pelas cercanias, sempre se demonstra a disposição para atravessar qualquer um que esteja disposto a pagar uma pequena taxa, cobrado, pelo indispensável serviço. Contudo quando em períodos de chuvas intensas, e rio se encontra cheio bem acima de seus limites aceitáveis, com suas correntezas em bravia violência, se faz necessário baixar acampamento às margens desse rio e aguardar, as vezes por dias ou até semanas, até as águas diminuírem de volume e as correntezas amainarem um pouco sua violência para, então, se fazer a travessia de forma segura. Um canoeiro experiente, que conhece bem o rio onde ele presta seus serviços, por dinheiro nenhum desse mundo, ousa desafiar a violência das águas e as inconstantes forças da natureza que de forma impiedosa ali imperam.

Nesses determinados lugares, distantes de quase tudo aquilo que possa ser considerado civilizado e evoluído em comparação às grandes cidades, reina o atraso e o obscurantismo num grau assustador aos olhos de um ser citadino, isto é, há um angustiante misticismo, carregado de todo tipo de estórias e costumes, ainda um tanto quanto, arcaicos se faz presente. O homem nessas regiões ainda está muito ligado a natureza que, por sua vez, rege sua vida desde o nascimento até bem depois de sua morte. A religião com seus dogmas e costumes também se faz presente durante toda a vida desses seres, ditando as regras básicas de como suas vidas devem ser geridas a fim de no final de sua inquietante e sofrida trajetória, o descanso eterno possa lhe ser possível.

Se por um lado algumas engenhocas mecânicas ainda não são conhecidas de muitos sertanejos embrenhados pelos mais longínquos lugares, no campo do conhecimento intelectual não é tão diferente. Esse mesmo individuo que ainda não teve contato com as inovações tecnológicas tão pouco teve acesso as belas letras da literatura de Shakespeare, Victor Hugo, Goethe, Dostoiévski e tantos outros, nem de longe sabe por onde passa a geometria euclidiana, as ideias de Platão ao seu costume interiorano de ser obediente e temente a Deus podem facilmente ser entendidas como uma imperdoável blasfêmia passível dos mais temíveis castigos divinos. Nessas ermas regiões os costumes ancestrais são obedecidos a risca pelos mais velhos, que de forma equânime as ensina aos mais jovens que, assim que as apreendem, dão continuidade ao eterno ciclo de saberes e costumes que dão certo sentido às suas insípidas vidas campesinas.

Um desses costumes era que, o local de sepultamento de um individuo — independente de quem fosse ou o que tivesse feito em vida –, deveria ser um cemitério, ou seja um campo santo previamente benzido por autoridades eclesiásticas com autonomia para tal. Se, porventura, esse mesmo individuo que se deparou com o seu último e inadiável compromisso nessa terra, residisse distante de algum cemitério, seu corpo após as exéquias iniciais — lavagem e preparação do corpo para o funeral — logo, deveria ser transportado para o cemitério mais próximo de sua antiga morada. Nesses ermos e distantes locais, onde ainda não existia meios de transportes mais adequados, o traslado do falecido sempre era feito por seus pares mais próximos — fossem eles parentes, amigos, conhecidos ou apenas papa-defuntos — em rústicas padiolas rapidamente improvisadas, denominadas no linguajar do sertão como banguê.

Justamente em uma dessas regiões, onde ainda o progresso demoraria um longo tempo a se fazer presente, em certa manhã escura de novembro, muito fria e de constante chuvisqueiro, viu-se por um desses improvisados caminhos, um pequeno grupo de transeuntes que caminhavam no mais respeitoso silêncio com passos tão lentos que facilmente poderiam ser contados por quem desocupadamente os observasse. O silêncio entre o grupo era absolutamente melancólico, o único som que pudesse ser ouvido era de seus próprios passos ou aqueles inconfundíveis sons que a natureza em seu esplendor matinal brinda qualquer um que tenha tempo para apreciar, — o leve cair da chuva, o vento frio, que vez por outra soprava entre as folhas das frondosas árvores e o alegre cantar dos pássaros em agradecimento por mais um dia em suas vidas. À frente desse grupo caminhavam quatro homens fortes, mas, ainda assim, já bastante fatigados pelo frio e pelo cansaço, por estarem carregando aos ombros nus um banguê, com um enorme e rústico caixão, que dava a impressão de ter sido improvisado muito às pressas, com algumas tábuas fortes mais já bem velhas.

Esse silencioso grupo não era muito grande, oito homens que se revezavam de tempos em tempos no transporte do banguê, que visto, mesmo de longe, dava a impressão de estar bastante pesado. Além desses incansáveis e vigorosos transportadores, havia ainda uma chorosa e muito bela mulher, aparentando ainda estar na flor da idade, essa triste criatura arrastava pelo braço um belo jovem de aparência muito angelical de uns doze anos, talvez até um pouco mais, pois era difícil determinar sua idade certa, se por um lado seus gestos e aparência era um tanto quanto infantis seu tamanho físico era um tanto quanto descomunal. Tinha ele, já o tamanho de um homem adulto, tanto em altura bem como em largura com uma estatura já bem definida, contudo seu semblante trazia em si traços de uma inocente infância bem cultivada. Esse viçoso jovem de pele amorenada num tom bem leve, de vasta cabeleira cacheada da cor de ouro escuro, se demonstrava ser uma criança muito inquieta e bastante irritadiça e naquele momento em questão, estava num frenesi que misturava seu temperamento indócil com o sentimento de perda de algo muito precioso.

Como não era para menos, pois além de ter perdido um ente muito querido para ele, estava enfrentando uma longa caminhada debaixo de uma chuva fria, que nem por um instante sequer dava uma mínima trégua. Devido a tudo isso, vez por outra reclamava do frio e do cansaço quebrando o respeitoso silêncio que de forma involuntária era estabelecido por todos. Essas inconvenientes reclamações, que vez por outra eram dirigidas a sua bela e melancólica mãe, — que além do sofrimento de perda que lhe dilacerava a alma já estava se impacientando com essas indiscrições — já haviam lhe rendido alguns dolorosos beliscões e algumas caras feias, por parte dos mais velhos que ajudavam no traslado daquela funérea carga. Esse pequeno e silencioso grupo era então num total de dez pessoas, coincidentemente como; os dez mandamentos ou os dez Sephiroths — os atributos de Deus na criação do Universo — o certo era que mesmo que involuntariamente, os dez criavam uma espécie de circulo protetor ao redor daquela funesta carga. Logicamente que nenhum deles tivesse a menor noção disso tudo.

Completando o fúnebre grupo, era óbvio que havia o defunto, que estava dentro daquele improvisado esquife, que era trasladado, pelos já calejados ombros, ávidos por um merecido descanso de tão nobre, mas não menos pesada carga. Nobre, não por que o defunto em questão pudesse ter possuído em vida algum tipo de título importante, mas porque todos nós, assim o tornamos, quando finalmente cumprimos nossa árdua sentença nessa vida e nos encontramos com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele sinistro fato sem explicação que iguala tudo quanto é vivo num único rebanho de condenados, porque tudo que é vivo, um dia morre e ao morrermos nos tornamos todos bons e dotados de inúmeras qualidades. A certo modo, a morte em si é uma espécie de restauração da índole do individuo. A bem da verdade, a carga em si era realmente bastante pesada, pois o homem, sendo respeitosamente ali transportado, era de uma descomunal estatura. Grande e muito pesado era aquele defunto, pois além de seu próprio peso físico, aquele inerte e funesto corpo, carregava consigo o peso de incontáveis pecados, sendo alguns hediondos e quem sabe talvez, até mesmo imperdoáveis, aos olhos de Deus.

Por mais cansados, que pudessem estar todos eles, pois já caminhavam por quase quatro horas, enfrentando além da enorme distância percorrida, uma fina e insistente chuva de invernada, que caia tão fria naquela manhã dando a leve impressão que pudesse congelar até os ossos e já um ou outro, quase concordando com o jovem que a quase todo momento solicitava que parassem pelo menos um pouco, para recuperarem o fôlego, os mais velhos seguiam silenciosamente renitentes em frente num passo firme, pois sabiam que uma parada, por mais breve que fosse não era de todo recomendada. Qualquer tipo de parada, poderia esfriar o sangue do corpo e pairar certo esmorecimento entre os caminhantes e além do mais, segundo os mais velhos — rigorosos guardiães de uma inquestionável sabedoria milenar — havia certo conhecimento que, quando um cortejo fúnebre partia da antiga morada do falecido, com seu corpo, rumo a sua nova e eterna morada, não poderia de forma alguma, haver nenhuma tipo de parada pelo caminho, pois se, porventura, isso viesse a acontecer em qualquer lugar, o espírito do falecido entenderia que aquele seria o seu local de infinito descanso.

Se, porventura, o lugar não fosse um campo santo e não tivesse sido liturgicamente benzido, como é o caso das igrejas bem como os cemitérios em si os são, a alma do defunto sendo ali transportado ficaria ali estacionado vagando a esmo sem descanso, atormentando os vivos que, por acaso, passassem por aquele local. Para alguns mais extremistas ainda, nas questões de misticismo antigo, acreditavam que essas almas atribuladas buscavam avidamente uma forma de dar descanso ao seu espírito, como esse espírito errante estava proibido de entrar no paraíso ou até mesmo padecer no inferno, para não ficarem vagando no eterno abismo que separa os mundos, tentaria de qualquer forma encontrar um novo corpo, para assim, voltar a terra e refazer todo o trajeto novamente. Havia certo temor entre os mais velhos, que se uma mulher de recente gravidez se demorasse tempo suficiente num desses locais atormentados, o espírito errante poderia encontrar uma porta para o nosso mundo através da criança que viria nascer. Alguns, até mesmo acreditavam, na ignorante ideia, de que as pessoas loucas são frutos provenientes desses espíritos errantes que atormentam a mente do individuo desde o seu nascimento.

Todos os prestativos companheiros que se revezavam continuamente no transporte daquela funérea carga eram moradores da região e conheciam bem o falecido. Na verdade pode se dizer que apenas conhecidos, mesmo sendo vizinhos de muitos anos, pois amizade mesmo era um termo já desconhecido do defunto há séculos, era do tipo de pessoa que para o mundo ele já havia morrido há bastante tempo. Dentre os homens que compunham tal seleto grupo que transportava aquele inglório banguê, o mais velho dentre eles era Senhor Juraci Fonseca — conhecido por toda região como Seu Jura — de quase oitenta anos, mas milagrosamente ainda muito forte e vigoroso. Mesmo sendo quase octogenário, sempre fazia questão de acompanhar todo e qualquer cortejo fúnebre. Desde o inicio do velório até o cemitério. Alguns, — longe de sua presença obviamente — o chamavam de papa-defuntos e diziam — pelo menos os desocupados — que Seu Jura tinha um estranho deslumbre com a morte, pois independente de quem era o falecido — criança, velho, mulher ou quem quer que fosse — era ele o primeiro a chegar ao velório e um dos últimos a deixar o cemitério, bem depois do sepultamento.

Seu Jura era um homem de estatura mediana, com a pele queimada pelo sol devido a incontáveis anos de lida no campo, desde que se entendera por gente. Sua barba sempre bem aparada era branca como um chumaço de algodão, dando-lhe a aparência de uma sábio ancião. Havia uma estranha sombra de mistério sobre seus olhos castanhos cor de âmbar que já perdiam o brilho. Ele caminhava em absoluto silêncio e apenas emitindo longos suspiros entre um intervalo e outro; talvez tivesse receio de que algo estranho acontecesse a qualquer momento.

Esses doridos suspiros mais pareciam um frio sopro de inverno, quem o observasse naquela completa melancolia, deduziria facilmente que o defunto era seu ente mais querido, mas em qualquer velório seu comportamento era sempre o mesmo. Contudo, naquele cortejo em si, havia algo sinistramente diferente. Esse senil senhor parecia um guia bastante rigoroso, uma espécie de arauto da morte, pois sempre caminhava à frente, estando ele carregando o banguê ou não. Com o semblante sempre muito sério, embora forte e confortador, com gestos firmes e determinados, comandava o rito fúnebre. Seguindo sempre em frente, sem demonstrar esmorecimento algum ou considerar qualquer possibilidade de descanso, ensimesmado com seus pensamentos sobre as grandes questões que envolvem os mistérios tanto da própria existência bem como da morte, ele se lembrara de algo que tinha ouvido em algum lugar: “…por ocasião de uma partida ou à beira da morte, um homem é capaz de refletir sobre seus próprios atos, ordinariamente fazem um inventário minucioso de suas ideias e crenças em geral e, nesses momentos, fazem um retrospecto do passado, se questionam de forma incômoda sobre o futuro e, evidente, o que vem depois…

Seu Jura com certeza não tinha a leve noção de seu próprio destino, mas, de alguma forma, sabia com exatidão o que o destino reservava ao nobre defunto que estava sendo, também por ele mesmo, ali transportado. Sendo ele um senhor já bastante experimentado na vida, quase nada temia desse mundo em si, porém, de certo modo naquela manhã em especial, algo o incomodava bastante, deixando os pelos de sua nuca eriçados e com estranhos arrepios que corriam por todo o seu corpo tal como em seu passado, quando ainda era uma criança e tinha medo de quase tudo — em especial a escuridão das noites de tempestades — . Esse estranho sentimento de ansiedade e temor o fazia, vez por outra, olhar para trás, guiando seus olhos até onde a vista alcançava pela infinitude do caminho como se estivesse esperando por algo ou por alguém.

O mais jovem, dentre aquele curioso grupo de carregadores, era o belo e instruído Gottardo Domingues, recém-chegado da capital, onde já era tratado pelos amigos — a maioria um bando de bajuladores — como Doutor Gottardo, pois este, devido a sua aguçada inteligência e prematura entrada nos estudos — como era filho de família abastada, desde pequeno já se via envolvido no mundo das letras e números — logo em breve seria um médico formado. Seu pai Laércio Domingues não poupava elogios para o filho, que aos seus olhos era o grande orgulho da família, — o primeiro doutor entre os Domingues –, pois estando ele, Gottardo, já no terceiro ano da Faculdade de Medicina, o que o pai recebia por parte dos professores e até mesmo do próprio Reitor era laudas e mais laudas pela inteligência e desenvoltura do filho nos estudos — e, de fato, o jovem era um prodígio em seu aprendizado, no entanto, a faustosa doação feita anualmente pelo seu pai à instituição incentivava bastante o aflorar destes elogios  — . Ali na região, desde criança, ele sempre fora conhecido pelos mais íntimos como Dominguin e, naquele exato momento, contava com seus vinte e um anos recém completados de poucos.

Dentre os homens adultos, Dominguin era o único homem solteiro daquele grupo, todos os demais eram casados e tinham família formada, com filhos e netos e, no caso de Seu Jura, até mesmo um bisneto já a caminho. O motivo de estar acompanhando aquele grupo não era por amizade ao falecido, muito menos pelo social de representar sua família no velório, até porque o falecido não era bem visto pelo Seu pai, tampouco por sua mãe que temia o finado como uma criança teme os mistérios das trevas. A razão real de um jovem como ele, — quase um doutor — , recém-chegado da cidade grande, com todas as suas libertinas atrações, estar acompanhado aquele humilde cortejo e estar, durante todo o trajeto até ali, se mostrando aos outros como incansável e com um vigor extremo, era o fato de seus olhos estarem pousados sobre a única mulher que acompanhava o grupo.

Essa chorosa criatura era a única filha do então falecido, e acompanhava o grupo com doridos suspiros e pesadas lágrimas que lhe banhavam sua meiga face deixando-a aos olhos do jovem enamorado, ainda mais atraente. Certo era que, Gardênia, mesmo com todos os seus encantos, já era uma mulher madura e tinha quase o dobro de sua idade, mas sempre fora para o jovem Dominguin seu grande amor platônico. Desde sua pré-adolescência, esse letrado jovem cultivava uma ardente paixão pela encantadora filha do afamado feiticeiro Thomás, sentimento esse que lhe rendera incontáveis noites de agonia e sonhos lascivos que, vez por outra, lhe sujava os seus lençóis. 

Na cidade grande, Dominguin havia se deitado com inúmeras outras mulheres, mas sua grande obsessão sempre fora ter, um dia, Gardênia entre seus braços e realizar com ela seus mais ardentes desejos. Todas as vezes que se deitava com outra mulher, era ela quem ele via, sentia o perfume dela em outros corpos, via seus ardentes olhos em outras faces. Enfim, Gardênia era, na verdade, para Gottardo Domingues, que sempre tivera de tudo e nada nunca lhe fora negado, uma prenda que parecia estar longe de suas possibilidades até então. Entretanto, agora com a morte de seu pai, estando ela naquele momento de extrema fragilidade, certamente estaria bem mais acessível a uma investida feita com cautela e parcimônia.

Mesmo naquele momento de profunda fragilidade, Gardênia ainda trazia consigo todo o seu encanto que desde sempre fora motivo de plena admiração, contudo, se essa bela mulher por um lado era bastante atraente, com todos os traços que um corpo bem feito pode oferecer, de certo modo era profundamente repudiada por todos aqueles que a conheciam de perto e sabiam de sua história e dos dois únicos homens que um dia ousaram se aproximar dela. O primeiro deles um coronel que se achava acima de tudo e de todos e pensava que o restante do mundo era o quintal de sua fazenda e tudo lhe pertencia; o segundo, um exibido boiadeiro que sempre sorria na face da morte e nada temia, a este último deve ser dado um desconto, pois seu idílio com Gardênia foi um acidente de percurso, mas encontrou um triste fim da mesma forma. A partir de então, essa encantadora mulher havia se tornado uma flor solitária onde todos temiam o odor que ela exalava, pois por mais doce e atraente que pudesse parecer, seu perfume tinha cheiro de morte a quem ousasse apreciá-lo.

Dominguin havia se tornado um belo jovem de corpo atlético, com um bigode muito bem cuidado, cabelo cortado ao estilo dos cavalheiros da capital e mesmo de longe já dava mostras de ser bastante polido e muito instruído. Sendo ele um homem das letras e da ciência, não dava muito importância a certas estórias contadas à beira de uma fogueira para assustar crianças pequenas e mulheres inocentes. Seus atraentes olhos claros não viam esses relatos como concretas ameaças para ele, além do mais, estava embevecido pelos encantos daquela mulher, pode se dizer enfeitiçado até, por toda a beleza que era exalada de cada movimento de Gardênia. Quando soube do falecimento de Pai Thomás, imediatamente se dispôs a prestar seus sentimentos a filha do velho feiticeiro. Sua mãe imediatamente se colocou contra aquela determinada resolução, mas logo o pai, Seu Laércio se interpôs dizendo que ele já era um homem feito e tinha todo o direito de tomar suas próprias decisões. Sua mãe, em contrapartida, tentou dissuadi-lo lhe contando algumas estórias sobre o falecido e seu envolvimento com o mundo das trevas. Dominguin para convencer e deixar sua mãe mais tranquila a abraçou e deu-lhe um estalado beijo em sua testa dizendo logo em seguida:

– Minha doce mamãe, sou um homem da ciência, quase um doutor, pode-se assim dizer. Eu só acredito naquilo que eu vejo e que tenha uma explicação lógica. Não acredito nessas coisas que não existem no meio científico. Aqui no campo ainda paira um misticismo bastante arcaico, essas coisas de bruxarias, espíritos errantes e demônios só servem de explicações para tentar responder de forma conveniente aquilo que essas pessoas ignorantes ainda não conseguem compreender. Para essa gente humilde, muito facilmente uma pessoa com sérios problemas mentais poderia ser confundida com um endemoniado e certamente um padre seria chamado para tentar resolver a questão, ao invés de um tratamento médico-hospitalar sério e eficaz.

– Abençoado aquele que mesmo sem poder ver, ainda assim acredita naquilo que os olhos não podem ver. E não precisa se queimar no fogo para saber de seu violento calor, mas acredita no perigo das chamas, simplesmente pelas histórias de quem assim já o padeceu. Você mesmo meu filho, que se diz um homem da ciência, deveria saber, pelas palavras daquele poeta lá dos estrangeiros; “que existem bem mais coisas entre o céu e a terra do que julga a nossa vã Filosofia…”. — disse sua mãe por fim, mas vendo a resolução nos olhos do filho, não o impediu de ir.

Dominguin era jovem e muito ousado, ainda na flor da idade. É comum ao jovem, transpirando o frescor da juventude, perder o bom senso para o desejo, o amor e a cautela. Qualquer aviso nessa idade soa bem mais como a um desafio ou até mesmo um irrecusável convite. Então ali estava ele, ansiosamente aguardando uma melhor oportunidade para uma investida segura e eficiente. A caminhada continuava de forma obstinada e, depois de quase quatro horas, ainda faltava um terço do caminho. A maioria dos homens já se mostravam exaustos e ansiavam por um breve descanso quando, ao longe, foram avistados quatro cavaleiros vindos por trás na direção do grupo em uma obstinada marcha. O grupo obviamente teria que se afastar um pouco do caminho para dar passagem aos cavaleiros, pois demonstravam estar bastante apressados para algum compromisso de suma importância. 

Mesmo de longe ainda era possível discernir que os quatro cavaleiros pudessem fazer parte de algum tipo de batalhão ou algo parecido ao longe, eram os quatro praticamente idênticos. Estavam montados sobre belíssimos corcéis negros de pelo reluzente, e os próprios cavaleiros vestiam negro dos pés a cabeça, galopando rápido na direção do cortejo, mais pareciam quatro manchas negras que cortavam o caminho, criando um contraste curioso no verde da relva ao redor e o branco acinzentado daquela manhã chuvosa que pairava no ar.

Seu Jura ao ver os cavaleiros se benzeu por completo com o sinal da cruz e iniciou um apressada oração em sussurro, como se temesse que algo ou alguém pudesse ouvi-lo. Os demais viam aquilo com certa curiosidade, primeiro porque nunca tinham presenciado Seu Jura agir daquela maneira, demonstrando estar profundamente apavorado e, também, pela novidade daqueles estranhos cavaleiros estarem transitando ali naquele lugar. Nenhum daqueles que compunha o grupo parecia conhecer qualquer um dos cavaleiros, nem mesmo o porquê de eles estarem vestidos daquele modo. A cada passo que os cavaleiros davam, encurtando cada vez mais a distância entre eles, as preces de Seu Jura se intensificava um pouco mais. Até mesmo Gardênia se mostrara incomodada com tudo aquilo. 

Dominguin já acostumado a ver todo tipo de estranhezas que pululavam pela capital, não demonstrou qualquer tipo interesse nos cavaleiros, nem mesmo no comportamento absurdo de seu ancião companheiro — que para ele era normal pela sua senilidade — para os demais tudo não passava de apenas uma estranha novidade até o momento que os quatro cavaleiros se emparelharam junto ao grupo e se puseram a disposição para levarem o banguê. Seu Jura que sempre fora uma espécie de guia que regia aquele tipo de evento e até o presente momento havia coordenado todas as ações, estava agora num silêncio sepulcral, meio que paralisado. Quem o observasse com mais atenção naquele momento, diria facilmente que nenhum músculo de seu corpo se movia, temendo até mesmo soltar o ar de suas narinas.

Assim que os cavaleiros solicitaram a honra de conduzir aquela funérea carga, — solicitaram — , é o certo a dizer, pois foi assim mesmo que se sucedeu, não foi apenas um cavaleiro quem falou, mas os quatro de uma única vez, como se apenas um falasse, mas o som das vozes vinha das quatro direções ao mesmo tempo, uma voz cavernosa e firme, quase como uma ordem inquestionável dada por um terrível superior ao seus temerosos subordinados. Como Seu Jura nenhuma palavra dissera e nem ao menos um único gesto demonstrara em contrário a solicitação dos negros cavaleiros, logo, também ninguém se opusera — pois a grande maioria ansiava por logo se verem livres daquela pesada carga. Assim que o primeiro carregador entregou sua parte do banguê ao primeiro cavaleiro, logo fora acompanhado pelos outros que também entregaram suas devidas partes. Seu Jura estava paralisado como uma estátua e nem sequer ousara levantar os olhos, como se naquele exato momento, tivesse vendo estampado no chão toda a verdade do universo ou apenas temesse olhar para os cavaleiros.

Contudo, Dominguin, que fora o último a entregar sua parte do banguê, olhou para a face do ultimo cavaleiro, mas não conseguiu ver muita coisa, a maior parte de seu rosto estava coberta por uma espessa barba negra e a imensa aba do chapéu que também era preto bem como o restante de toda a indumentária, entretanto por um breve relance imaginou ter visto parte dos olhos do cavaleiro ou aquilo que deveria estar no lugar de onde deveria haver olhos. Dominguin teve a impressão de ter visto dois profundos abismos no lugar dos olhos, mas tudo foi muito rápido, por que assim que esse último cavaleiro suspendeu sua parte da carga, logo esses quatro cavaleiros se afastaram em um trote rápido, como se o cortês auxílio prestado àquele exausto grupo fosse, na verdade, uma importante missão para eles. Estando eles, ainda a menos de vinte metros de distância, disseram os quatro em uníssono ou talvez apenas um falasse e a voz ecoou como se fosse os quatro ao mesmo tempo, o som da fala era muito estranho, e bastante sinistro, tanto que, a todos causou arrepios, até mesmo o douto Dominguin teve sua dose de temor, experimentando certo receio, quando ouviu os cavaleiros dizerem:

– Thomás! Thomás! Como esse sempre tomara mais…

Assim que os quatro cavaleiros disseram essas lacônicas palavras, estando eles já de posse daquela funesta carga, seguiram a trote rápido pelo caminho afora numa velocidade que não seria possível para um homem comum conseguir acompanhá-los a pé, talvez nem mesmo montado a cavalo. Quanto mais se afastavam mais a velocidade de seus cavalos parecia aumentar, de certo modo, vistos já bem distantes dava a estranha impressão que pudessem estar voando sobre a estrada, como um pássaro em um voo rasante pairando sobre as águas. 

Seu Jura demonstrando estar terrivelmente assustado, não dissera uma única palavra, apenas se aproximou de Gardênia e tocando em seus ombros com as mãos trêmulas de uma forma bastante paternal, olhou no fundo dos olhos dela e após dar um longo suspiro, iniciou a caminhada de volta pelo caminho por onde até então estavam vindo. Pela primeira vez em toda sua vida, aquele senil senhor abandonava um velório antes de seu término — fato esse que causou estranheza a todos os presentes –. Como muitos ali, estavam apenas prestando uma última gentileza a uma indefesa e inconsolada filha e tinham vindo acompanhando Seu Jura para o auxiliar no transporte do falecido, assim que esse — de forma ainda incompreendida — iniciou o seu retorno para casa, também logo, o seguiram para seus determinados afazeres. Gardênia e seu filho continuaram em frente, pois deveriam chegar até o cemitério para onde o corpo de seu pai estava sendo levado para assim que recebesse as determinadas exéquias, pudesse em fim descansar em paz no local de sua ultima morada.

Dentre os companheiros que iniciaram a jornada, desde a casa de Pai Thomás, ainda de madrugada, apenas três seguiram Gardênia pelo caminho — dois deles provavelmente tinha algum tipo de negócio a resolver na distante corrutela ou apenas estavam ansiosos para saberem o desenrolar daquele estranho acontecimento. Dominguin, agora livre do peso que estava carregando nos ombros, se colocou ao lado de Gardênia e a acompanhou, bem próximo, esperando avidamente pela oportunidade de travar algum tipo de diálogo com ela, todavia manteve o silêncio que ela havia predeterminado para si naquele triste momento, silêncio que se quebrava somente pelo suspiro profundo e dolorosamente sofrível.

Dominguin, vez por outra, a olhava de cima a baixo, sem poder acreditar que as estórias que os desocupados da região contavam sobre aquela meiga e indefesa mulher pudessem de alguma forma ter um mínimo sequer de verdade. Segundo ele — um homem que vivera por anos na capital, rodeado das inovações tecnológicas da ciência e das comodidades do progresso — as estórias que contavam sobre seu falecido pai e seus estranhos e inverossímeis poderes paranormais era uma completa bazófia. O que havia acontecido aos dois homens que tiveram relacionamentos com ela, teria sido apenas simples acidentes do acaso e logicamente teria uma explicação cientifica plausível para cada caso em si. Coronel Guilhermino, que havia morrido bem antes dele nascer, fora acometido por algum tipo de doença que carecia de diagnóstico correto e tratamento adequado, já o boiadeiro Emanoel havia sofrido uma queda de sua montaria, apenas um trágico acidente de trabalho comum a qualquer um que se destina a esse tipo de função.

Naquele momento seus interesses eram bem maiores do que dar ouvidos a estórias contadas pelos caminhos e varandas ao luar sobre maldições, pragas e magia negra ou qualquer coisa que o valha. De qualquer forma não seria nem um pouco cavalheiresco de sua parte abandonar tão bela dama ali, no meio do caminho naquele momento tão triste. Além do mais ele não tinha muita coisa para fazer naquelas terras do sem fim. Depois de uma profunda discussão interna consigo mesmo, decidiu que deveria a qualquer custo acompanha-la até o fim. Como já haviam caminhado bem mais do que a metade da distância, e como o tempo dava mostras de melhorar um pouco, aceleraram o passo e seguiram pelo caminho. Todos de cabeça baixa e no mais absoluto silêncio…

Conto publicado na 1ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2024. → Ler edição completa

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