Em agosto de 2023, fui um dos oito cientistas enviados para o posto Concordia, uma estação de pesquisa franco-italiana localizada na planície gelada da Antártica Maior. Eu já portava minha experiência de redator na área de biologia da afamada revista SCAR, e meu renome entre os cientistas da Itália agradava meus superiores, fatos que me levaram ao cargo de pesquisador-chefe na mais recente ala de biologia daquela estação erma. Era uma estrutura branca e vermelha de médio porte, desencostada do solo gelado por dois ou três de metros de altura, mas apoiada, em termos grosseiros, por grossas e firmes vigas de aço; duas torres em decágonos jaziam em sentidos opostos, mas conectadas por um corredor que também servia de entrada. O mesmo corredor tinha, como meio de acesso, uma escada no exterior gelado. Toda a estrutura era coberta por janelas no estilo da estação espacial. Nossa equipe, enfim, ocupou uma das torres, enquanto a equipe dos astrônomos, pessoas bem antipáticas, jazia na torre oposta.

Era um trabalho sazonal, que duraria por todo o verão, e a intenção da alta gerência não era mais que estudar possíveis formas de vida unicelulares que podiam habitar nas profundezas das águas e pedras gélidas daquele lugar vazio. O primeiro objetivo de nossa pesquisa era mobilizar a pequena equipe de biólogos, com os mecânicos e engenheiros que lá nos acompanhavam, com a intenção de inaugurar uma profunda fenda no gelo espesso sob pretexto de estudo às formas de vida outrora encontradas no Deep Lake, os Halorubrum lacusprofundi. Anormalmente, e sem nenhuma explicação, eles demandaram que a fenda fosse aberta a quase oito quilômetros da base, tão longe que a própria estação semelhava uma opacidade no horizonte. Claro que aceitei sem qualquer contenda.

Meu trabalho foi se tornando enfastiante pela repetição e monotonia da tarefa, e por todo afã necessário para cumpri-la, e eu tinha certeza de que não agradava meus superiores com a simples exploração daquelas arqueas. Na verdade, pouco sabia do que minha gerência intentava a descoberta naquela planície solitária e coberta por um azul infinito. Nossa equipe, porém, prosseguia com a pesquisa nas águas e no gelo malgrado os olhares impiedosos de colegas.

À guisa de um homem fracassado, prossegui por todo o período estival com a mesma tediosa tarefa, isto é, até o ponto da reviravolta; quando a alta gerência do posto requisitou que nosso trabalho se prolongasse por todo o inverno. Até hoje não entendo como aceitei loucura tal, talvez pela vontade constante em minha vida de atingir expectativas, ou pela curiosidade que torna os gênios à tolice. Meu siso pouco percebeu as erronias de sermos abandonados pelos superiores e até pelos mecânicos/engenheiros. Apenas a ala de astronomia remanesceria conosco, aqueles esquisitos que aproveitavam a escuridão do inverno antártico para explorar o mistério das estrelas.

Na virada para o inverno, em algum dia de março, pouco antes da primeira das eternas noites da fria estação, nossos superiores partiram com seus séquitos pela aeronave Twin Otter, e nenhum de nós contestou. Foi a única vez que observei entusiasmo e alguma reação do Dr. Authier, pesquisador-chefe da ala de astronomia. Já eu balançava entre ânimo e preocupação, mas sabia que precisava corresponder àquele dever importante em prol de meu país, em prol de meu ego, e logo busquei empreitadas inovadoras com minha equipe, porquanto a ausência de meus superiores concedia-me autonomia maior e aqueles isolados astrônomos, por fatos óbvios, não opinariam.

Em meados da primeira semana na mais nova rotina, tive a iniciativa de mover nosso ponto de pesquisa para um local mais apropriado para o trabalho, e minha proposta era diminuir a locomoção que desnecessariamente percorríamos até nossa área pesquisada. Rapidamente mudamos nosso equipamento de lugar, para menos de um quilômetro da estação, e adaptamos nossas ferramentas para a nova ambiência; com tudo pronto para a abertura de uma nova fenda, desejei pessoalmente inaugurar o objeto de estudo, e peguei meu fura-gelo para perfurar aquele solo em busca de água líquida qual poderia ser habitat de mais daquelas arqueas. Antes do primeiro golpe no solo, entretanto, uma força alheia me conteve com um poderio desumano, mas estranhamente desajeitado, e todos os olhares da equipe de biologia se direcionaram à minha situação.

Depois de muito tempo sumido, Dr. Authier apareceu como um espectro naquela planície gelada, apenas, pelo visto, para ater meus braços e minha pesquisa. Num silêncio agônico, e por demorados segundos, aquele estranho doutor segurava meus braços numa postura hirta, enquanto permanecia a me encarar, sem piscar os olhos, e sem esboço de reação nenhuma além daquela expressão mórbida e pálida de sempre. Após aqueles eternos instantes, Dr. Authier gritou numa voz estridente e desnaturada: “Não! Não! Não!”, soltou meus braços e andou, conforme uma casca sem vida, de volta para sua torre na estação; e o evento foi suficiente para suscitar um terror desconhecido na minha alma, pelo qual cancelei o projeto temporariamente.

Chegamos na conclusão de que deveríamos nos afastar mais um pouco da estação para reiniciarmos a pesquisa e, desta vez, longe dos incômodos de qualquer um dos astrônomos, resolvendo triplicar a distância da área pesquisada. Quando se deu o ensejo, saímos juntos da estação rumo ao novo local de estudo, uma ocorrência abominável, porém, que não conseguirei descrever em letras, empecilhou nosso objetivo. Foi, respectivamente, logo quando colocamos nossos pés no gélido chão que houve um medonho grito do mais jovem de nós, Dr. Padovani, enquanto ele apontava para um corpo de um astrônomo caído no gelo. A escura noite mesclada com a aura fria impossibilitava a plena identificação da circunstância, e resolvemos nos aproximar para avaliar a situação; foi quando vimos quem parecia o Dr. Authier deitado de bruços com o rosto enfiado no gelo, e o mesmo estava emitindo uma sonância da boca que semelhava um alimento sendo consumido sem pausa alguma. O mais blasfemo de tudo foi a generalidade daquele evento, pois, quando inspecionamos todo o entorno, encontramos a equipe inteira de astronomia repetindo ou imitando aquele hábito de seu mestre. Quando encostamos naquele pobre insano jazido no chão, todos eles levantaram em harmonia, sem dizer nenhuma palavra, e foram em fila de volta à estação. O trauma foi tão marcante que prometemos não comentar mais daquilo enquanto nossa estadia durasse, tanto era o medo da memória do evento. No mais, embora eu desconheça quase tudo da astronomia, eu conheço que é uma disciplina que não envolve rituais em solo gelado.

Depois de duas semanas naquele escuro inverno, antes de recomeçarmos nossa pesquisa, aquela estranha infecção começou, e se propagou como um vírus para todos, e era coisa símil à gripe. Estranhamente, ninguém comentava sobre a estranha doença que nos afligia, mesmo meu auxiliar, Dr. Alessandro, percebeu apenas sob meu aviso da situação. Segui firme com a crença de que se tratava de uma reação alérgica ao frio extremo inerente à nossa paragem, e acreditei mais ainda que meus pares pensavam o mesmo. Porém, ignorando aquela enfermidade, prossegui no trabalho, conforme o esperado, e preguei para minha equipe que seguissem meus passos, pois figurei que os esforços em nossos projetos eram as coisas que podiam nos firmar sãos durante aquele período traumatizante.

Pouquíssimo tempo depois, porém, antes da execução prática, pelo frio e pela tênebra que Dr. Alessandro e Dr. Niccola, também de minha equipe, personificaram um semblante mórbido, assaz semelhante às visagens que os bizarros astrônomos sempre portavam. E do mesmo modo andavam: quietos e pálidos, afastados de toda a equipe. Eu imaginava que aquela infecção tinha papel principal naquela bizarrice, e que estavam todos desanimados em decorrência da mesma, já que o frio extremo podia sim diminuir a eficácia de nosso sistema imunológico. Porém, Dr. Alessandro, quando pressionado à fala, insistia que tudo estava bem, malgrado sua evidente coriza e palidez, a terrível lentidão na fala, e seu desempenho nulo em nossa pesquisa. E eu, como o tolo que sou, segui desatento àqueles sinais.

Não passado muito tempo, e os membros restantes de minha equipe já semelhavam todos, sem exceção, lânguidos, muito doentes, e indiscerníveis daqueles astrônomos. Todos estavam alheios à realidade, incomunicáveis, e me tornei estranho em qualquer setor que andejava. Aquela infecção, com certeza, não era uma gripe ou reação alérgica, nem podia ser consequência de minha pesquisa com os Halorubrum lacusprofundi que encontramos naquelas águas, visto, se eu bem julgava, que os astrônomos veteranos já semelhavam tomados pela mesma maladia bem antes de nós.

Foi na terceira semana da gelada treva que ouvi pela última vez um ser humano falar. E eu não pude pressionar ninguém por explicação pelo pavor que aquela situação me colocava; de fato, o que eu podia fazer era continuar sozinho um trabalho minuto. De meus colegas, numa observação distante, percebi que seguiam indiferentes àquela situação horrenda que nos era imposta por uma misteriosa circunstância. Padrão era que a partir das 18 horas todos eles se fixassem na mesma posição, hirtos, como seres que adormeciam de olhos abertos. Depois desse horário, não reagiam aos meus gritos, empurrões, e outros esforços que prestava para acordá-los. Desespero maior me surgiu, entretanto, quando, na primeira ocorrência disso, reuni minhas forças e passei entre aqueles esvaecidos rumo à cabine central, onde jaziam os aparelhos que pudessem nos salvar em caso de avaria ou necessidade, esses que emitiam sinais via rádio ou internet, e percebi com grande descrença que não mais funcionavam: alguém destruiu aquilo e pouco se preocupou em cobrir a clara evidência.

Aqueles seres, os meus amigos, Deus me perdoe, já não eram humanos. Nem quando ativos percebiam ou reagiam à minha presença. O que mais me esmaeceu foi, na verdade, o hábito que adquiriram de comer um estranho alimento, se posso chamar aquela coisa incomestível disso, à guisa de uma raiz seca e cinza. Na verdade, eu tenho certeza de ver aquela raiz desconhecida nos pratos daqueles astrônomos e nunca ter me atido ao sinal e à correlação. Homem qualquer conhece que nenhum fruto e nenhuma raiz podem crescer naquele continente gélido e mórbido, salvante que sejam cultivados num ambiente especial e tratado no interior de uma estação; pois bem, o que crescíamos lá senão tomates e alfaces? Raiz nenhuma estava presente em nossa variedade diária de alimento, ao menos em papel.

Não muito tempo depois, eu perdi minha capacidade de fala. O terror e a preocupação de me tornar semelhante aos meus colegas tomaram conta de minha razão, e não mais ingeri nada que aquela estação oferecesse, senão a água e o chocolate quente que figurava meu único alento. Logo, quando me senti prestes a desmaiar, ignorei a escuridão fria e me apoiei fora da estação de pesquisa, abaixo dela, na verdade, em uma das vigas que a suportavam. E, quase desistindo do restante de minha consciência, minha razão se iluminou e cedi aos pensamentos que deveria ter elaborado bem antes. Eu nunca me perdoarei por não ter pensado mais, e bem antes, na razão do Dr. Authier impedir meus esforços contra o solo mais próximo da estação de pesquisa. Quando recordei aqueles astrônomos com a face ao gelo, e correlacionei com a dieta baseada na estranha raiz, um impulso de ânimo me surgiu, pelo qual peguei minha lanterna e meu fura-gelo para perfurar aquele chão. Não me preocupei, na verdade, de me locomover até o ponto de pesquisa donde fui impedido, abaixo mesmo, onde eu estava, retornei e perfurei com rápidos golpes o solo. Como eu esperava, um pouco daquele gelo fendido já revelou um minúsculo corpo estranho emaranhado fortemente na profundeza do gelo. Foi a primeira vez, depois de muito tempo, que escutei um bramido de uma criatura viva.

Por incrível que pareça, minha razão não cessou em decorrência do medo, conforme ocorrera nos eventos passados, e pude ignorar minha afonia e meu pavor da morte. Eu sabia, porém, que aquela raiz era o objeto responsável direta ou indiretamente pela condição minha e de meus amigos. Tolhi-me do chão, e corri para a cabana de minha equipe em busca de mais equipamentos. Munido com aparelhos profissionais, perfurei o mesmo solo que antes havia fendido e revelado a raiz; por cada golpe concedido, eu escutava estridentes e blasfemos gritos de dentro da estação, como se todos os meus colegas afetados pela misteriosa condição compartilhassem a dor dessa sórdida planta. Ignorei essas abominações, e o impulso de fugir sem destino, até alcançar uma parte da ramagem da raiz que poderia ter uma infinita profundidade. Quando agarrei um ramo maior, os gritos dobraram, e comecei a ouvir passos rápidos e pulos em harmonia acima de mim, na estação.

Pelo acesso de desespero, figurei que, se sabotasse os tanques de combustíveis, e alinhasse em escala com os geradores de energia, poderia intercalar uma grande explosão para incendiar e destruir aquela estação maldita junto com aquilo que tomou meus colegas. Assim pensado, com uma rapidez que ignorava qualquer condição por mim sofrida, espalhei gasolina e tudo que achei de combustível líquido entre os geradores de energia até a base onde achei aquela ramagem profana, e toda ação minha era acompanhada por um instrumental que soava como gritos desesperadores de precitos. Não perdi meu fio de razão por supor, justamente, que aquele ser não era tão inteligente, ou, se era, que não podia obrar muito contra minhas ações. Apressei-me novamente até minha cabana, peguei a pistola sinalizadora, na minha única chance, e disparei contra o fio de combustível que desencadeou o efeito esperado: chamas que sobreaqueceram os geradores que, por efeito, explodiram e dizimaram o que quer que estivesse dentro daquela estação vítima daquela planta misteriosa.

A chama cumpria seu propósito enquanto proporcionava mais daqueles traumatizantes gritos de agonia que ainda hoje retornam em minha mente. A raiz, por sua vez, não podia ter sobrevivido naquela instância, exceto que seja como tenho razão para suspeitar: que suas raízes mais antigas estejam numa profundeza tão extensa que jamais será alcançada por homem qualquer. Após a explosão, minha única escolha era viajar por um veículo ártico, designado àquela ocasião, naquelas tenebrosas planícies azuis até a base mais próxima, a estação russa de Vostok.

Por sorte ou por milagre, terminei minha longínqua viagem até a dita estação, onde me acolheram e onde pude desenhá-los o básico da minha passada ocorrência. Em contraposição à inutilidade de meus superiores, fui socorrido depois de algumas horas e voltei de avião à estação Zucchelli, donde, por sua vez, parti para a embaixada de meu país na Argentina.

Jamais compreendi a minha função naquele lugar, nem qual seria meu verdadeiro objetivo. Ainda, também, não sei como aquela raiz cresceu lá, nem qual é sua origem, mas não pode ser coincidência que nunca mais meus superiores foram vistos, tampouco semelha à toa que tudo tenha ocorrido numa base de estudos de astronomia e biologia. Sei o que aconteceu, porém, e minha mudez e visagem pálidas são provas daquilo que passei, também sei que aquela planta deve ser destruída ou isolada com toda operação na Antártica Maior interrompida. Eis meu relato daquele terrível acontecimento, e tudo aqui escrito será exposto ao mundo na primeira edição da revista SCAR do ano de 2024.

Castelo Drácula

Recanto de Literatura Gótica

Anterior
Anterior

Crop circle

Próximo
Próximo

Deep blue sea