Inconsequente Desejo
“Aquilo que você confunde com a loucura é apenas um excesso de agudeza dos sentidos.” — Edgar Allan Poe
O dia parecia bastante promissor naquela bela manhã de sol, onde pássaros cantavam alegremente nas árvores pelo caminho, criando um fundo musical primaveril, enquanto o Doutor Ulisses se encaminhava para mais um dia de enfadonho atendimento no posto de saúde, onde era médico plantonista, atuando como Clínico Geral. Ele atendia desde os casos mais simples de pessoas hipocondríacas até as situações mais complexas e terminais, mas sempre com diagnósticos muito parecidos – nove em cada dez casos, o diagnóstico era sempre virose – e o tratamento consistia em dipirona, repouso, e, nos casos de pacientes mais afoitos – ou os espertinhos em busca de atestado médico – soro na veia. A quantidade de soro dependia do comportamento do paciente durante o atendimento. Dependendo do caso, o atestado médico só era liberado após horas de medicação intravenosa – na maioria das vezes, apenas soro e nada mais. Doutor Ulisses era formado em medicina e especializado na prática da malandragem; era o tipo de pessoa que não se deixava enganar facilmente. Malandro de carteirinha, sabia quando alguém estava apenas fingindo algum tipo de mal.
Aquele dia, em questão, era uma sexta-feira, e a recepção do posto de saúde estava apinhada de gente. Na visão de Doutor Ulisses, a maioria estava em busca de um atestado médico que lhes permitisse ficar na boemia durante o final de semana, sem ter que cumprir suas funções em seus respectivos empregos. É certo dizer que muitos ali presentes realmente estavam padecendo de algum mal, mas para o bom doutor, todos eram uns pilantras tentando enganar seus patrões. Ele sempre fazia questão de entrar pela porta da frente, cumprimentando polidamente todos que cruzavam seu caminho. Era, por sua vez, um homem fino e bastante educado com todos, sem exceção. Como todo bom malandro.
Seu atendimento, dependendo do paciente, jamais demorava mais do que quinze minutos, a menos que fosse uma mulher bonita, especialmente se ela estivesse sozinha. Nesses casos, o atendimento era mais detalhado e bastante demorado. Contudo, na maioria das vezes, ele atendia de cabeça baixa, fazendo as perguntas de praxe, auscultava o paciente, media a pressão e a temperatura e, após alguns minutos escrevendo – sabe-se lá o quê – logo apresentava o diagnóstico. Exames eram algo raro de acontecer – em muitos casos, era o próprio paciente quem os exigia – e, quando aconteciam, o diagnóstico permanecia sempre o mesmo: virose! Por Deus ou mera sorte, nenhum paciente atendido por ele havia morrido ainda. Era, sem sombra de dúvidas, um profissional bastante negligente em suas funções. Talvez por isso mesmo pensasse que todo mundo agia como ele. Assim que chegava ao trabalho, assinava seu ponto para uma jornada entre as oito da manhã e as dezesseis horas, com duas horas de almoço. No entanto, era raro o dia em que ele retornava às suas funções após o almoço, uma vez que contava com a conivência de outros funcionários do posto de saúde, que, assim que possível, faziam o mesmo.
Naquele dia, após vinte ou trinta atendimentos, talvez até um pouco mais, já se aproximando do meio-dia, decidiu que seu expediente se daria por encerrado assim que atendesse uma senhora que tossia quase sem parar. E, uma vez que avisara uma das atendentes que sairia para almoçar em seguida, solicitou que a humilde senhora adentrasse seu consultório. Essa, por sua vez, teve o atendimento mais rápido de sua vida. Quando questionada sobre o que a incomodava, ela relatou falta de ar, cansaço excessivo e uma tosse que não cessava com nada. Ele nem ao menos fez os exames básicos de praxe, apenas lhe deu uma receita contendo dipirona em caso de dor e febre, xarope contra a tosse e a recomendação de que parasse de fumar. A paciente, que saiu do consultório cabisbaixa e ainda tossindo muito, jogou a receita na primeira lata de lixo que encontrou e, ainda no pátio do posto de saúde, acendeu um cigarro, que, já na primeira tragada, aumentou ainda mais a tosse que lhe tirava o fôlego. Doutor Ulisses, que assistiu a tudo pela janela de seu consultório, balançou a cabeça negativamente e pensou consigo mesmo: – Como ajudar alguém que não quer ser ajudado?
Despediu-se da atendente que o auxiliava naquele dia, sem dizer se voltaria ou não. Ela entendeu que só o veria novamente na segunda-feira, pois ele, muito gentilmente, havia lhe desejado um bom final de semana e, após retirar seu jaleco de atendimento, o colocou no cesto de roupas sujas. Decidiu que, naquele dia, iria almoçar em algum lugar no centro da cidade; depois, talvez assistisse a um filme no cinema ou, quem sabe, até mesmo fizesse um passeio no parque. Teria toda a tarde livre para si, sabendo que a enfermeira que cuidava de sua mãe só iria embora após as sete da noite, deixando sua mãe limpa, alimentada e dormindo profundamente. Ele mesmo havia prescrito a medicação que sua mãe tomava, após ter sido diagnosticada com Alzheimer. Tais remédios faziam com que sua mãe passasse toda a noite dormindo em sono pesado, quase como em coma profundo.
Doutor Ulisses aproveitou sua tarde como se não tivesse nenhuma responsabilidade. Imaginou-se um rajá árabe, onde suas únicas preocupações fossem o cardápio do jantar e o vinho que poderia harmonizar com a comida escolhida. Almoçou em um requintado restaurante, servindo-se de lagosta com salada e um encorpado Chardonnay, que muito agradou seu paladar. Após esse grandioso repasto vespertino, saiu caminhando em busca de algo que lhe ocupasse o tempo. Foi ao cinema, mas assistiu apenas aos primeiros vinte minutos, dormindo pesadamente durante o restante do filme, sendo necessário ser acordado pelo lanterninha, que precisava da sala para a sessão seguinte.
Ao sair do cinema, fez o que costumava fazer quase todas as noites: sentar-se em algum botequim e afogar as mágoas – que ele mesmo não tinha – num copo de bebida qualquer. Não tinha preferências por nenhuma bebida em especial; bebia qualquer coisa que lhe era oferecida, apenas tentava harmonizar com o clima: dias quentes, bebidas frias; dias frios, bebidas quentes, e assim por diante. Nos bares que frequentava habitualmente, já estava ficando manjado, pois, vez ou outra, algum paciente que não havia conseguido atendimento por falta de médico no posto de saúde o flagrava bebendo em horário de trabalho – um fato que o incomodava, mesmo que o paciente agisse com máxima discrição. Sabendo disso, decidiu que naquele final de tarde de sexta-feira buscaria refúgio em algum bar distante e desconhecido, onde certamente não seria reconhecido por ninguém.
Após pegar um táxi no centro da cidade, pediu ao motorista que o levasse a algum bar bem distante. Deu as coordenadas de forma que seu destino ficasse do outro lado da cidade, bem longe de seu posto de trabalho. O taxista, ávido por uma corrida mais vantajosa naquela fraca tarde de sexta-feira, seguiu à risca as orientações de seu nobre passageiro e o levou a uma parte bem distante de onde se encontravam: um bairro antigo, cheio de velhas construções que davam a impressão de serem do século passado. Enormes casarões e inúmeros galpões onde, certamente, todo tipo de atividade era praticada, desde simples fábricas até empresas de importação e exportação. As ruas estavam um tanto desertas para uma sexta-feira, em comparação ao movimento da parte da cidade em que ele residia. Quando quis questionar o fato com o taxista, este lhe respondeu que ali era um lugar bastante movimentado, mas, como era um bairro operário, naquele momento as pessoas ainda estavam no trabalho.
Por fim, chegaram a uma avenida um pouco mais movimentada e, depois de algumas quadras, pararam em frente a um animado bar, onde se lia numa placa em neon já brilhando, mesmo no clarão do final da tarde: Bar Sossego dos Amantes. O motorista, bastante orgulhoso em mostrar-se um exímio conhecedor da cidade onde trabalhava, disse por fim:
– Aqui, doutor, o senhor poderá ficar à vontade. Não existe em toda a nossa cidade um lugar mais discreto que este. Se quiser me ligar mais tarde, quando quiser voltar para casa, fique à vontade. Nas noites de sexta-feira, eu rodo a noite toda. Poderei vir buscá-lo a qualquer hora.
Dizendo isso, lhe entregou um cartão e, após receber a faustosa corrida, foi-se embora feliz da vida por saber que havia deixado mais um cliente satisfeito. Doutor Ulisses, ao entrar no bar, ficou realmente satisfeito, pois era um ambiente bastante agradável. Havia mesas por todos os lados, colocadas de forma estratégica para garantir privacidade a quem assim o desejasse. Contudo, ele se dirigiu ao imenso balcão de madeira maciça, que parecia caprichosamente polido. Sabe Deus se por uma caprichosa lixa ou por incontáveis braços que ali estacionaram por décadas a fio. Assim que se sentou, uma bela jovem de uns vinte e cinco anos no máximo – talvez até um pouco menos – veio logo atendê-lo. Ele ficou boquiaberto com a beleza da jovem, a ponto de momentaneamente perder a fala. Ela, já acostumada com tais reações, se apresentou, estendendo-lhe uma mão de unhas bem-feitas, pintadas num tom de vermelho, e dizendo com um belo sorriso de dentes perfeitos e num branco impecável:
– Boa noite, nobre cavalheiro! Seja bem-vindo ao nosso humilde estabelecimento. Meu nome é Eleonor, e quero que saiba que é um prazer poder conhecê-lo. Estou aqui hoje para servi-lo da melhor maneira possível! O que vai beber?
– Boa noite! Meu nome é Ulisses, e o prazer é todo meu! Pensei em tomar uma cerveja, mas posso beber qualquer outra coisa que você me sugerir – respondeu ele.
– Cuidado, Senhor Ulisses! Já vi muitos homens se perderem completamente, seguindo sugestões de mulheres como eu.
Ele de imediato respondeu:
– Como assim? Por que mulheres como você? O que tem de errado com você? São seus belos olhos? Ou o seu sorriso encantador?
– Atendentes de bar! Foi o que eu quis dizer. Sabemos bem como deixar um homem babando de bêbado em alguns minutos, se isso nos aprouver. Ou podemos também depená-lo por completo, servindo-lhe as bebidas mais caras da casa. Quanto aos meus olhos, obrigado pelo elogio. Mas são um presente do meu falecido pai, que perdeu a vida no mesmo acidente que deixou minha mãe inutilizada da cintura para baixo. Além dos olhos, meu saudoso pai também me deixou a sábia lição de sorrir todos os dias, em toda e qualquer situação. Ele sempre dizia: “A vida é um leque de oportunidades, devemos a todo momento aproveitá-las ao máximo!”.
Uma enorme caneca de chope lhe foi servida, acompanhada de mais um sorriso bastante inocente. Doutor Ulisses teve a certeza plena de que se daria muito bem naquela noite, e que muito possivelmente não retornaria para casa. O ambiente foi aos poucos ficando movimentado. Havia mais duas outras garçonetes que se ocupavam dos demais clientes. Contudo, somente ela o servia. Entre uma bebida e outra, os dois trocavam algumas palavras – ele muito gentil, e ela sempre sedutora. Por volta da meia-noite, ela lhe disse que sua hora estava chegando, pois precisava ir cuidar de sua debilitada mãe. Devido à sua triste realidade, sua mãe só se alimentava depois que ela chegava do trabalho. Ele, já bastante alto devido ao excesso de bebida, disse-lhe:
– Pensei que poderíamos beber alguma coisa depois do seu expediente. Gostaria muito de te conhecer melhor!
– Tenho certeza de que você não iria gostar de saber quem eu realmente sou! Sou uma pessoa difícil de lidar, e além do mais, tenho minha mãe que depende de mim até mesmo para lhe levar o seu próprio alimento. Não quero lhe magoar, doutor. O senhor me parece ser uma boa pessoa. No final, eu acabaria por devorar seu pobre coração.
Ele, que tinha uma mãe em condições semelhantes, sentiu-se ainda mais atraído por alguém que se preocupava em levar o alimento para casa antes de qualquer coisa, preocupando-se em manter a mãe bem cuidada, em detrimento de seu próprio lazer. Naquele momento, decidiu que aquela bela jovem de olhos claros e belos cabelos ruivos como um entardecer tinha todas as qualidades necessárias para ser a futura mãe de seus filhos. Apenas não se recordava de ter mencionado a ela que era médico, mas percebeu que esse mero detalhe era uma simples bobagem. Com muito garbo, ofereceu-lhe companhia até sua casa, dando-lhe sua palavra de que se comportaria como um distinto cavalheiro. Ela lhe respondeu com um sorriso bastante encantador:
– Se é de sua própria vontade acompanhar uma pobre donzela ao seu humilde lar, desde que me prometa que não irá se assustar com nada que porventura venha presenciar em minha casa, será muito bem-vindo. Como disse ao senhor, tenho uma mãe acamada que necessita de cuidados especiais, principalmente à noite. Se for de seu agrado, poderá me ajudar a preparar o jantar para ela. Tenho certeza de que mamãe estará faminta.
– Tem minha palavra de que serei bastante discreto. Como você bem sabe – ainda não sei como soube – eu sou médico, e nessa profissão todos os dias vemos todo tipo de coisa. Não sei se mais alguma coisa nesta vida poderia me assustar – disse ele de forma bastante positiva.
– Se o senhor é quem diz. Apenas não me diga que eu não o avisei.
Caminharam por umas dez ou doze quadras até chegar a um outeiro, onde havia uma casa assobradada. A construção era afastada das demais, de forma que, se alguém precisasse de ajuda, não poderia ser ouvida, mesmo se a pessoa gritasse a plenos pulmões em busca de socorro. Assim que se aproximaram da varanda, uma luz alaranjada se acendeu de forma automática. Doutor Ulisses percebeu que era uma casa bem cuidada. Simples, mas com um asseio impecável. Eleonor, ainda na porta, parou por um instante e, antes de abri-la, ainda o questionou com um meigo olhar de alguém que sabe que algo poderia ser evitado:
– Tem certeza de que deseja entrar, doutor? O senhor ainda é jovem...
Ele, que caminhara parte do caminho, às vezes seguindo-a, outras vezes analisando suas belas curvas, decidiu que nada neste mundo o impediria de entrar na casa dela, e, uma vez lá dentro, tentaria de todas as formas lhe fazer a corte. Ele já havia acompanhado outras garçonetes até em casa antes, e, mesmo depois de certa relutância, tinha terminado a noite na cama de algumas delas – é certo que nem todas. Contudo, com Eleonor, ele sentia que algo bastante extraordinário poderia vir a acontecer. Pediu licença e foi logo entrando. Não ouviu latido nem qualquer outro som de um cão, mas sentiu um forte odor de cachorro molhado. Eleonor, assim que entrou, trancou a porta atrás de si e o conduziu à alcova onde sua mãe estava. O aposento estava bastante escuro, mas, mesmo assim, ele se aproximou do leito em que ela estava deitada. Primeiro, ouviu um breve rosnado, depois outro barulho estranho, como se houvesse um cão no recinto que o farejava. Por fim, quando a luz foi acesa, sentiu uma forte pressão nas costas e, logo depois, uma dor lancinante que nunca havia sentido antes. Quando olhou para o local de onde a dor se originava, viu que uma garra enorme saía de seu peito, com algo pulsando entre as enormes unhas. Pela primeira e última vez, viu seu coração pulsando bem diante de seus olhos. Deitado numa cama logo à frente, havia um enorme lobo com uma bocarra arreganhada, cheia de dentes brilhantes e afiados. Ele ainda conseguiu perceber que a parte inferior daquela monstruosa criatura estava coberta com uma colcha. Em seu último suspiro, antes que tudo ficasse escuro de uma vez por todas, ainda pôde sentir uma pegajosa língua passando pelo lóbulo de sua orelha e ouvir algo sendo sussurrado ao pé do ouvido:
Falta de aviso não foi! Eu disse que mamãe precisava ser alimentada...
A cama estava sem o lençol. O espelho estava quebrado. Na cômoda havia poucos pertences: apenas um hábito limpo, algumas roupas íntimas…