Drácula e Cristo: entre cruzes, estacas e sangue

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

“E vocês? Quem vocês dizem que eu sou?” — Mateus 16:15

No Cristianismo, Satanás é tradicionalmente visto como o oposto de Jesus Cristo, mas e se, em vez de Satanás, comparássemos Drácula a Cristo? Parece uma ideia herética, e talvez seja mesmo, mas como alguém obcecada por histórias bíblicas e literatura gótica, não pude evitar essa comparação estranha.

Na religião e na literatura, são poucos os personagens que alcançam o status icônico de Jesus Cristo e de Drácula. O primeiro, o Salvador, o segundo, o condenado, mas há algo que os une: ambos são figuras que, no texto, se revelam através dos olhos e das palavras de outras pessoas. Eles não falam de si mesmos diretamente, são descritos, testemunhados, adorados ou temidos. Cada um é conhecido pelo impacto que causa nos que cruzam o seu caminho, gerando fé ou terror. Essa presença indireta cria uma tensão, quase arquetípica: luz e trevas, redenção e condenação, vida e morte. Herético ou não, é um paralelo impossível de se ignorar.

No Novo Testamento, Jesus raramente é descrito fisicamente. Há apenas raras descrições de uma imagem: um homem sem beleza, segundo Isaías 53:2; ou as visões simbólicas do Apocalipse, mas, em essência, Jesus é reconhecido por suas palavras, ensinamentos e milagres, e por como seus discípulos o veem. Em Mateus 16:15-16, ele pergunta: “E vocês? Quem vocês dizem que eu sou?”. E Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. A identidade divina de Jesus não é proclamada por ele mesmo, mas reconhecida pelo outro, construída pelo efeito que ele exerce sobre os outros. Drácula, da mesma forma, não se apresenta diretamente ao leitor, sua presença é fragmentada em cartas, diários e relatos que compõem o romance de Bram Stoker. Assim como os evangelhos são narrativas dos que seguiram ou testemunharam Cristo, Drácula é um fragmento daquilo que os outros viram, sofreram ou temeram.

Jonathan Harker nos dá alguns desses fragmentos: “Até então, eu tinha notado as costas, de suas mãos, que tinham me parecido brancas e finas; mas, vendo-as mais de perto, pude notar que eram bem grosseiras, com dedos fortes. Por mais estranho que pareça, as palmas das mãos tinham cabelos. As unhas eram compridas e finas, terminando em ponta. Como o Conde se curvasse sobre mim, encostando-me às mãos, não pude conter um tremor” (Capítulo 2). E também: “O que chamara minha atenção era a cabeça do Conde, saindo para fora da janela. Não vi o rosto, mas distingui-o pelo pescoço e pelo movimento de suas costas e braços. De qualquer maneira, não podia me enganar com aquelas mãos, que tivera tantas oportunidades de examinar. [...] Mas meus sentimentos transformaram-se em repulsa quando vi todo o corpo do Conde projetar-se pela janela, vagarosamente, e sair se arrastando pela parede, de cabeça para baixo, com o manto agitando-se ao vento, como asas enormes. A princípio, não pude acreditar no que estava vendo.” (Capítulo 3).

Se Cristo é conhecido pelo amor e pela transformação espiritual que inspira, Drácula é definido pelo horror que provoca. Ambos, porém, são figuras que deixam marcas duradouras em quem os encontra. Há ainda outra comparação evidente: o sangue. No Cristianismo, o sangue de Cristo é o símbolo do perdão e da aliança entre Deus e a humanidade: “Isto é o meu sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos, para perdão de pecados” (Mateus 26:28). A Santa Ceia é, até hoje, a comunhão com esse sangue, a memória de uma entrega que promete vida eterna. Em Drácula, há uma inversão disso: o sangue não redime, ele contamina. Quando Mina é forçada a beber do sangue do Conde, não se trata de uma aliança para a remissão dos pecados, mas uma maldição. De um lado, o sangue como comunhão; do outro, como corrupção. Em ambos, ele conecta, transforma e promete a eternidade, mas uma eternidade de salvação e outra, de danação.

Há ainda a relação com a morte: Cristo ressuscita, vence a morte e oferece a promessa de vida eterna. Drácula, por sua vez, desafia a morte, é o morto-vivo, o que se recusa tanto a morrer quanto a viver completamente. Enquanto Jesus promete: “Estou com vocês todos os dias, até o fim dos tempos” (Mateus 28:20), Drácula permanece como uma presença material e ameaçadora, que assombra e consome. Ambos também reúnem ao seu redor seguidores. Jesus atrai discípulos dispostos ao sacrifício, fundou uma Igreja que cresce pelo amor e pela palavra. Drácula atrai servos como Renfield, que, seduzido pela promessa de poder e imortalidade, é condenado à loucura e à morte.

E há também o símbolo do sagrado e da luz. Segundo João, Cristo é “a luz que brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram” (João 1:5). Drácula, ao contrário, é repelido pela luz do sol. O crucifixo, símbolo de Cristo, é para o vampiro um instrumento de repulsa e dor: “Instintivamente, avancei para protegê-lo, levantando o Crucifixo e a Hóstia na mão esquerda. É impossível descrever a expressão de ódio que se estampou na fisionomia do Conde. Com um ágil movimento, afastou-se.” (Capítulo 23). Essa comparação, talvez louca, talvez herética, revela, no fundo, o poder das narrativas. Dois personagens que inspiram fé e comunhão, ou terror e repulsa, mas que continuam vivos, lidos, reinterpretados, transformados em símbolos que atravessam gerações. No fim, talvez o que essa comparação sugira é como nós, leitores, somos influenciados pelas figuras que rememoramos ou revisitamos, sejam elas de salvação ou de condenação. E você? Diante dessas duas figuras, com qual delas, consciente ou não, escolhe comungar?


Escrito por:
Valesca Afrodite Gomes

Valesca nasceu no Rio de Janeiro (RJ), cursa Ciências Biológicas, encontra-se no último período. Tem paixão por ciências, subcultura gótica, livros, seres sobrenaturais, ficção científica, cemitérios, igrejas e morcegos, ela também é voluntária em um projeto de divulgação científica chamado "Morcegos na Praça". Escrevia com frequência, mas afastou-se da prática ao... » leia mais
17ª Edição: Dívanno - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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